O sol escaldante mexe com o comportamento humano. Alguns ficam calientes no quesito sexual. Com a visualização constante de corpos ardentes, morenos e suados à vista, a vontade de copular aumenta sensivelmente. Outros, se deixam dominar pela doce moleza que a alta temperatura proporciona. Daí, só desejam deitar numa rede e, assim como Caymmi, curtir uma boa preguiça ouvindo uma suave música, fechar os olhos e se deixar levar pelo mundo dos sonhos
Outros tantos, irritados com temperaturas elevadas, tornam-se insuportáveis elevando sua temperatura interior a níveis desagradáveis para as demais pessoas com as quais convive.
Era o que acontecia com Dalila, Sofia, Lorena e Bernadete. Confinadas numa casa na praia Brava de Guaeca, São Sebastião. Toda aquela visão paradisíaca não encobria as tormentas que aconteciam no interior de cada uma delas.
Personalidades fortes, carregadas de fantasmas que as atormentavam desde sempre, pouco a pouco, seus espinhos se mostravam a cada hora vivida em conjunto, uma vez que se encontravam confinadas para um feriado prolongado. Teriam de se aguentar até que viessem buscá-las na data combinada.
Dalila, tímida que era, se esforçava para se adaptar ao convívio coletivo com estranhas. Sofia, a descontraída do grupo, já dava mostrar de ter se arrependido de vir na companhia delas a esse paraíso. Eram pesadas por demais!
Lorena, séria, metódica, preocupada por natureza não conseguia se descontrair e esquecer as tarefas cotidianas que deixara na cidade. Sua mente pensava o tempo todo nos afazeres deixados para trás. Desconhecia por completo a palavra desestressar. O tempo todo buscando deixar em ordem o quarto que dividia com Bernadete que era o seu oposto.
Bernadete, a mais jovem das quatro, era mimada, infantil, irresponsável e muito, mas muito irritável e irritante. Desorganizada que era, largava tudo pelo caminho deixando Lorena de cabelos em pé. A “Senhora Ordem” não sabia até quando aguentaria conviver com essa criatura insuportável.
Dalila permanecia observando o comportamento das demais e, por medo de se tornar desagradável, mantinha-se muda só concordando com a cabeça com o que as demais decidiam, Dava muito trabalho discordar e tentar impor sua forma de pensar e agir. No entanto, já ansiava por aquele feriado terminar e poder regressar para seu quarto, seus livros, sua vida.
Sofia já dava mostra de que sua carga de alegria sempre inabalável, se encontrava na reserva. Pensava consigo à noite na cama: “Onde fui amarrar meu burro? Mulheres mais sem sal e tempero! Não sabem aproveitar as boas coisas que a vida proporciona. Imagina, um paraíso feito esse e essas aí só sabem brigar entre si, cobrar uma da outra coisas tão pequenas. Não sabem o verdadeiro valor da alegria, não sabem usar a lente da leveza”.
Lorena ruminava os pensamentos: “Deus do céu, será que deixei as contas do açougue pagas? E a consulta com doutor Acary, puxa vida, precisava ter marcado. Não posso me esquecer de ligar para ele assim que chegar. Inferno de lugar que não tem internet. Poderia estar adiantando um monte de coisas por aqui. Mas paciência né? Quem mandou eu me meter nessa furada. Um dia aprendo. Ah! Se aprendo! Sair com desconhecidos nunca mais! Inferno, não aguento mais ouvir a voz dessa imbecil que velha, age e fala feito uma criança de quatro anos. Vontade de descer o sarrafo na bunda dela. Nunca deve ter apanhado de criança. Taí, o resultado de muitos mimos e nenhuma vara na bunda. Tornou-se essa criatura desagradável que ninguém aguenta. Senhor! E o pior é que se acha o umbigo do universo! Só ela é importante, só o que ela deseja é o que vale, só seus gostos se sobressaem… Não sei até quando vou aguentar dividir o mesmo espaço que ela”.
Os dias foram se arrastando e levando junto as boas maneiras que aprenderam no mundo civilizado. Em quatro dias de confinamento, já gritavam umas com as outras, jogavam o que viam pela frente, chutavam os móveis e choravam desesperadamente até dormirem vencidas pelo cansaço. Os dias seguintes, imperou um silêncio sepulcral entre as quatro. Só falavam o mais que necessário e não se olhavam. Até que no quinto dia, o céu desabou num temporal assustador tirando todas daquele mutismo. Olharam-se com real preocupação vendo que as janelas e portas daquela casa tremiam a cada trovão e relâmpago que caia. A força das águas era medonha. O céu parecia revoltado com a humanidade. Revoltado com elas, que não souberam se tolerar e não mereceram aquele pedaço de paraíso. O Senhor das Tempestades urrava sua ira com todas as forças. Em pouco tempo, as águas começaram a invadir a casa e levar tudo com elas. Assustadas, subiram para o andar de cima da casa e permaneceram juntas, agarradas umas as outras.
Pela primeira vez tinham algo em comum: o medo. E foi justamente através dele que todas se uniram para sobreviverem. Permaneceram em oração, de mãos dadas, pedindo ao Pai Poderoso que as amparassem e as salvassem daquela tormenta.
Após duas horas de chuva intensa, as águas foram se acalmando até se transformarem num chuvisco leve. O silêncio imperou naquele pedaço de terra.
Sofia, a mais tímida, pela primeira vez falou determinada:
– Tudo bem com todas? Olha, a tormenta se foi e precisamos de coragem para descer, ver os estragos feito pelas águas e tomar providências para a limpeza e ordem das coisas no lugar. Depois também precisamos ver como ficou a estrada que dá acesso ao barco que nos vira buscar e se constatarmos que ficou tudo danificado, daremos um jeito de pedir ajuda com sinais de S.O.S. ou coisa que o valha. Precisamos ficar unidas pelo menos agora por uma única questão: sobrevivência. Entenderam?
Todas se olharam desarmadas e concordaram com a cabeça. Após essa trégua, trabalharam muito para limpar o andar da casa que tinha sofrido muito. Limparam toda a sujeira, repuseram os móveis no lugar, jogaram fora o que se estragou, secaram tudo na medida do possível e, exaustas, sentaram no degrau na escada de entrada e em silêncio permaceram mais um pouco. Repunham suas energias e pensavam em tudo o que vivenciaram naqueles dias. A tormenta parecia se acalmar também em seus íntimos.
Bernadete foi a primeira a falar:
– Lorena, desculpa minha infantilidade. Não guarde raiva de mim não. Sei que sou horrível, um monstro mesmo. Não sei nem porque ainda vivo se todos me odeiam. Por favor, me perdoa!
Lorena permaneceu alguns minutos calada, de olhos baixos. Depois disse:
– Bernadete, você realmente é uma pessoa irritante, não nego. Mas também não sou uma pessoa fácil. Sou mandona por natureza, sou inflexível, metódica, tenho mania de organização e limpeza e costumo ser irredutível em minhas atitudes. Também sou considerada por muitos um monstro. E também possuo um fã clube considerável. Por favor, queira você também me perdoar. Ter dividido o quarto comigo esses dias também não deve ter sido nada fácil pra você.
Sofia que até então olhava para o lado contrário de onde as demais se encontravam, também se manifestou:
– Dalila, sua timidez excessiva me deixou muito incomodada por todos esses dias. A minha alegria de viver não encontrava eco em sua pessoa. Nada do que falava parecia tocar você, que sempre me olhava de soslaio e me respondia com seu pesado silêncio ou quando muito, com respostas baixas e lacônicas. Queria muito ouvir sua gargalhada alta e o máximo que conseguia extrair de você era um esboço tímido de sorriso sem dentes. Simplesmente me deixava agoniada! Sei que em minha alegria compulsiva de vida, não enxergava sua figura tímida e delicada. Talvez fosse só eu baixar um pouco minha taxa de adrenalina para me adequar a sua personalidade. Fui incapaz disso. Me perdoa?
Dalila, com seus doces olhos marejados, fungou um pouco antes de esboçar sua mansa voz:
– Sofia, eu é que devo pedir desculpas à você. Com tanta alegria de viver dentro de si, merecia ter como companhia alguém mais descontraída, mais extrovertida que eu, que não passo de uma sombra em vida. Pareço foto desbotada pelo tempo. Sempre te observava e admirava sua personalidade esfuziante. Queria ter um terço de sua alegria e descontração e um terço também de sua espontaneidade. Sempre admirei pessoas como você mas nunca consegui ser assim. Meu universo é introvertido, todo pra dentro de mim. Não consigo me soltar e expôr o que sinto aos outros. Sempre temo pelo que o outro vai pensar de mim. Por favor, me perdoa!
E dizendo isso, saiu de seu lugar e abraçou Sofia que, tocada pela sinceridade da companheira de quarto, se deixou levar pela emoção e ambas choraram juntas.
Tocadas pela mesma emoção, Bernadete e Lorena também se abraçaram e choraram juntas por alguns minutos. As lágrimas levando para longe todo estranhamento dos dias. Sentiam-se leves, perdoadas em sua pequenez humana, redimidas diante da vida.
Pela primeira vez, todas juntas fizeram a refeição e comeram juntas, sorridentes, felizes e leves. Pela primeira vez olhando-se nos olhos e enxergando a verdadeira essência de cada mulher ali presente.
Na data combinada, seu Orlando chegou com o barco para buscar o grupo feminino que havia trazido dias atrás.
– Bom dia senhoras e senhoritas! Tudo bem por aqui? A chuva fez muito estrago? Se assustaram muito?
Sorridentes entraram no barco e Dalila, que entrou por último disse:
– Seu Orlando, bendita chuva! Abençoada tempestade que chegou, lavou e levou tudo o que não prestava mais. Estamos bem graças a Deus e a essa boa chuva!
– Não tiveram medo? A tempestade foi das grandes. Até fiquei preocupado com vocês aqui sozinhas.
– Medo? Sim. No início tivemos muito mas muito medo mas depois, ela só nos trouxe alegria e leveza seu Orlando. Olha só como estamos voltando mais leves para casa. – comentou Sofia rindo gostosamente ao término de sua fala.
– Não me esquecerei jamais desses dias aqui seu Orlando. Foi realmente um divisor de águas em minha… Não, em nossas vidas! – disse Lorena também sorrindo e olhando a todas.
– Elas têm razão seu Orlando, esses dias mudaram nossas vidas. Definitivamente. Cheguei mimada e cheia das vontades e infantilidades. Saio hoje uma mulher madura e cheia de confiança em meu futuro. Santa água que caiu seu Orlando! – respondeu Bernadete olhando as demais companheiras e sorrindo com olhos marejados abraçou a todas dentro do barco.
Coçando a careca, seu Orlando nada entendendo do ocorrido entre as mulheres pensou por uns segundos:
“Mulheres! Vá entendê-las! Eu é que não!” – e sorrindo terminou de colocar as bagagens das agora “amigas” e deu início ao retorno a vida real. O paraíso ficando para trás e cada uma levando um pouco do tesouro que descobriram por lá.
O barco sumiu deixando ao longe uma paisagem que guardaria as obsessões de cada uma pra si.