
Fui adaptando meus sentidos aos barulhos matutinos. Primeiro ouvi o motor de um caminhão que subia a rua de forma ruidosa. Parecia que perdia o fôlego naquela subida íngreme. Depois, ouvi vozes de dois homens que desciam a rua numa conversa animada sobre o que fizeram no final de semana. Aos poucos as vozes foram se afastando até se transformarem num ruído incompreensível. Continuei de olhos fechados. Ainda não queria ter contato com a realidade de mais um dia.
Após leve soneca, voltei à realidade ouvindo o assobio de alguém que parecia feliz por mais um dia de vida.
Não era o meu caso.
Irritada, virei para o outro lado da cama e cobri a cabeça com o lençol. A claridade matutina já invadia meu território.
Por mais que cobrisse a cabeça e cerrasse meus olhos, não conseguia ficar protegida na escuridão.
Teimava em não retornar à vida cotidiana. Não queria abrir os olhos e ver que tudo continuava como ontem, anteontem, transdontem…
Queria ter o poder de evaporar naquele quarto. Desejava ardentemente que um buraco se abrisse e me engolisse levando-me para a Terra do Nunca. E que lá, fosse levada para a masmorra da solidão eterna. Talvez só assim conseguisse a paz tão sonhada.
A serenidade tão almejada.
O não ser.
O nada.
Gostaria imensamente de sofrer um súbito Mal de Alzheimer galopante que apagasse de vez toda a memória que guardo em meu íntimo.
Cabeça pensante sofre muito, não esquece nada. Isso é tortura!
Já pensou? Limpar completamente os espaços de nossa memória. Deixando os arquivos vazios, leves, onde soprasse uma suave brisa o tempo todo! Seria tão…Tão aliviante! Não sentir dor de espécie alguma. Nem física muito menos emocional.
Não quero pensar. Não por hora. Continuo de olhos cerrados e mentalizo o vazio do universo.
Por instantes consigo vagar pela ausência de coisas. Flutuando por entre nuvens, sentindo o bafo cósmico em minha nuca. Aprecio o som do nada. É belo e harmonioso!
Dura pouco.
O som estridente do despertador invade o quarto quebrando o tão almejado silêncio.
Permaneço de olhos fechados. Me recuso a voltar à realidade. Em pouco tempo meu quarto é invadido por vozes agudas e alegres de meus filhos:
– Acorda véia! Levanta pra completar seus anos de vida! – grita Gustavo, de 15 anos.
– Vai mãe! Abre os olhos! Quero te abraçar e desejar feliz aniversário! Tá ficando velhaaa!!!! – completa Gisele, minha princesa de 14.
– Ohhhhh minha véia querida! Vem pra realidade! Ou acha que só eu envelheço? – diz Francisco, meu marido,
E todos caem na cama abraçando, espalhando beijos por todo lado, fazendo cócegas, descabelando e me envolvendo num carinho sem fim.
Com tanto afeto, como posso estar me sentindo tão infeliz? Tenho o que muitas mulheres almejaram a vida inteira: casamento bem estruturado, filhos lindos e saudáveis, um companheiro que me ama e procura sempre dar o melhor pra mim, uma situação financeira senão invejável, pelo menos tranquila. Sou uma mulher bonita, bem cuidada, tenho uma profissão estável…
Onde foi que me perdi? Porque essa inquietação e vontade de sumir do planeta? De sair por essa porta e nunca mais voltar?
Uma vontade absurda de gritar me invade e aos poucos, uma careta vai se formando. Vontade de gritar ao mundo que a vida passou rápida demais. Em poucas piscadas ,cinquenta anos se passaram e nem tive tempo quase de absorver as coisas boas que ela, a vida, me proporcionou. E agora observo que não tem volta. Não é como um vídeo VHS que podemos voltar quantas vezes quiser e retornar ao momento mais lindo do filme. A vida não tem replay!
Casei, tive filhos, eles cresceram e eu quase não vi o dia a dia deles devido a minha dedicação à profissão. Ser médica é maravilhoso! Não me arrependo de nada em minhas escolhas, mas, como tudo na vida, tem seu preço. E o preço pago foi não ter visto de perto o crescimento de meus rebentos.
Meu marido, o Francisco, que outrora foi um jovem lindo com seus olhos verdes cristalinos e sorriso largo que me conquistou com seu corpo escultural de surfista, hoje não passa de um senhor de meia idade obeso, com uma perda de cabelos avançada e olhos cansados.
Mas seu sorriso continua largo e contagiante! Deus! Como ainda amo esse homem! E meus filhos então? Jovens lindos, cheios de vida, saudáveis e que só me dão alegrias! Minha família é linda e têm paciência comigo que vivo sempre enfurnada em meus casos difíceis da UTI em que trabalho.
A careta vai se intensificando até que se desmancha num choro esparramado. Todos param de sorrir e ficam a me olhar de forma espantada. Choro de forma desesperada e não consigo parar. Gesticulo chamando-os para perto de mim. Beijo e abraço cada um e, entre soluços intensos e uma fracassada tentativa de sorrir consigo dizer: Obrigada Meu Deus! Obrigada família linda!
Francisco sai de meu abraço em silêncio e se ausenta por alguns segundos do quarto. O choro pouco a pouco vai se acalmando. Meus filhos se revezam no acalento que fazem em minha cabeça tombada na cama. Sinto uma mescla de vergonha, alívio e alegria.
– Regina, meu amor, olhe pra mim. Feliz aniversário! Vida longa à mulher que me faz sentir o homem mais feliz do mundo!
Enxugo os olhos congestionados e olho para ele que trás em suas mãos um pequeno pacote luxuoso.
Abrindo, vejo um lindo brilhante. Volto a me emocionar.
– Regina, esse é apenas um pequeno mimo que representa todo meu amor e carinho por você. Obrigada por existir e me fazer feliz.
Uma última lágrima escorre pela face levando embora toda a tristeza, um sorriso se esboça e abrindo meus braços, recebo minha família .
– Estou ficando velha! Cinquenta anos! Nunca pensei que fosse chegar a essa idade!
– Eu já estou com cinquenta e sete! Qual o problema?
– Nenhum problema Chico! Foi só uma reação momentânea que tive. Vamos dizer que tive uma virose emocional! Passou!
– Mãe vai por mim, de velha você não tem nada! Lindona, de virar o pescoço dos homens e mulheres. Cheia de vida e pique total pra tudo.
– É isso mesmo mãe. Minhas amigas sempre comentam o quanto você é linda e conservada. Elas têm a maior admiração por você.
– Vamos deixar de papo furado e descer para tomarmos juntos o café da manhã? E olha, prepare-se, pois o desjejum será especial hoje em homenagem à você, guerreira!
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