As memórias ficam suspensas dentro de mim

(Mariana Gouveia – As estações)

Sentada na penumbra do quarto, se entrega a um choro sem rédeas. Deixa fluir toda dor que por tanto tempo represou. Se fazer de forte para ganhar likes nas redes sociais não foi a melhor escolha para curar suas dores: a física e a emocional. A ira que se apoderou dela ao ser descartada feito um saco de batatas apodrecidas, lhe cegou. Sair insana dirigindo pela rodovia molhada. A chuva torrencial desabou, assim que ele fez as malas e partiu. Foi a coroação da sua dor.

Meses depois do acidente, está aprendendo a conviver com as sequelas que a acompanhará para sempre, segundo os médicos. Por mais que tente não pensar, turbilhões de questionamentos invadem sua mente: Por que não enxerguei seu afastamento? Por que ele deixou chegar a esse ponto? Por que ele foi tão agressivo chamando-me de balofa carentona? Por que foi cruel, se foi exatamente assim, que me conheceu? Por que disse ter vergonha de sair em público ao meu lado? Por que fui tão cega? Por quê, Por quê, por queee…

Mesmo após ter queimado o baú de fotos e todos os presentes que ganhou dele, os momentos que foram felizes ainda se mantém vivos. Fantasmas a lhe atormentar a alma. Gostaria de ter batido a cabeça e perdido a memória. Sofreria bem menos. Agora, as horas escoam lentamente. Nem amigos restaram. Ninguém gosta de tristeza, nem de doença, muito menos de aleijados. E ela, agora, é a somatória de tudo isso.

Uma sonolência a envolve. É a medicação fazendo efeito. Chama o enfermeiro de plantão e pede que a coloque na cama. Após tanta fisioterapia, ainda não adquiriu firmeza para se transferir da cadeira de rodas para a cama sozinha. Agradece o profissionalismo e o carinho discreto do enfermeiro. Sorri de olhos fechados, ao lembrar que pediu para ele ficar atento para quando sair alguma droga nova que alivie a dor física e apague as memórias que ainda insistem em viver de forma líquida dentro dela.

Esse texto faz parte da blogagem coletiva Blogvember. Participam comigo:

Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins

Imagem gratuita: Pexels

50 calendários rodados. Ou a danada está chegando. Ou simplesmente: virei a esquina da vida

mulher-sofrendo

Fui adaptando meus sentidos aos barulhos matutinos. Primeiro ouvi o motor de um caminhão que subia a rua de forma ruidosa. Parecia que perdia o fôlego naquela subida íngreme. Depois, ouvi vozes de dois homens que desciam a rua numa conversa animada sobre o que fizeram no final de semana. Aos poucos as vozes foram se afastando até se transformarem num ruído incompreensível. Continuei de olhos fechados. Ainda não queria ter contato com a realidade de mais um dia.
Após leve soneca, voltei à realidade ouvindo o assobio de alguém que parecia feliz por mais um dia de vida.
Não era o meu caso.
Irritada, virei para o outro lado da cama e cobri a cabeça com o lençol. A claridade matutina já invadia meu território.

Por mais que cobrisse a cabeça e cerrasse meus olhos, não conseguia ficar protegida na escuridão.
Teimava em não retornar à vida cotidiana. Não queria abrir os olhos e ver que tudo continuava como ontem, anteontem, transdontem…
Queria ter o poder de evaporar naquele quarto. Desejava ardentemente que um buraco se abrisse e me engolisse levando-me para a Terra do Nunca. E que lá, fosse levada para a masmorra da solidão eterna. Talvez só assim conseguisse a paz tão sonhada.
A serenidade tão almejada.
O não ser.
O nada.
Gostaria imensamente de sofrer um súbito Mal de Alzheimer galopante que apagasse de vez toda a memória que guardo em meu íntimo.
Cabeça pensante sofre muito, não esquece nada. Isso é tortura!
Já pensou? Limpar completamente os espaços de nossa memória. Deixando os arquivos vazios, leves, onde soprasse uma suave brisa o tempo todo! Seria tão…Tão aliviante! Não sentir dor de espécie alguma. Nem física muito menos emocional.
Não quero pensar. Não por hora. Continuo de olhos cerrados e mentalizo o vazio do universo.
Por instantes consigo vagar pela ausência de coisas. Flutuando por entre nuvens, sentindo o bafo cósmico em minha nuca. Aprecio o som do nada. É belo e harmonioso!
Dura pouco.
O som estridente do despertador invade o quarto quebrando o tão almejado silêncio.
Permaneço de olhos fechados. Me recuso a voltar à realidade. Em pouco tempo meu quarto é invadido por vozes agudas e alegres de meus filhos:
– Acorda véia! Levanta pra completar seus anos de vida! – grita Gustavo, de 15 anos.
– Vai mãe! Abre os olhos! Quero te abraçar e desejar feliz aniversário! Tá ficando velhaaa!!!! – completa Gisele, minha princesa de 14.
– Ohhhhh minha véia querida! Vem pra realidade! Ou acha que só eu envelheço? – diz Francisco, meu marido,
E todos caem na cama abraçando, espalhando beijos por todo lado, fazendo cócegas, descabelando e me envolvendo num carinho sem fim.
Com tanto afeto, como posso estar me sentindo tão infeliz? Tenho o que muitas mulheres almejaram a vida inteira: casamento bem estruturado, filhos lindos e saudáveis, um companheiro que me ama e procura sempre dar o melhor pra mim, uma situação financeira senão invejável, pelo menos tranquila. Sou uma mulher bonita, bem cuidada, tenho uma profissão estável…
Onde foi que me perdi? Porque essa inquietação e vontade de sumir do planeta? De sair por essa porta e nunca mais voltar?
Uma vontade absurda de gritar me invade e aos poucos, uma careta vai se formando. Vontade de gritar ao mundo que a vida passou rápida demais. Em poucas piscadas ,cinquenta anos se passaram e nem tive tempo quase de absorver as coisas boas que ela, a vida, me proporcionou. E agora observo que não tem volta. Não é como um vídeo VHS que podemos voltar quantas vezes quiser e retornar ao momento mais lindo do filme. A vida não tem replay!

Casei, tive filhos, eles cresceram e eu quase não vi o dia a dia deles devido a minha dedicação à profissão. Ser médica é maravilhoso! Não me arrependo de nada em minhas escolhas, mas, como tudo na vida, tem seu preço. E o preço pago foi não ter visto de perto o crescimento de meus rebentos.

Meu marido, o Francisco, que outrora foi um jovem lindo com seus olhos verdes cristalinos e sorriso largo que me conquistou com seu corpo escultural de surfista, hoje não passa de um senhor de meia idade obeso, com uma perda de cabelos avançada e olhos cansados.
Mas seu sorriso continua largo e contagiante! Deus! Como ainda amo esse homem! E meus filhos então? Jovens lindos, cheios de vida, saudáveis e que só me dão alegrias! Minha família é linda e têm paciência comigo que vivo sempre enfurnada em meus casos difíceis da UTI em que trabalho.
A careta vai se intensificando até que se desmancha num choro esparramado. Todos param de sorrir e ficam a me olhar de forma espantada. Choro de forma desesperada e não consigo parar. Gesticulo chamando-os para perto de mim. Beijo e abraço cada um e, entre soluços intensos e uma fracassada tentativa de sorrir consigo dizer: Obrigada Meu Deus! Obrigada família linda!
Francisco sai de meu abraço em silêncio e se ausenta por alguns segundos do quarto. O choro pouco a pouco vai se acalmando. Meus filhos se revezam no acalento que fazem em minha cabeça tombada na cama. Sinto uma mescla de vergonha, alívio e alegria.
– Regina, meu amor, olhe pra mim. Feliz aniversário! Vida longa à mulher que me faz sentir o homem mais feliz do mundo!
Enxugo os olhos congestionados e olho para ele que trás em suas mãos um pequeno pacote luxuoso.
Abrindo, vejo um lindo brilhante. Volto a me emocionar.
– Regina, esse é apenas um pequeno mimo que representa todo meu amor e carinho por você. Obrigada por existir e me fazer feliz.
Uma última lágrima escorre pela face levando embora toda a tristeza, um sorriso se esboça e abrindo meus braços, recebo minha família .
– Estou ficando velha! Cinquenta anos! Nunca pensei que fosse chegar a essa idade!
– Eu já estou com cinquenta e sete! Qual o problema?
– Nenhum problema Chico! Foi só uma reação momentânea que tive. Vamos dizer que tive uma virose emocional! Passou!
– Mãe vai por mim, de velha você não tem nada! Lindona, de virar o pescoço dos homens e mulheres. Cheia de vida e pique total pra tudo.
– É isso mesmo mãe. Minhas amigas sempre comentam o quanto você é linda e conservada. Elas têm a maior admiração por você.
– Vamos deixar de papo furado e descer para tomarmos juntos o café da manhã? E olha, prepare-se, pois o desjejum será especial hoje em homenagem à você, guerreira!

Imagem: Google

Dolorida ferida

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Dolorida ferida teima em não cicatrizar.

Finge fechar, secar mas basta um esbarrão

e pronto!

Abre-se feito rosa desabrochada.

Escoa seu líquido morno

relembrando as lágrimas jorradas por ti.

Hoje, não passa de desbotado recorte em minha vida.

No entanto, ainda dói

Feito dente com raiz descoberta de tempos em tempos,

te lembra da sua existência. Lateja.

Praguejando sigo em frente.

Entre tropeços, arremessos, desleixo-me.

Sei que não é a atitude correta e esperada

Uma voz interna grita para deixar rolar

E rolo. Na cama, no chão, na avenida,.. Na vida.

Imagem: Nastol

Inexistente

sangue10O frio congela o sangue,

Que percorre o corpo,

Irriga os órgãos,

Oxigena o cérebro,

Faz tremer as mãos,

secas feito folha no inverno,

gélidas feito meu estado de ânimo,

doloridas feito meu peito,

que ardem com sua falta,

Enrijecem cada vez que miro,

sua foto. nossa foto.

Trazendo lembranças

de um momento que foi,

sem nunca ter existido.