Um entre tantos por aí

Ele reinou soberano entre as mulheres. Sempre foi assim e, pelo visto, será até chegar o dia de se aposentar dessa vida. A presença masculina nunca foi o forte em sua existência. É claro, teve pai, irmãos, primos. Contudo, a presença feminina foi marcante em seu dia a dia. A mais forte foi, sem dúvida, sua mãe. Mulher de atitude. Bonita a sua maneira. Não foi mulher de vaidades. Gostava de andar descalça, sentir a terra, esfregar a sola ressecada na canela e assoviar enquanto realizava as atividades do lar. Sempre alegre. Tinha também seus momentos de histeria e nervosismo. Seu marido, ralhava por não manter uma pose de mulher casada e séria. Gargalhando, saía rebolando e sempre respondia:

-Quem quiser falar de mim à vontade, pois quem fala por trás, o cu é quem escuta.

Ele, às escondidas para seu pai não ver, ouvia e saía sorrateiramente para o paiol da casa com um tímido sorriso pela ousadia e vitória de sua mãe. Sua adorada mãe.

A companhia constante dela moldou seu espírito simples, trouxe-lhe doçura e simplicidade. No entanto, seu pai teve um peso imenso e o engessou com orientações religiosas que fizeram dele, eterno infeliz. Amedrontado pelas idéias de pecado e tormentos no inferno, não ousou sentir prazeres.

Trabalhar, trabalhar e trabalhar sem se perder em coisas materiais. Esse foi o lema assumido e seguiu sem refletir se era o certo. Tinha de ser afinal, seu pai rezou por essa cartilha também!

Transformou sua existência num grande discurso de amor ao próximo. Todavia, foi incapaz de tolerar as diversidades na própria família. Que ironia!

Não permitiu se apaixonar. Cerziu o coração para o amor de uma mulher. Tão pouco deixou fresta para um amor homossexual. Deus castiga!

A vida passou, a juventude também. A maturidade trouxe o endurecimento das articulações e de seu coração.

Não casou, não teve filhos, não cultivou amigos e os poucos que fez, morreram.

A solidão é sua companheira constante. É ela que lhe faz companhia da hora que acorda a hora que cerra novamente os olhos numa fuga insana para o mundo dos sonhos. De onde não deseja mais regressar.

Imagem licenciada: Shutterstock

Estado indefinível

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Choro uma dor sentida que ninguém é capaz de compreender. Para todos, encontro-me senil, débil, demente.
Ninguém compreende o que sinto e vejo ao meu redor. Tento falar, expor minha agonia, meu medo e ninguém me dá ouvido.
Pensam que não sei o que falam entre si. Acreditam que não ouço, não vejo, não sinto.
Acham que já me encontro em estado adiantado de putrefação física.
Pode até ser que em parte, isso seja verdade. No entanto, nunca estive tão lúcido.
Foi preciso viver um século para obter tal visão da vida e do mundo.
Agora eu jogo a pergunta a você: de que me serve tamanha clareza de tudo se ninguém me ouve? Ninguém acredita naquilo que falo.

De que me serve uma experiência de vida que adquiri através da labuta incessante, de pegar no cabo da enxada logo cedo, aprender mil ofícios para crescer, tornar-me homem de verdade, ajudar meus pais, meus irmãos? De que adiantou abdicar de uma vida adulta com família formada, mulher, filhos, netos?
Abri mão de tudo isso para ajudar papai e mamãe e o que ganhei em troca? Abandono.
Primeiro foi papai que partiu sem nem despedir da gente. A seguir, mamãe, inconformada com seu sumiço, abandonou a gente e nunca mais deu notícias…
Dá uma revolta pensar nisso!!
Levei uma vida inteira formando minha persona, fortalecendo-a na fé, no exemplo a ser seguido por todos. Tornei-me um guru para os mais novos. Um líder a ser seguido. Ganhei com o tempo muitos adeptos de meu estilo de vida. Fiz também muitos desafetos por ser inflexível com aqueles que não “rezavam pela minha cartilha”.
Quando mais novo, nem liguei para tais desafetos. Mas hoje, olhando para meu passado, confesso que fico incomodado.
Afastei de mim amigos que através de minha conduta, criaram reservas, se afastaram falando mal de mim.

Alguns chegaram inclusive a espalhar que eu havia me transformado num mascarado, num santo do pau oco, num falso cristão.
Logo eu, que transformei minha vida num eterno refazer espiritual, num ser moldável pelas palavras e exemplos de Cristo.
Assim como ele, fui incompreendido. Jogaram-me pedras morais que arranharam minha imagem. Por mais que tenha lutado, enfraqueci. Fui pouco a pouco diminuindo em essência e com o avançar dos anos, até minha estatura diminuiu.
Meus cabelos fartos foram rareando, platinando, meus olhos embaçando, minha pele perdeu o viço de outrora até que um dia, sucumbi.
De acordo com a medicina dos homens, tive um acidente vascular. Mas sei que foi minha alma que quedou do alto de meu orgulho de homem feito. A queda foi grande, o estrago imenso.
De lá pra cá, só decaindo ladeira abaixo.
Hoje, aos noventa anos, sinto que minha vida foi em vão. Toda energia empregada numa filosofia de vida que achei certa, corroborou, faliu, desmoronou feito castelo de areia.
Ruiu deixando a mostra, uma estrutura frágil de um ser humano prestes a deixar esse mundo da mesma forma que chegou: sem fala, sem movimentos equilibrados, mijando, defecando, babando e chorando muito. Um bebê crescido e fragilizado que só deseja retornar para o ventre aquecido e familiar de sua mãe. Seu verdadeiro lar.
Nascer dói por isso o bebê ao nascer chora. Um esforço sub-humano que fazemos para se deslocar expulsos da adorável placenta.

Morrer dói mais ainda porque ao cair nas malhas da matéria, nos iludimos uma vida inteira crendo que conquistou posição, bens, status.
Ledo engano.
Aos poucos tudo nos é tirado e ao término da vida, até a passagem é feita de forma solitária.
Sinto-me cansado. O esqueleto pesa, respirar cansa, comer – de um prazer, passou a uma tortura sem fim.
Hoje posso compreender as pessoas que desejam eutanásia. Sempre fui contra, mas só mesmo passando por tudo isso, é que se torna um simpatizante dessa atitude.
Não desejo mais viver. Não assim. Não nesse estado indefinível entre o lá e o cá.

 

Imagem comprada: Shutterstock

Matéria morta

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Um envólucro sujo e vazio.

Foi isso que me veio a mente ao presenciar aquela cena logo pela manhã.

Dois policiais chamados pelos transeutes olhavam para aquilo jogado ao chão com olhos desconfiados – ou talvez temerosos.

Sacudiram, levantaram alguns metros do chão, chacoalharam e após segundos depositaram no chão.

Trocaram algumas palavras, balançaram a cabeça e acionaram socorro.

Enquanto isso, vários olhos curiosos como os meus, acompanhavam ao longe toda a cena.

Ainda refém da sonolência matinal, custei a compreender o que acontecia.

Por instantes supus que os policiais chacoalhavam um boneco e até imaginei que alguns moleques houvessem amarrado ele ao poste do ponto de ônibus. Observei que algumas pessoas que ali se encontravam, davam mostra de incômodo com toda aquela movimentação que mudava suas rotinas matinais. Uma senhora desviava o olhar, um homem de seus trinta anos trajando um terno de bom corte, pigarreava e cuspia de lado evitando olhar para a cena. Uma jovem mãe, numa atitude protetora, cobria os olhos de seu filho. Uma adolescente, com os fones de ouvido e olhos grudados na tela de seu celular, parecia ser a única que não se apercebia da situação –  perdida que estava em sua vida digital.

Todos mostravam uma atenção forçada aos ônibus que se aproximavam com a nítida impressão de terem pressa em saírem dali.

O semáforo prestes a ficar verde. Em breve, sairíamos do túnel que desemboca na avenida mais charmosa da cidade.

Carros e ônibus se preparam para a largada. Ronco dos motores, verdadeiro Grand Prix urbano.

No ônibus, jovens munidos de seus potentes iphones se apressam em registrar aquele momento para postarem em primeira mão em suas redes sociais.

Banalização total de um jovem corpo sem vida.

 

 

Imagem: Google retirada do seguinte site: Franciscanos

Cantiga para José(s)

torcedor chorando

 

Parafraseando o nosso talentoso Drummond:

E agora José(s)?

A festa acabou, o time perdeu (de goleada), os carnês da Casa Bahia estão vencendo, você não vai ganhar uma segunda TV por R$1 real, perdeste o emprego por querer assistir aos treinos da seleção.

E agora José(s)?

Tudo no supermercado aumentou, as tarifas subiram, o aluguel está para vencer também.

E agora José(s)?

Maria cansou de esperar uma atitude sua, deu um belo pé na bunda e seguiu sua vida lavando, passando, indo de casa em casa fazendo diária pra sustentar Ronildo, Josefa, Marlysonian, Wachinton, Claudiornária e tantas outras crianças advindas desses relacionamentos que acabam sempre nas mãos calejadas de mulheres guerreiras.

E agora José(s)?

A situação no país não está mole não. Emprego está difícil, mão de obra cada vez mais especializada e você mal terminou a terceira série primária.

E agora José(s)?

O que fazer com o dissabor de mais essa derrota? Mais uma entre tantas que coleciona em sua parva vida?

Só te digo uma coisa José(s): ainda há tempo para reverter tal situação. A Copa não importa. É apenas um grande circo místico criado para te envolver numa verdadeira lavagem cerebral desviando sua limitada atenção de coisas sérias que correm pelas laterais. Essa encenação toda que moveu milhões e milhões – coisa que você jamais terá noção de quantos zeros levam – impediu que você enxergasse a realidade que move o país. Gigante pela própria natureza, és belo, és infantil, és manipulável.

José(s), está mais que na hora de acordar para a realidade. Ela pode ser dura mas é o que tem portanto, lute por ela, cresça por ela, viva e evolua por ela.

Outubro está próximo José(s), e eis uma nova chance de você provar que está maduro, consciente, que tem discernimento e que pode e deve tomar em suas mãos, as rédeas de sua própria vida. Pense!

Está na hora de tirar os olhos de Big Brother, Ídolos, novelas das nove, esquecer as paniquetes e tantos outros lixos que entulham e embaralham seu raciocínio já turvo pela fome e dificuldades da vida.

Chega de se dopar com essas drogas que a mídia te faz engolir todo santo dia. Mude sua alimentação. Alimente-se de leituras. De preferência leituras que te façam refletir.

Ah não sabe refletir? Não tem problema José(s). Comece aos poucos, bem devagar e vá aumentando a dosagem semana a semana.

Seja obstinado nessa empreitada José(s). Até outubro tenho certeza que terá melhores condições de fazer a coisa certa.

Agora deixe de lado essa raiva pela derrota do time nacional, nada de queimar a bandeira, nem sair por aí barbarizando patrimônio público. Nada te devolverá a sensação de vitorioso a não ser sua determinação em crescer enquanto cidadão.

Deite essa noite sua cabeça – que por hora lateja de fracasso – e feche seus olhos pensando que amanhã será outro dia.

E que esse novo dia será um novo recomeço, mesmo que haja tropeços, seguirá em frente, de cabeça elevada e mirando o horizonte. Sem medos, sem choros, sem tremor nas mãos.

Porque José(s), lembre-se: o verdadeiro herói não é aquele que entra de quatro em quatro anos numa arena e vence. Herói é você que acorda diariamente às 4h30 da manhã pega três conduções lotadas para trabalhar por um salário mínimo e mantém sempre esse sorriso e esse olhar de esperança, crente de que um dia será realmente feliz.

Tenha uma boa noite José(s).

 

Imagem: http://copawriters.wordpress.com/2010/04/23/nossa-selecao-nao-e-mais-nossa/

 

Inseparável simbiose

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Sentada na encosta observo o mar

batendo incessantemente nas pedras.

Percebo que sou como elas, as águas.

Sua indiferença é como esse paredão

Inabalável. Imóvel. Muda.

Eu, enquanto água, me jogo, te ataco, estapeio,

espirro de tanto amoródio por ti.

Arrebento-me toda e,

em moléculas quebradas, volto ao ponto inicial.

Você segue sua vida intacto.

Eu, sigo remendando os cacos das quedas.

E permanecemos assim, anos a fio

Você irredutível

Eu, mar bravio

Você intocável

Eu, implacável

Você glacial

Eu, vulcânica

Inseparável simbiose

 

Imagem:  Mar bravo, Pedro Mendes

 

 

 

Desgarrados

casal brigado

 

O clima entre o casal estava tenso.Palavras não ditas, mágoas engavetadas, guardadas feito souvenir de viagem.

A relação começava a pesar! Ela já estava cansada de relevar e engolir as desculpas do companheiro.

O amor, pouco a pouco, transformava-se num fardo difícil de carregar.

Assim como também difícil estava aguentar seu ego eternamente inflado.

Ansiava respirar ares mais leve. Esse, já se encontrava viciado.

 

Imagem: Pond5

Leo

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Considero-me um cara da noite. A vida noturna, para mim, tem cor e sabor especial. Sou carioca de nascimento mas paulista de alma. Desde que me exilei nessa cidade fui aos poucos descobrindo suas sutilezas e belezas.

Está certo que não é a beleza natural que encontramos na cidade do Rio de Janeiro. Aquilo tudo é um verdadeiro cartão postal.

São Paulo é aquele famoso caso de se interessar por uma mulher feia, sem maiores atrativos, mas que na convivência diária, vamos descobrindo seus encantos, suas virtudes, sua beleza atípica. E quando menos esperamos, estamos completamente apaixonados por ela.

A vida agitada, frenética e caótica de São Paulo é minha cara! E hoje, já me sinto um paulistano genuíno. Uma das coisas que mais prazer me dá, é, ao sair do trabalho, caminhar.

Não perco tempo me arrochando nos metrôs ou ônibus no horário de rush! Gosto de andar pelas ruas. Circular pelas entranhas urbanas desvendando seus mistérios e ouvindo muitas histórias. Aliás, se tem uma coisa que me dá um prazer danado, é ouvir histórias. E todo ser humano é uma riqueza ambulante nesse quesito. Sempre que desço a Rua Augusta sentido centro, capto diálogos incríveis! E isso, lógico, serve de material denso para minhas histórias.

Ah! Vocês ainda não sabem não é mesmo? Vou começar do início.

Meu nome é Leocádio Neves (oh nome filho da puta!), mas, por favor, podem de chamar apenas por Leo.

Sou formado em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO). Fiz estágio num escritório de direito e odiei. Consegui depois um emprego como estagiário na Biblioteca Nacional e lá, descobri minha vocação para pesquisas históricas e de cunho geral além de me descobrir escritor. Sim meus leitores! Sou um escritor nas horas vagas. Essa é apenas uma de minhas facetas. Outra coisa que descobri trabalhando na BN foi que tenho espírito de Sherlock Holmes. Adoro um desafio e provar que sempre tenho razão. Principalmente quando me atrevo a investigar coisas por conta própria.

Fiz um curso à distância pelo D.N.I. (Departamento Nacional de Investigação) que me ajudou a apurar meus dotes naturais. Já ajudei a polícia a solucionar vários casos cabeludos e foi exatamente por conta de um desses que me ferrei.

Mas isso é outra história! Mais tarde falo sobre ela.

Tem vários locais que me agradam passar algumas horas captando cenas, insights etc. Um deles é o Café Vermont, na Vieira de Carvalho. Além da frequência variada que aparece por lá, o pessoal que ali trabalha é de uma simpatia sem igual. Sinto-me em casa. Outro lugar que também sempre dou uma passada e aprecio aquele café gostoso, é o Café Floresta, no condomínio Copan, na Avenida Ipiranga. Sempre que posso me encontro com alguns camaradas meus que trabalham na Biblioteca Mario de Andrade, que é outro reduto sagrado para mim. Atualmente trabalho numa biblioteca escolar de um colégio tradicional. Gosto do ambiente.

Gente jovem, meninada cheia de vida. Algumas chatinhas, mimadas, mas no geral, sangue bom! Quando fiquei desempregado há um ano, bateu desespero e quando me falaram dessa vaga, fiquei um pouco ressabiado.

Afinal, como a maioria dos profissionais da minha área, o bibliotecário escolar é considerado algo menor. Compreende? Questão de status. Mas como a grana estava acabando e as contas se juntando, decidi encarar.

Não me arrependo!

Ambiente descontraído, pessoais legais, tempo para fazer meu serviço e também para escrever, pesquisar e…investigar! Atualmente estou no encalço de algo grande, pesado.

Mas isso é outra história! Mais tarde falo sobre ela.

Roda de leitura

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(Imagem tirada do Google Imagem)

Seu corpo é um livro aberto,

Leio-te sempre que posso.

Amo virar suas páginas, sentir

suas dobraduras, me deleitar

em suas ranhuras.

Sua lombada, me deixa abobada!

Seu prefácio, me soa fácil.

Em sua página de rosto,

encontro tudo que gosto.

Sua ficha catalográfica tem

informações que me enchem os olhos

Cada hora se apresenta com uma história

Ora se mostra um lord inglês,

me convida para um chá das cinco,

todo cortês.

Outras vezes, me chama para uma aventura gastronômica

fazemos amor, rodeados de guloseimas,

tudo regado a vinho e muito sabor.

Noutras tantas, chega cínico, seco,

me puxa pelos cabelos e me soca sem dó,

depois me deixa zonza, dolorida, saciada.

Um mistério só.

Quando perdido, sofrido, me pede abrigo,

chora baixinho, suga meus peitos e,

saciado adormece sorrindo.

Em noites de luar, me faz serenata, oferece rosas,

Beija as mãos, me abraça, me chama pra dançar.

A cada leitura sua, surge uma ternura que

me prende mais e mais a você.

Homem das mil faces, inúmeras histórias,

tantos conflitos.

Descobri que nessa roda de leitura,

Você é meu personagem favorito.

Superior a Sebastian Barnes, Edward Cullen,

Christian Grey ou Gideon Cross,

Você é matéria bruta, carne, ossos, hálito, suor.

Viciei em reler suas páginas,

Transformei-o em um hábito.

E te habito a cada acasalamento,

sentindo-me  ao lar, regressar .

A história se repete

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Desde pequeno que ouço uma frase que sempre achei engraçada mas não compreendia. Ouvia principalmente na fala grave de meu avô Romualdo:

– Manda quem pode. Obedece quem tem juízo.

Fui um moleque inquieto, brigão. Irresponsável mesmo. Na adolescência então, colecionei muitas cicatrizes por viver mais em luta do que em paz sentado nos bancos escolares. Não tinha saco pra estudar!

Aos quinze anos, meu pai chamou para um “dedo de prosa” . Isso significava bronca e das boas! Já conhecia meu velho.

Após o jantar chamou-me à sala, mandou minha mãe e minha irmã Adelaide cuidarem da louça na cozinha pois tinha de ter uma conversa séria comigo. Não queria ser interrompido por nada.

Na hora senti um arrepio na base da nuca que subiu e senti meus cabelos se arrepiarem. Ele andou pela sala, ensaiou sentar em sua poltrona, olhou para o relógio cuco, coçou a cabeça, massageou seu vasto bigode, sentou-se.

Um silêncio pesado instalou-se no recinto. Sentia que estava sendo engolido pelos móveis pesados e escuros que ele tanto gostava. Não sei se foi impressão minha ou se aconteceu mesmo mas por um segundo senti que as lâmpadas piscaram e sua luminosidade diminuiu deixando o ambiente mais pesado ainda. Meu pai continuava com os olhos semicerrados e com ar pensativo, sério como há muito não via.

– Fabiano, você em pouco tempo de vida já tem uma lista imensa de desobediência e rebeldia. Sua mãe não aguenta mais falar com você e dar de cara com seu descaramento. Eu não aguento mais ouvir reclamações de todas as partes sobre sua conduta. Você não quer saber de nada. Não liga para os livros e estudo. Quer permanecer na ignorância.

Ah se eu, na minha época, tivesse tido a chance de estudar como você tem. Não teria desperdiçado por nada. Hoje seria um outro homem. Teria uma profissão digna. Não que a minha não seja digna mas, sem dúvida, seria muito melhor.

Tenho tido muitas conversações com Monsenhor Emiliano e ele me aconselhou que você só vai tomar jeito se for para um seminário. Lá você vai aprender as matérias necessárias para sair dessa condição de burro que tem e ainda por cima, ganha de lambuja uma personalidade moldada na cristandade. Vai aprender a ser gente sem que seja na ponta do chicote!

Engoli em seco com tanta informação.

– Pai, eu posso mudar. Prometo estudar mais daqui pra frente.

– Ah! Mas você vai estudar mesmo menino! Lá, no seminário. Só vai retornar quando se tornar um homem de verdade. Pode ir para seu quarto e dormir pois amanhã logo na primeira hora vou te levar para o internato. Já está tudo resolvido e suas malas prontas.

– Pai…

Não precisei de mais nada para confirmar a resolução dele. Bastava lançar aquele olhar congelante que a gente entendia. Com o coração aquecido em brasa de raiva, indignação, tristeza e medo, passei a noite em claro pensando no que me aguardaria.

Interessante justamente agora, toda essa lembrança retornar com força total como se tivesse acontecido hoje! Trinta e quatro anos se passou desde aquela conversa difícil com meu velho. Muita água rolou por debaixo dessa ponte. Foram anos duros, sofri muito mas aprendi aquilo que meu pai chamava de “virar um homem de verdade”. Hoje sou só agradecimentos àquele que espremeu seu coração de pai mandando-me para longe com o intuito de me transformar numa pessoa responsável, honesta. Como ele sonhava, hoje tenho uma profissão que, mesmo ele jamais ter se expressado verbalmente, sei que fui motivo de orgulho nos anos que lhe restaram. Formei-me em Direito. Hoje sou um juiz muito respeitado por todos. O velho nunca se abriu porque não foi educado para ser mais espontâneo. Coitado! Imagino o quanto deve ter tido vontade de sorri para mim, me abraçar forte e dizer:

– Filho! Perdoa esse velho pai! Tudo o que fiz foi pensando no seu bem. Em seu futuro. Não me queira mal por tê-lo afastado do seio familiar. Eu e sua mãe sentimos demais sua ausência nesses anos todos mas valeu cada lágrima escondida que deixamos rolar. Hoje vemos o resultado de nosso sacrifício. Você e sua irmã são nossos maiores tesouros em vida!

Uma lágrima quente teima em rolar pelo meu rosto.

-E aí véio! Quer falar comigo? Pow! Fala logo que ainda vou sair com meus amigos! Ce tá chorando?

Em silêncio, limpo as lágrimas, levanto-me da poltrona, caminho pela biblioteca. Coço a cabeça, mexo em meu bigode. Olho para Lucas, meu filho e digo:

– Filho, esquece seus amigos por hoje porque a conversa será bem longa.