Meu dia de graças

Inferno astral. Desde que entrei na fase adulta, esse período é infernal. Ficava mais sensível que o normal, chorava, perdia o sono, tudo acontecia…

Esse ano, mudei a forma verbal. Quando peguei as rédeas de minha existência nas mãos, tomei decisões que mudaram por completo minha vida, toda a tormenta que vivia, passou.

Posso dizer, que mesmo vivendo em plena pandemia, momento delicado para todos, vivo talvez meu melhor momento. Acredito que a maturidade seja a responsável, aliada a falta dos hormônios que afetavam e faziam passar todos os meses por um tsunami emocional.

Estou em paz comigo mesma e com o mundo. Aceito-o como ele se apresenta com todas as suas belezas e torpezas. Assim como nós humanos que somos feitos da mesma matéria. União de falhas, defeitos, virtudes e beleza. Somos assim, ninguém nasce pronto e também morremos incompletos. De acordo com essa constatação, hoje vivo um dia por vez realizando minhas tarefas com alegria, tranquilidade, amor. Sou grata a tudo e a todos, inclusive, aqueles que querendo ou não, me causaram desagrado ou prejuízo. Faz parte do combo que adquirimos ao nascer.

No passado, reuníamos familiares e amigos para festejar os aniversariantes do mês. Hoje, boa parte já dança quadrilha em outro plano e os demais, encontram-se em outras cidades, em outras realidades e quem está por perto, a pandemia se encarregou de afastar pelo isolamento social. Ah… esse vírus estraga festa!

Hoje, sem soltar balões coloridos, sem pular fogueira, sem pinhão, nem pipoca, sem roupa colorida.

Mesmo assim e talvez por isso mesmo, hoje é dia de festejar São João e meu dia especial. Dia de cantar Mercedes Sosa em forma de oração:

Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me dio dos luceros, que cuando los abro
Perfecto distingo, lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes el hombre que yo amo

Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido del abecedario
Con él las palabras que pienso y declaro
Madre amigo hermano
Y luz alumbrando, la ruta del alma del que estoy amando

Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me ha dado la marcha de mis pies cansados
Con ellos anduve ciudades y charcos
Playas y desiertos, montañas y llanos
Y la casa tuya, tu calle y tu patio

Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me dio el corazón, que agita su marco
Cuando miro el fruto, del cerebro humano
Cuando miro el bueno tan lejos del malo
Cuando miro el fondo de tus ojos claros

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así yo distingo dicha de quebranto
Los dos materiales, que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto
Gracias a la vida, gracias a la vida
Gracias a la vida, gracias a la vida

Seja muito bem-vindo 5.8!

Tin-Tin para mim!

Pela primeira vez aposento minha fantasia usual das festas juninas e adoto um acessório que – mais que um adereço de moda -, tornou-se item fundamental para sobrevivência. Não que isso represente 100% de garantia. Aliás, vivemos uma era de grandes incertezas…

Trago comigo uma certeza: Sou grata ao Universo pela vida que me foi concedida. Agradeço diariamente a saúde, a família, os amigos, o emprego, o teto que me abriga, o alimento que me sustenta. Agradeço. Sempre.

E mesmo hoje, três meses afastada de meus entes queridos, vivendo sozinha porém, nunca solitária, sentindo falta de um abraço apertado e um beijo estralado, despertei agradecendo por mais um dia de vida.

O passar dos anos e as inúmeras experiências, me fizeram ficar resiliente e – como já dizia minha sábia avó Maria-, saber “sambar conforme a música”. Não é fácil. Aliás, viver nunca foi fácil. Se aprendemos a adquirir sabedoria através da dor e do sofrimento, tornamo-nos fortes, de aço. Tenho tido noites insones. Quase nem preciso usar máscara pois já tatuei uma de zorro ao redor de meus olhos cansados,atravessando noites de preocupação com a humanidade. E nessa humanidade, me incluo.

Contudo, persisto em apostar em dias melhores. Procuro fazer do meu dia, algo alegre, positivo. De gente negativa e baixo astral, lá fora já tem de sobra.

Cinquenta e sete anos vividos. Muitas histórias acumuladas, gavetas abarrotadas de lembranças. Álbum de fotografias de pessoas amadas que se apagaram na vida feito polaroid. Cantaram em outro universo. Talvez paralelo, talvez se extinguiram de vez. Quem sabe?

Quase me esqueço de meu aniversário, tamanho ritmo louco que tenho vivido diante de pandemia e afins. Mas, hoje ao despertar, orei. Fervorosamente, orei. Por mim, por uma querida que aniversariava na mesma data e que – só soube essa semana -, está comemorando seu niver em outro plano.

Gratidão é meu mantra e seguirá por mais cinquenta e sete anos. Se até lá estarei ainda utilizando essa máscara? Quem sabe. Encerro com a música de minha musa Rita Lee:

...”Se Deus quiser
Um dia eu morro bem velha
Na hora H, quando a bomba estourar
Quero ver da janela
E entrar no pacote
De camarote”

Muito a criar. Muito a viver

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Final dos festejos da Parada Gay, com muita euforia por momentos de liberdade que prenuncia um mundo mais leve e colorido. Ouço o rádio aqui dentro e, bem mais dentro, em meu interior, o tum!tum! de um coração que pulsa sem parar. Por alguns instantes, bate mais compassado revendo o passado.

Noite fria, fogueira acesa, pessoas sorrindo e se aquecendo ao som de uma viola caipira, assim como um quentão rolando solto por entre os copos de todos os presentes…

O cheiro da terra úmida, toma conta de minhas narinas tão acostumadas ao odor da fumaça dos carros nas avenidas da cidade de São Paulo. Agacho e pego um punhado delas sentindo a aspereza gostosa por entre os dedos. Cria do asfalto, filha da urbanidade, não tenho contato com a natureza a não ser pelos vasos de flores comprados no mercado das flores do Arouche. O perfume me enebria feito os taninos do vinho barato que compro no hipermercado Extra, na esquina de casa…

Sorrio ao ouvir de sua boca carnuda, meu nome pronunciado de forma tão sensual. Sua voz baixa e rouca, anuncia uma noite prazerosa de muitas brincadeiras sexuais a nos entreter na meia idade. Agora somos livres, nos tornamos crianças grandes e sem censura alguma, nos permitimos brincar de tudo…

O avião embica e sobe levando-me a novas experiências. Conhecer lugares é sempre bom. Conhecer pessoas também…

Fogo, fogão, foguinho
Pula dentro, pula fora
Estica a corda
E vai embora…

Como é boa a sensação de liberdade em pular corda com amigas. E cantar, e pular, e suar e  e  e…Ser feliz feito criança de novo!

Não. Não é nada disso que acontece mas todas dariam uma boa história. Vocês não concordam?

Iniciar uma história é uma estrada de várias vias que nos possibilita múltiplas escolhas. A vida real também.

Só que muitas vezes, por medo, deixamos de escolher um final feliz. Ou quem sabe, por achar que não somos merecedores. E atravessamos a vida, apegados no cotidiano miserável, porém conhecido, ao invés de se jogar de cabeça numa aventura que acrescente um matiz mais colorido às nossas medíocres existências…

Com todos esses possíveis recomeços e histórias, festejo mais um ano de vida.

56 velas acessas brilhando e provando que viver é bom demais. Foram começos de histórias que poderiam ter acontecido ou que realmente aconteceram. Um mosaico que compôs minha vida terrena enriquecida de muitos janeiros, muitas fogueiras, muitos brindes, muitos choros e risos. Por hora, em postura de agradecimento, elevo o pensamento e agradeço à Deus pela oportunidade única de nascer, viver, crescer e formar uma legião de amigos queridos e familiares amados. 56 viradas de folhas de calendários que fomentaram esse corpo mignon e transformaram-no em rocha que aguenta muitos trancos.

Que venham mais 56!! Afinal, o que vier daqui para a frente será sempre lucro! E não me venham dizer que é o início da derrocada porque – mesmo derrapando na pista -, sou canceriana, ando de lado e faço passo de dança. E mesmo que toque um tango sofrido , choro e danço. Danço e choro. E também sorrio porque  pode até ser que tenhamos a fama de chorões do zodíaco mas, também carregamos a alma inflamada de amor e tesão pela vida. Tin!Tin!

Imagem licenciada: Sutterstock

5.5

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Enquanto mastigo um pão de queijo e tomo um gole de café, faço uma retrospectiva de minha vida. Não sou dada a esse tipo de coisa mas hoje, em especial, senti esse ímpeto bater forte e parei para refletir.

5.5

Não é sempre que viramos o calendário e damos de frente com esse número. Esboço um sorriso ao lembrar que inferno passei ao me aproximar dos cinquenta. Sofri, chorei, praguejei, lamentei. Sentia que perdia algo de muito valor deixando para trás uma juventude que, na realidade nem aproveitei direito. Não plantei uma árvore, não casei, não tive filhos e também, não publiquei um livro. Pelo menos, não do jeito comercial e tradicional. Tinha tudo para cavar uma bela de uma frustração por tantos sonhos não realizados. Mas quer saber? Após a passagem da menopausa onde todo ritual e simbologia feminina escoou pelo ralo do tempo humano, pouco a pouco percebi que nada disso tinha importância. Observei que nem toda árvore plantada vinga e dá frutos. Confirmei que nem todo casamento é feliz. Aliás, vamos combinar, noventa e nove por cento dos relacionamentos, se resistiram foi por insistência do casal, falta de perspectiva em recomeçar vida nova, preguiça, conformismo e, em alguns bem raros casos, por amor e cumplicidade. Analisei e mais uma vez tive a certeza de que filho, é lindo em fotos retocadas mas, que no dia a dia, é uma eterna guerra para se moldar, criar, transformar uma mera massa de carne, ossos, artérias e cérebro em algo que dê certo. Caso contrário, será um fiasco a mais competindo com tantos outros seres humanos mal formados, desinformados e alienados como vemos diariamente atravessando nosso caminho. Ah! E também tem mais essa confirmação: filho nenhum é certeza de companhia, amor e carinho além de cuidados em nossa decrepitude.

Calma leitor! Não se desespere achando de antemão que me transformei num poço de azedume.

A vida me ensinou que devemos constantemente desenvolver um plano B para tudo. E eu, claro, sendo uma típica canceriana, sempre fui excelente estrategista. Não somente desenvolvi plano B mas o abecedário completo. Gosto de me sentir segura.

Aprendi desde cedo a enxergar a beleza de tudo. Isso não me transformou numa idiota que sorri a toa mas sim, numa pessoa que aposta sempre no melhor. No bom. No acertado. Mas também aprendi e aprendo muito com o erro. Ah! Esse é um grande mestre! Apesar da melancolia ser um traço marcante em mim, tomo cuidados para não transformá-lo num todo. Mergulho de vez em quando para retornar com ideias e personagens para minhas histórias. Procuro sempre cerrar a porta para que ela não saia de vez e tome conta de minha existência. Em doses homeopáticas, é de uma grandeza e serventia única para lembrarmos que somos seres humanos, frágeis e sensíveis. Ela, numa overdose, pode ser fatal.

Hoje, aqui, sentada de frente a tela do notebook, dou graças pela vida. Essa preciosidade. Conquistei coisas importantes em minha vida. Algumas materiais outras tantas ricas numa cifra diferente, mas que representa a minha real fortuna. Amar e ser amada por pessoas muito queridas. Amar sem amarras nem cobranças sabendo que tudo por aqui é passageiro e nada nos pertence de fato. Ao assimilarmos esse ensinamento, aprendemos a viver de forma mais leve, mais solta e com isso, alcançamos um pouquinho da tal sonhada e tão discutida felicidade.

5.5

Meio século e um cadinho mais percorrido. Isso nos dá um parâmetro do que foi nossas vidas e do quanto ainda teremos pela frente ou não, afinal, não sabemos a data de nossa validade não é mesmo?

Ontem à noite, saí para jantar com um amigo/irmão para comemorar antecipadamente meu aniversário. Fomos a um restaurante tailandês que há muito tínhamos vontade de conhecer. Foi uma opção acertada! Unir a arte de comer bem, a um bate-papo saudável e com quem se tem afinidades, é um prazer incrível que todo canceriano aprecia. Essa junção é alimento para a alma. Conversamos sobre trabalho, relacionamentos, vida e sobre nossa amizade de décadas. Voltei para casa de alma leve e radiante!

Amanhã, ao despertar e conscientizar-me da virada no calendário, sorrirei e elevarei meu pensamento em agradecimento por mais um ano de vida. Agradecer primeiramente aos meus pais que me geraram e me formaram esse ser que – se não perfeito – pelo menos em eterna construção. Obrigada Walter e Ilda pelo amor em me criar da melhor forma que puderam com seus valores. Obrigada Vida! Obrigada Deus ou quem quer que seja que criou esse Universo pleno de possibilidades e aprendizado! Obrigada a todos que foram e são meus mestres nessa caminhada terrena.

A vida anda uma merda em todos os sentidos: políticos, econômicos, sociais mas, quer saber? O meu lema segue o que diz aquela canção de Claudio Zoli: Viver é bom demais!!!

E seguirei enquanto  me for permitido. Sorrindo, cantando, chorando, espalhando alegrias. Feliz aniversário Roseli! Tin-Tin!

Memória: universo intocável

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A manhã inicia envolta numa densa neblina. Ao abrir a porta que dá para o quintal, recebe uma lufada de vento gelado. Sorri! O galo da vizinha da rua debaixo canta animado. Alguns bem-te-vis e beija-flores voam ao redor do jardim e da horta que seu pai cuida tão bem. Há uma fina camada de gelo na plantação.

Com seus pezinhos envoltos numa alpargata gasta e uma meia listrada e rota, dá alguns passos no frio piso de cimento queimado. Quase escorrega, porém, consegue se equilibrar. Respira fundo e solta o ar pela boca. Diverte-se com a fumaça de ar quente que sai. Isso é inverno para ela! Corre para o balanço que seu pai instalou no fundo do quintal. Passa as pequenas mãozinhas na tábua molhada, esfrega-as na calça de flanela xadrez e senta balançando feliz. O dia promete!

Sua mãe grita da cozinha chamando todos para tomar o café da manhã. O aroma do café coado tira a pequena de seus devaneios infantis. Pula do balanço e entra pela cozinha para ocupar seu lugar a mesa. Todos reunidos, dá gosto ver seu pai – homem robusto, saudável, fartos bigodes negros – de olhos brilhantes feito os das crianças. Assobia de alegria ao ver as broas de milho quentinhas, o café aromático, o leite espumoso na jarra, a manteiga, o pão francês quentinho que sua mãe trouxe da padaria da esquina.

Sua mãe…

Figura ímpar. Mulher batalhadora que madruga para oferecer o pouco de conforto material aos seus. Mesmo com a renda escassa, prima por manter a família bem alimentada. É sua maneira de expressar seu amor.

Apesar de magricela, a menina é boa de garfo. Trata de comer sua broa, sua fatia de pão com manteiga, sua xícara de café com leite e a seguir, um pouco de achocolatado. Coisa rara que só acontece nessa época quando esfria. A criança estremece de contentamento ao sentir a quentura e o doce do chocolate. O dia promete!

O resto da manhã foi de muita tarefa na cozinha. Sua avó materna e mais duas tias chegam para reforçar as atividades. Forno aquecido, mais broas assando, um bolo com cobertura de pasta americana sendo confeccionado pelas mãos hábeis de sua tia, quituteira de fama no bairro. Do outro lado da cozinha, sua outra tia manipula a massa da bala de coco. A guria ama ficar sentada quieta olhando a destreza dela a esticar – com velocidade  – a tira de massa para não açucarar.

Sempre pensa: Minha família só tem artista!

A transformação da tira termina com as balas já cortadas descansando no frio mármore da pia, prontas para degustar.

Pura magia! A tia sempre oferece uma bala fresquinha à ela que, salivando, chupa bem devagarinho para que a bala não acabe nunca. Do lado de fora, no quintal, seu pai cozinha os pinhões. Outra iguaria que somente nesse mês do ano surge. Ela gosta de ver o pai mexendo no caldeirão com uma colher de pau e depois – com eles já cozidos e escorridos – descascar deixando-os peladinhos prontos para o banquete de logo mais. Sua avó, como sempre, se encarrega do feitio da paçoca. Posiciona o pilão centenário no meio do quintal e, munida de açúcar, amendoim torrado, farinha de mandioca e sal, deita o bastão para transformá-los em paçoca. Enquanto soca os ingredientes, dona Maria entoa uma cantoria que alegra o ambiente fazendo todos relembrar: Hoje é dia de festa!

De olhinhos vidrados na figura da avó com seu vestido florido azul marinho, avental e lenço prendendo os cabelos, chinelos nos pés – mesmo no inverno – balançando sua barriga cantando e rindo ao mesmo tempo. A garota sorri ao se aproximar da avó e pede o enorme bastão para socar um pouco. Arrisca cantar e ambas caem na risada com o desafino e a voz diminuta da menina. Quando terminam, comem a paçoca às colheradas. Coisa boa vó! – diz a garota com a boca cheia de doce.

Às dezesseis horas, a mãe surge à porta da cozinha chamando as crianças para o banho.

Está frio pra tomar banho mãe! – responde o irmão que não se dá muito bem com a água.

Não quero saber se está frio ou quente. Já pro banho moleque! Até as cinco quero todos de banho tomado e vestidos.

Quando a mãe fala nesse tom de voz não tem discussão. Gostando ou não, todos obedecem. Enquanto a gurizada está no banho, alguns homens da família – tios e primos – chegam trazendo lenha para montar a fogueira. Seu Pedro, o avó materno, passeia pelo quintal verificando tudo de mãos para trás pensativo. É seu jeito mineiro de ser. Confere tudo, afinal, também tem interesse que tudo saia perfeito.

Dezoito horas. Frio intenso, contudo, a temperatura entre todos os presentes encontra-se bem alto. No portão principal, seu Pedro recebe familiares que chegam abraçando-o. Ele é um dos aniversariantes do mês. A enorme mesa montada no quintal – na parte coberta – tem uma toalha estampada e uma vasta seleção de gostosuras juninas: bolo de fubá, de milho, broinhas, pé de moleque, paçoca, balas de coco, pinhão. Tudo distribuído ao redor do enorme bolo de aniversário coberto de massa americana colorido. Do outro lado, uma mesa menor com jarras de quentão, K-suco de uva e morango, garrafas térmicas com achocolatado e café. Na fogueira já ardendo em todo seu potencial, espetos com batata doce assando. Na vitrola, um disco entoa canções…

Capelinha de melão
é de São João.
É de cravo, é de rosa, é de manjericão.
São João está dormindo,
não me ouve não.
Acordai, acordai, acordai, João.
Atirei rosas pelo caminho.
A ventania veio e levou.
Tu me fizeste com seus espinhos uma coroa de flor.
Em pouco tempo a casa está lotada de familiares e amigos celebrando. O mês de junho é repleto de aniversariantes. A começar pelos avós, seu Pedro, seu Benedito, terminando pela neta, a menina magricela que hoje, resplandece de alegria por ver tantas guloseimas. Em frente ao bolo, seis pessoas felizes fazem seus pedidos antes de assoprarem as velinhas. O pedido da menina – talvez pela pureza infantil ainda não corrompida pelas mazelas de adulto – só deseja que o resto da vida seja uma grande e ininterrupta festa de aniversário.
Papai do céu, deixa eu ser eternamente criança!
Enquanto faz o pedido, uma estrela cadente atravessa a noite escura sacramentando sua solicitação.
Gente, lembrando dessas passagens de minha infância percebo que Papai do Céu atendeu meu pedido naquela noite fria: não perdi de vista minha menina magricela, sardenta e sonhadora. Não cresci muito no tamanho, continuo sonhadora e transformei meus sonhos em narrativas. E continuo amando festas juninas! Os balões, hoje solto na minha imaginação, afinal, consciência é necessário. E por aqui, eles continuam coloridos e belos a subir pelo céu de junho.

Balanço geral

eu chanel

Meu sobrenome é Saudade. Nasci sob total influência da Lua, em plena noite de São João, que até então era considerada a noite mais fria do ano. Hoje isso já não regula. No entanto, as lembranças que guardo de minha infância, são todas envoltas numa neblina fria aquecida pela fogueira do Santo. Para os entendidos, sou uma canceriana legítima com todas as características do signo: pura emoção, guardiã do passado, saudosista, espírito maternal, ciumenta…Chata!

Hoje, após anos de psicanálise, tenho consciência do quanto fui chata no passado. Não que hoje tenha alcançado a cura definitiva de meus defeitos. Disso ninguém se cura, não se iluda. Mas que atualmente sou mais flexível, isso é fato. Através do sofrimento – muitas vezes exagerado, confesso, burilei meu ser aprendendo a domar meu mau humor, minha irritação, minha inclinação a autocomiseração. Não foi fácil. Derramei muitas lágrimas principalmente nos três últimos anos.

lili na escolaAcredito que valeu a pena essa faxina. Purifiquei minha alma, esvaziei meu dique das emoções nocivas que corroíam as paredes de meu estômago e com isso, encontro-me mais leve, menos ácida.

Acato a vida como ela se apresenta e aceito as pessoas exatamente como elas são. Isso não significa que tornei-me uma ameba que a nada reage. Experimente pisar no meu calo pra ver o que faço! Não queira ver essa canceriana na gira! Vá por mim e caso um dia me encontre assim, passe bem longe de mim.

Mas olha, esquecia de comentar uma faceta muito peculiar de minha pessoa: sou extremamente palhaça. O tipo que ironiza a tudo e todos. Nem sempre exponho esse meu lado. Aliás, bem poucas pessoas conhecem. No geral, procuro manter a pose da bibliotecária séria. Tem até aqueles que me temem. Pode? Contudo, no dia a dia sou conhecida como a Garota (não tão garota mais) Sorriso. É meu lado Pollyana que sempre se faz presente.

Um aviso aos navegantes: Cuidado com o que fale ou faça perto ou para mim. Tenho uma memória que bem poucos têm. niver edileneNão esqueço absolutamente nada. Guardo tudo muito bem catalogado em minhas fichas do grande e infinito arquivo das memórias com direito a palavras-chave infindas. Ótima fisionomista portanto, se estiver em minha mira nem tente fugir ou disfarçar ou mesmo se esconder. Te acho! E tenho toda a paciência do mundo para finalizar aquilo a que me propus. Posso demorar mas concluo. Tenho meu próprio tempo. E falando nele…

Hoje comemoro meu nascimento. Pular a fogueira (hoje só em pensamento porque a carcaça endureceu), apagar as cinquenta e duas velinhas.

Haja fôlego! E agradecer por mais um ano de vida. Ao contrário de muitas pessoas que conheço, gosto de aniversariar. Gosto de receber abraços e afagos. Sou grata pela vida que me foi ofertada. Não desejando ser piegas mas já sendo (outra faceta da canceriana), agradeço tudo o que recebi da vida até hoje. E o que não alcancei, não tenho problema algum em praguejar, excomungar, babar de raiva e frustração e depois, passado o momento de ira, sossego meu íntimo e parto com alegria para uma nova jornada e conquista. Assim sou eu!

eu com colarAo final das contas, no balanço geral, sou feliz. E feliz convido a todos para vir ao meu Arraiá de São João. Aqui mesmo nesse local.

Happy birthday to you!

Não é tristeza o que sinto no momento.

É… Não sei traduzir em palavras, mas chega quase a ser uma não existência. Uma sensação de morte em vida, pois vida, significa pulsar o coração, correr o sangue nas artérias, mover os músculos do corpo, piscar os olhos diante das novidades, o cérebro registrar tudo o que chega aos seus arquivos.

A data de hoje – piscando em neon – não causa nenhuma reação às minhas retinas embaçadas, sem lubrificação. Secas feito meu coração que emudeceu no instante em que matei você em minha vida.

E a tela continua a brilhar e a piscar me convidando para sua festa ao qual não fui convidada. Nem por você, nem por mim. Neguei minha participação em sua existência.

Pensei ser fácil te arrancar de minha vida zerando álbuns de fotografia, excluindo-te de minhas redes sociais, apagando nossas inúmeras e intensas conversas online, seu número de telefone do meu celular, queimando seus poemas que tanto amava ler e reler e reler…

Tudo em vão.

Ontem, ao deitar a cabeça no travesseiro, a primeira coisa que me veio à mente foi sua imagem. Nítida. Senti seu cheiro no ar como todas as vezes em que ficamos juntos sorvendo a intimidade de nossos corpos.

Teletransportei-me à sua casa, adentrei a intimidade de seu quarto, te vi sentado à cama, te envolvi e depositei carinhosamente um ósculo em sua testa. Como sempre gostava de fazer toda vez que nos amávamos.

Lembra?

Você ficava bravo com essa minha atitude. Dizia que isso era coisa de mãe e mãe, você já tinha uma.

Ria de sua indignação e tornava a pegar entre minhas mãos sua cabeça e, novamente te beijava até você amolecer diante de minha genuína demonstração de amor e se rendia de corpo e alma a mim, fêmea sedenta de seu corpo e alma.

Hoje, ao acordar, também foi meu primeiro pensamento: você, seu aniversário.

E o dia passou despertando várias vezes o desejo quase doentio de te ligar como se nada houvesse acontecido e compartilhar sua alegria comigo. Como fazíamos anos atrás.

Feito adicto, me peguei inúmeras vezes pegando o celular e teclando seu número que mesmo apagado da agenda, tenho gravado na memória. Mãos trêmulas, sudorese inundando a palma das mãos, respiração entrecortada, boca seca. Quando dava pelo ato falho, jogava longe o celular como se tivesse recebido um choque de 500 watts.

Desejava chorar, mas as lágrimas – até elas – se negam a me fazer companhia na data de hoje.

Cansada, deito-me encolhida abraçada a mim mesma. Só percebo que anoiteceu novamente por conta da penumbra que inundou o quarto. Um som de piano ao longe serve de trilha sonora para esse momento: um lamento.

A voz de Pedro Mariano cantando Roberto Carlos… seu cantor preferido.

Aos poucos uma comporta se abre no peito deixando vir a tona toda antiga tristeza que seu amor me trás. Uma tímida lágrima inaugura o percurso.

Em seguida outra, e outra e outra até se transformar num esgar intermitente de emoções represadas por meses tentando ser-te indiferente. Um grunhido animalesco sai de minhas entranhas e toma conta do ambiente.

Transformo-me em loba desesperada por sua prenha perdida. Grito até perder as forças caindo num estado de transe hipnótico.

Silêncio.

Olhos parados, secos, lágrimas escorridas, boca aberta babando saliva e uma frase inaudita:

Happy birthday to you!

 

Imagem: Dreamstime

vídeo: Youtube (Fátima Ferreira)