Vita brevis

Antes que a minha existência acabe o prazo de validade, deixo meu testemunho de que na realidade, neste curto espaço de vida, nada é importante a ponto de perdermos tempo precioso com bobagens, mimimi e cultivo de mágoas. Uma piscada de olho, metade de nossa vida se esvai. Outra piscada e…

E não se termina projetos, não se dá um abraço no(a) filho(a), não se diz “Eu te amo” há tanto tempo ensaiado, não inicia aquele curso tão sonhado, não faz aquela viagem há tanto planejada e…

Se morre em vida e quando damos conta, já é tarde para as despedidas. Não tinha ideia do que escrever por tantos dias, semanas, mês, mas uma partida tão inesperada e próxima de mim, me fez traçar essas linhas para sua e minha reflexão. Não deixe para depois. Sim, somos todos finitos.

Imagem gratuita: Pexels

Confesso não percebi o momento de nossas mãos algemadas

Ao ler a poesia de Adriana Aneli, sou tomada por uma magia, uma sensação de voltar de onde viemos. Tenho ciência do ciclo ao qual pertencemos: nascemos, nos transformamos e ao término – sempre há um término – perecemos para que o novo surja belo. É o ciclo de tudo, da vida. Espiritualista, abraço tal ideia e creio nessa possibilidade. E esse sol da tarde, tecido e dividido conosco através de seus poemas, aquece nossa alma humana sempre em conflitos e tomada pelo medo.

Chego hoje ao término do dia, já em meio a noite, de coração apertado, pulsação fraca, umidades nos olhos embaçando a tela do note. A confirmação de que somos todos e todas Libélulas a buscar a vivacidade, beleza, talento batendo as asas insanamente. Tentando registrar para a eternidade, nossa passagem, antes da queda que coloca um ponto final.

Intencionava escrever algo bem diferente, talvez mais leve, romântico. Mas não tive romance em minha existência, não fui personagem de novela global das 18h, nem fui premiada com beleza de miss universo. Trago um coração imenso preso dentro dessa caixa torácica. Ele transborda amor por tudo e por todos.

Minhas algemas não são aquelas utilizadas numa noite de sedução, minhas amarras são mais sutis, não ficam à vista. Sinto as mãos da humanidade presas umas as outras. Por isso, a infelicidade de um afeta a felicidade do outro.

E hoje, ajoelhada diante desse céu repleto de uma constelação de luzes LED, sofro um grito natimorto. A agonia presa na garganta me corrói. Sei que isso vai passar. Amanhã, desperto renovada com a alegria e esperança latentes mas, por hora, dá licença: parafraseando e tomando emprestado o título do mangá de Aya Kito, preciso despejar 1 livro de lágrimas.

Esse texto faz parte da blogagem coletiva Blogvember. Participam comigo:

Lunna Guedes –  Mariana Gouveia –  Obdulio Nuñes Ortega  Suzana Martins

Imagem licenciada: Shutterstock

B.E.D.A. – Quero esse tempo de volta

O notíciário da TV informa que numa UPA no bairro Pampulha, em Minas Gerais, acumulou corpos, vítimas da Covid-19, por falta de espaço. Cenas tristes de se ver. Estamos em guerra.

Os cemitérios abrindo covas em linha de produção, famílias impossibilitadas de uma despedida de seus entes queridos.

Como se não bastasse tanta desgraça, precisamos lidar com o número de pessoas em condições de miséria total sem emprego, sem um teto, sem um prato de comida, sem proteção, sem dignidade.

Nos hospitais, médicos, enfermeiros e demais profissionais que fazem essa instituição funcionar, encontram-se exaustos, famintos por um plantão mais ameno. Saudades das madrugadas onde no máximo, surgia um caso de coma alcoólico ou vítimas de atropelamento.

Vida chata! Esqueceram o que é simplicidade.

Bons tempos em que as coisas que me preocupavam era matar pulgas, evitar pegar piolhos e rezar para que minha mãe não visse que novamente arranquei o tampão do dedão do pé, brincando de rolimã.

Participam dessa blogagem:

Adriana AneliAlê HelgaClaudia Leonardi Darlene ReginaLunna GuedesObdulio Ortega

Imagem licenciada: Shutterstock

Sentença final

Sabe aquele momento onde um resultado pode mudar radicalmente sua vida? Aqueles minutos que transcorrem após a notícia que ecoa em sua mente.

O ingresso naquela universidade que tanto sonhou, o emprego disputado com vários profissionais que te intimidou, o primeiro pedido de namoro, a viagem que sempre idealizou, o telefonema anunciando que alguém amado morreu.

Essas são apenas algumas das situações em que nos vemos presos entre a realidade e um corredor para o nada que simboliza o desconhecido.

Mas nada se comparara a notícia que sacramenta sua finitude nessa existência. Ao cair em nossos ouvidos, a frase traça uma coreografia fora de compasso até chegar ao cérebro. Processar é outro movimento estranho.

Estou condenado. Vou morrer. Vou morrer. Vou morrer… Difícil assimilar essa sentença afinal, por mais que saibamos que todos temos prazo de validade, preferimos passar essa peteca para os outros. E quando não temos mais ninguém a quem passar, segurar essa bola de fogo nas mãos é trabalho penoso.

A mente, confusa, não processa o fato. Perde-se em milhares de sinapses que se batem entre si causando confusão. O coração, por instantes pára de bater e depois cavalga em descompasso dificultando a respiração. Uma sudorese se espalha por todo o corpo.

Em breve, não sei quando, esse corpo não mais estará aqui enfrentando o trânsito, adentrando metrô lotado, aguentando o mal humor das pessoas que como eu, temem esse momento.

Não mais provarei os sabores de pratos gastronômicos, nem os vinhos que tanto amo.

E o que dizer do meu futebol? Nunca mais a expectativa de acompanhar da arquibancada meu time de coração ganhar uma partida. Ou perder, que também faz parte do jogo. Nunca mais xingar o torcedor anônimo do time adversário nem chamar ele pra briga.

A música, meu segundo alimento, se perderá no espaço assim como minhas moléculas.

A leitura e a escrita também farão parte do que um dia fui. Será que deixarei lembranças naqueles que ficarem? E se deixar, serão boas ou más?

Alguém sentirá minha falta ou – em sete dias após a missa -, cairei assim como tantos, no vácuo do esquecimento? Pior, nem missa terei. Lembrei que não sou católico. Alguém irá chorar por mim?

Será que minha vida foi em vão? Afinal, nada fiz de excepcional para demarcar meu nome para posteridade. Fui medíocre. Tudo em minha vida foi mais ou menos. Tive preguiça de me esforçar para ser melhor em alguma coisa. Contentava-me com o mínimo.

Estranho saber que desde já, não pertenço mais a isso tudo chamado vida. Mais estranho ainda, é saber-se lembrança. Fragmentos de uma memória que com certeza criarão de mim e não o que fui de fato. Isso, nem a gente sabe. Partirei para um nada cósmico sem ter a certeza do que fui.

Finito. Repito. No pouco tempo que me resta, vou criando meu rito.

Finito… Mais uma vez repito para mim mesmo. Trabalho no sentido de fazer a passagem o mais leve possível. Menos dolorosa mesmo que a carne grite. Mesmo que a alma insista em permanecer aqui.

Finitude…Busco uma razão para gostar da partida. Imagino cenas novas na minha minissérie preferida no qual sou protagonista. Feito Cacilda Becker, desejo sair de cena no próprio palco. Altivo. Destemido. Ousado.

Oh Deus! Misericórdia! Sei que nesse processo, não sou nada. Apenas um saco de gordura, água, fluídos. Mas…E isso tudo que carrego aqui dentro? Emaranhados de sensações, emoções, desejos, lembranças? Isso tudo não é matéria para os vermes. É o que então?

Não tenho resposta para essa e tantas outras indagações que surgem filosoficamente nesse momento único. Como já disse lá atrás o filósofo dos filósofos: Só sei que nada sei.

E nessa total ignorância , me perderei retornando para o berço de tudo transformado em poeira cósmica anônima. Sem registro, sem CPF, sem documento algum que me identifique e diferencie dos demais que já partiram.

Talvez essa seja a verdadeira democracia. É na morte que nos nivelamos e nos tornamos iguais perante o universo.

 

Imagem: Google (desconhecido)

Tentativa

Quero retornar. Juro. Se precisar até faço cruz e beijo pra selar meu desejo.

Mas não consigo. Está difícil sair dessa paralisia de vida. Acho que é porque quando morre alguém muito querido, boa parte de nós se vai junto. Olha só, está vendo como fico? Basta tentar e logo estou em prantos. Querendo trincar e virar pó para me perder no Universo. Talvez, quem sabe, virando poeira estelar deixe de sofrer.

É. Eu sei. Sei de tudo isso que você teima em me dizer. Agora te pergunto: quem manda no coração? Eu é que não. Ele – pelo menos o meu – tem vontade própria. Vive mandando às favas a lógica e o bom senso. Coração só quer saber de bater acelerado. Esse negócio de manter-se em equilíbrio não é com ele.

Varias vezes tentei sentar, focar e escrever algo que valha a pena publicar. No entanto, a tela, após horas, permanece em branco. Então desisto, levanto-me, desloco meu corpo para a frente de uma tela maior e ligando-a, desligo-me da realidade por mais algumas horas, anestesiando meus sentimentos e fingindo-me de feliz. Até consigo rir!

Outro dia chorei muito… Pensei até que morreria afogada em minhas próprias lágrimas. Uma revolta imensa tomou conta de mim. Revolta com a vida, com a morte, com Deus. Pela primeira vez contestei seu poder de decisão sobre nossas vidas. Pela primeira vez tive vontade de mandá-lo a merda. Pela primeira vez, ainda chorando, pedi perdão pelo grau da blasfêmia. Pela primeira vez tomei consciência de minha confusão mental e emocional. Pela primeira vez constatei minha pequenez. E chorei até esgotar toda água de meu organismo e me transformar numa rosa do deserto.

Há dias vivo, trabalho, como, bebo, durmo, defeco. Seca. Por dentro e por fora onde minha pele já demonstra rachaduras e meu interior, há muito se trincou e pouco a pouco, se esfarela por dentro.

Está vendo só? Ainda não estou pronta para voltar. Continuo não sabendo o que escrever e como escrever. Acho que minha pretensa carreira de escritora terminou antes mesmo de começar. Para se escrever bem é preciso ter alma, calor, vontade. No momento não tenho nenhum nem outro. Sou apenas uma sombra daquilo que um dia pensei ter sido.

Vou me afogar num destilado ali ao lado lendo Hemingway ao som de Chet Baker.

Se sobreviver, volto.

Difícil definição

henrique

Mudar o verbo da noite para o dia transformando alguém tão caro e próximo num personagem do passado é doloroso. Alguém que dias atrás se encontrava ao nosso lado conversando, rindo, fazendo planos, enquanto traçava una bella  pizza ou un talharim ao pesto – seus pratos preferidos. Dói.

Agora, o que resta é um bolo indigesto parado na garganta diante do fato consumado. Nunca em minha vida senti tamanha dor. Nunca.

A inquietação que assola minha mente e coração parece que vai explodir a qualquer momento da mesma maneira que implodiu dentro de si, pondo término a um ser que tinha urgência em viver pois parecia saber que havia pouco tempo.

Meu menino que começava a amadurecer e cultivar ideias de fincar raízes, formar família, ter filhos. Esse era seu sonho. Contudo, ao mesmo tempo que alimentava tais quimeras, se jogava de cabeça em tudo o que pudesse fazer. Não quis seguir com os estudos mesmo sendo um Q.I. alto comprovado por especialistas. Contrariando a todos, dizia não poder perder tempo.

Tempo…

Sempre esse senhor a direcionar nossas vidas. E de alguma maneira que nos foge ao entendimento, ele sabia que precisava correr e dar conta de fazer sua história o mais completa possível. E deixou. Um Best Seller digno de aventuras Harry Potterianas, seu personagem preferido desde a infância. Havia total identificação, inclusive física.

Tornou-se precoce cidadão do mundo . Uma inquietação sem fim o movia a vários lugares. Viveu em constante busca de seu Graal.

Dono de mil talentos, desenhava quadrinhos e até se aventurou no mundo dos Tattoos. Aprendeu a cozinhar e sabia preparar pratos com requintes profissionais. Circulou por todas as esferas. De malandros e hippies da Avenida Paulista – sua favorita – ao mundo da moda, dos artistas de teatro, TV, aos grupos religiosos cristãos.

Família…

Essa, apesar de ser sempre um ponto de atritos e divergências, era também seu porto seguro. Todas as vezes que sentia-se perdido ou inseguro, era para ela que se voltava. Renovava suas forças, alimentava-se do amor incondicional que todos lhe tinham, respirava ares de amor e retornava para o mundo.

Em nosso último encontro, enquanto saboreávamos uma pizza, ele perguntou se eu já havia escrito algo sobre ele. Pensei e respondi que sim. Ele perguntou: Sério mesmo? Escreveu? O quê? Respondi sorrindo: se quiser saber vai ter de ler meu blog inteiro e se identificar. Tenho certeza que se reconhecerá. Mas terá de ler.

Não teve tempo. E eu, desde então sigo com o mesmo aperto na garganta e coronário e com os dedos enrijecidos pela dor de perdê-lo. Tão cedo…

Caso tivéssemos escolha, teria cedido de bom grado o tanto de vida que me resta. Já vivi bastante, conquistei muitas coisas, vivenciei tantas outras. Só pelo prazer de vê-lo se realizar, casar, ter filhos e levar uma vida simples no campo. Sem correrias nem atropelos.

Uma pena a vida não ser ficção caso contrário, já teria deletado essa parte da história e dado um rumo diferente. É meu menino, não deu.

Só deixo aqui uma pergunta que – por mais que busque resposta, não encontro uma que me satisfaça: quem ou o que preencherá essa imensa cratera de um metro e noventa e dois que se abriu em meu peito?

Talvez, repito novamente Talvez, daqui um tempo, a quantidade de lembranças que você espalhou por toda parte ao tombar inerte no chão frio me satisfaça. Talvez, com paciência e coração mais compassado, consiga montar o seu quebra-cabeças e perceba o quanto foi bonita sua passagem em nossas vidas. Mesmo que meteórica. Você passou. Sua luz permaneceu.

 

Imagem: Arquivo particular

Fim de contrato

Um tropeço, um baque.

Como a vida é efêmera. Como é rápida e, mais rápida ainda se esvai deixando apenas rastros de incompreensão e…Saudades.

Como uma vida que mal começou, pode terminar sem aviso prévio, sem mensagens de despedida, sem um até breve num e-mail ou no WhatsApp?

Sendo ela uma senhora regida por regras que sempre existiram, por que insistimos em nos espantar diante de suas atitudes?

Qual o motivo de sofrermos e desistirmos dela se, desde nosso nascimento, já sabemos a que viemos?

E não adianta choro, nem promessas, muito menos barganha. O fim é inexorável para tudo. Para todos.

 

Recomeçar

Meu final de ano foi atípico. Acostumada a correria insana e o mergulho no consumo descontrolado, próprios dos finais de ano, dessa vez foi totalmente diferente.

Por conta da doença de meu tio e seu falecimento no início de dezembro, a família achou por bem, manter apenas a reunião familiar sem os festejos comuns e trocas de presentes. A presença de todos era o que buscávamos.

Desliguei-me por completo de noticiários, redes sociais e voltei-me para a convivência familiar.

Devo dizer que foi o melhor Natal em muitos anos! Pelo menos para mim que só ansiava o olho no olho, o abraço apertado e sincero, a conversa descompromissada, as risadas descontraídas.

Só não foi perfeito por receber uma mensagem avisando da morte de George Michael, do qual sempre fui fervorosa fã. Simplesmente fiquei anestesiada. Nem quis ler muito a respeito de como ele morreu. Bateu uma dor fina no peito. Segui adiante não procurando saber mais. Atravessei a semana tranquila, peguei bastante sol que me aqueceu a pele tostada pela luz do ambiente de trabalho. Senti que meu interior também aqueceu. Meu pensamento planava passando por todas as raras notícias que peguei de relance. Todas, infelizmente ruins. Se fosse uma pessoa de índole pessimista, acredito que teria terminado minha existência antes mesmo da virada do Ano Novo. Mas não sou assim. Apesar de tudo, mantenho minha alma serena. Trabalho para não entrar nessa sintonia negativa em que a maioria se atira de cabeça esbravejando nas redes sociais que o ano de 2016 foi uma merda, foi horrível, foi tenebroso.

Perdoem minha posição diante disso tudo. Não consigo pensar nem sentir assim. Tive tanto a agradecer por esse ano. Sou pura gratidão. Mas não se enganem achando que faço aqui um tratado autoajuda. Sou grata no entanto, sou consciente de que tudo o que conquistei nesse ano, não foi obra do acaso. Tudo o que conquistei foi fruto de muitos anos de trabalho externo e interno. Mergulhei fundo na minha essência e malhei o conformismo em matéria de transformação pessoal. Deixei de lado a zona de conforto e me mexi. O resultado foi apenas consequência de meus passos. Provei a mim mesma que é possível alcançar um sonho. Basta sair da postura dormente e trabalhar para realizar. Passo a passo, etapa por etapa. E claro, acreditar naquilo que se deseja almejar.

Calma. Não precisa achar que estou aqui num blábláblá de autoajuda. Longe de mim! Cada um, cada um.

E o ano de 2017 inicia mansamente mas, já apresentando suas cartas sobre como será.

Desejo apenas que você, assim como eu, lute contra esse pessimismo coletivo que assola a grande maioria. Não queira ser “Maria vai com as outras”. Ouse, arrisque-se, mostre seu potencial. Não tenha medo de sair de sua zona de conforto. Lembre-se: ela é conforto somente no nome. Entrar nessa zona é altamente maligno. Causa mal estar e transforma-nos em estátuas de sal. Não tenha medo. Ou, por outro lado, tenha sim mas não permita que ele te paralise diante das situações que se apresente. Que sirva apenas de norteio para seu caminhar e te proteja de ataques. Independente da crença que se tenha, deixo aqui, um lema que norteia meu caminhar que foi dito por Chico Xavier que seu mentor espiritual, Emmanuel, sempre disse e eu acho o máximo da boa vivência:

Confia e segue!

É com essa máxima que termino meu texto e convido a todos para seguir o ano de 2017 lembrando-se dela e transformando esse simples frase num coquetel vitamínico que te impulsione para frente. Feliz e consciente 2017 para toda a humanidade!

P.S: Em tempo, falei acima do George Michael e deixei de finalizar. Hoje, após uma semana de seu desaparecimento entre nós, tomei a iniciativa de ouvir toda a sua discografia. E tive a confirmação daquilo que já sabia: Que cantor maravilhoso ele foi. Não me interessa sua vida pessoal, seus erros e acertos. O que ele deixou para a posteridade através de sua bela voz, pra mim é suficiente. Descanse meu querido.

Cantiga de ninar para menino M.

1882-crianca-adormecida

Vá. Não tenha medo menino M. Abra seus olhos internos e enxergue a beleza do outro lado. Observe a multidão que te aguarda, ansiosos por seu retorno. Desapegue-se das preocupações de uma vida inteira com os outros. Sua vida passou e ficará impressa na história familiar. Acredite, foi escrita com tinta de ouro e servirá de modelo para as gerações seguintes.

Não chore. Para que esse bico e esse olhar de pesar? Entendo… Despedidas são sempre dolorosas. Mas não estamos dando um adeus. Não! No máximo… Um até breve.

Ei! Pára com isso menino M. Qual o motivo para essa cabeça baixa, olhar melindrado? Até me fez lembrar quando, pela primeira vez na escola, assustou-se por estar longe de sua mãe.

Lembra que depois pegou-se de paixão infantil pela professorinha que tanta atenção lhe ofertou? Recorda que tornou-se seu braço direito na pequena sala de aula? Durou tão pouco não é mesmo? Gostaria de ter-se formado doutor mas, a dureza da realidade familiar exigiu que regressasse para o campo. Coração apertado, aceitou seu destino e seguiu os passos de seu pai.

A vida prosseguiu. Enfrentou tempos difíceis. Provou ser uma pessoa do bem. Assimilou os valores passado por seus pais. Transformou-se num guru. Admirado por muitos, temido por outros.

Confesso que por uns tempos, preocupei-me com você.Sua atitude beirava a arrogância e isso não representava sua essência de menino.

Que bom que se reencontrou! Precisou ocorrer um comprometimento neuro cognitivo para assumir o posto, a criança leve e sorridente que outrora foi.

À partir daí  reaproximei-me de você. Agora falávamos de igual para igual.Lembra de nossas conversas? Fluíam que nem víamos a hora passar.

Preciso te dizer uma coisa: Não precisa mais chorar de saudade de sua mãezinha. Repare à sua frente. Ela acena para você esboçando seu doce sorriso. Traz os olhos marejados de felicidade em recebê-lo novamente em seus braços. Vá. Não relute.

Siga sem pestanejar. É a porta da redenção que se abre para você. Ficar só te trará sofrimento. Você não pertence mais a esse lado. Nesse grande tabuleiro chamado vida, você ousou e movimentou-se com maestria. Foi um vencedor. Mesmo que para muitos, você seja um fracassado. Não dê ouvidos. Sua elevação os incomoda.

Menino M., deixa de enrolação e vá. Ultrapasse essa linha tênue que o separa da real felicidade. Até eu consigo ver daqui a alegria que impera do outro lado dessa margem. Bandeirolas brancas enfeitam a cidade. A banda de música toca sem parar anunciando sua chegada. Observe quantos olhos curiosos em te ver chegar. Lá, é dia de celebração e você é o motivo de tanta festividade.

Não! Pare de se preocupar conosco! Não ficaremos em desamparo. Aprendemos com suas lições a sermos maiores. Já sabemos caminhar sozinhos. E, apesar da provável separação, só em sabermos que estará feliz e liberto de tudo isso, nossos corações já se enchem de alegria. Vá na frente e prepare o terreno para quando chegar nossa vez. Ah! Antes que me esqueça, tenha a certeza de que jamais o esqueceremos. Jamais.

Menino M., morra em paz. Renasça em paz ao lado dos seus que o esperam. Mande notícias nossas e diga a eles, que mantemos suas memórias intactas que são constantemente revividas nas reuniões familiares.

Isso. Seja um bom menino. Durma o sono da eternidade e sonhe os seus mais belos sonhos. Os anjos velam por você. Um som angelical soa ao longe embalando a todos.

Foi-se. Até breve menino M. Até breve…

Imagem: Criança adormecida (Leon Perrault – 1882)