BEDA – Reacender minha ancestralidade

Retornar às origens, renova as energias, traz de volta nossos antepassados queridos, através das lembranças e, fortalece os laços afetivos entre os que participam do ritual.

Recordo com carinho, os momentos em que a família se reunia — em torno do pilão de madeira de meus avós — no quintal. A união de todos para o feitio da paçoca de amendoim, se transformava em festa. Dos mais velhos às crianças, todos aguardavam sua vez de socar o amendoim, a farinha de mandioca e o açúcar, contribuindo para garantir sua porção.

Uma fila animada se formava para que, cada um, tivesse sua vez de socar com prazer, observando a transformação.

Risadas, piadas e lembranças, se misturavam dando liga ao doce. Esses eram os ingredientes que faziam de um simples e antigo alimento, uma iguaria abençoada pelos deuses.

Ainda criança, recordo a expectativa que aquecia e fazia disparar meu coração. Na fila, aguardando, minha vez, pulava sem parar, rindo feito hiena.

Nem me preocupava em levar bronca. Nesses momentos, os adultos também viravam crianças e se comportavam da mesma forma.

Enquanto socavam, uma cantoria surgia e — fixou em minhas retinas da memória — o brilho de felicidade nos olhos da vó Maria. Sem dúvida, a maior das crianças ali presente.

Naqueles encontros, a união familiar emanava uma energia que trazia ao presente, a ancestralidade indígena e africana que todos nós trazemos em nosso DNA. Cantar, bater o pé no solo de terra batida e as mãos, em sintonia com as vozes, despertavam todos que adormeciam em outras esferas.

A festa seguia iluminando a todos. Paçoca pronta, cada um pegava uma colher para prová-la, ainda dentro do pilão. Sem cadeiras para todos, os mais novos sentavam-se no chão. Por alguns minutos, um silêncio imperava enquanto sentíamos o doce envolver nosso sistema digestório.

O pilão ainda existe. Foi restaurado após anos de abandono no porão. Se transformou num item de decoração, na casa de um dos tios.

Minha ancestralidade anda esmurrando a porta do coração. Deseja sair e se manifestar. Vontade absurda de bater os atabaques, soltar a voz e chamar de volta, todos que adormecem.

Texto faz parte do livro Quinta das Especiarias, publicado pela Scenarium Livros Artesanais

Esse texto faz parte da blogagem coletiva BEDA (Blog Everyday April).

Participam comigo:

Alê Helga – Claudia Leonardi– Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins

Flor rara

Tocada pelas lembranças da minha meninice, de repente, me vi frente a frente com uma mulher muito querida e que foi presença constante. Há pessoas que passam por nossas vidas e partem sem deixar vestígios. Outras tantas, são verdadeiros meteóros, que na rapidez da luz, vêm e vão para nunca mais. E, existem aquelas que carimbam em nossas almas, suas presenças para toda a eternidade.

Em meu projeto de crônicas que em breve publico apresento mulheres que fizeram parte de minha vida e deixaram um legado de alegria, amor e muita comida gostosa. Cozinheiras que marcaram presença no âmbito familiar. A flor rara, foi uma das mulheres mais queridas de minha vivência. Sua risada contagiante sempre mexeu comigo. Que saudade boa toma conta de mim, cada vez que recordo passagens ao lado dela.

E você, tem alguma lembrança boa e uma história ligada a um prato para me contar? Quero muito saber!

Temperando minhas memórias

O ano de 2020 foi atípico em muitos aspectos, mas devo dizer, que me foi benéfico. Girei a chave e mudei a rota de minha vida. Cansada da mesmice e da galhordice de muitas pessoas com a qual convivia, resolvi zerar a conta e iniciar tudo de novo. Muitos interpretaram minha decisão como louca, irresponsável, imatura. Para esses, que só conseguem enxergar a superfície, dou uma bela de uma banana. Falando mais claramente: Foda-se!

Lembro que, nessa mesma época, no ano passado, estava terminando meu projeto Diário das 4 Estações com o título Equação Infinda. Passei meses da quarentena me dedicando a escrita desse belo trabalho.

Final de junho, entreguei mais uma obra para minha editora ler e aprovar (ou não), afinal, pode não estar bem escrito, à altura de uma publicação.

Dessa vez, voltei às minhas origens: literária e de vida. Cronista desde sempre, é o gênero em que mais me sinto confortável para escrever. Antes de iniciar a escrita, mentalizei e pedi permissão e bençãos às deusas Deméter, Fames e Ukemochi, para a plena realização do projeto.

Por isso, divido com vocês leitores, a notícia sobre o próximo livro a ser lançado, em breve. Desde já, deixo a porta da cozinha aberta — cozinhando em banho-maria — para dar tempo de vocês sentirem fome de boas histórias, contadas ao redor de uma mesa rústica, acompanhado de uma xícara de café, passado sempre na hora, num coador de pano. Ah, caso não aprecie essa bebida e prefira um chá, sinta-se à vontade, trago em minha dispensa, inúmeros tipos a escolher. Seja meu convidado!

Imagem licenciada: Shutterstock

Amor padrão risca de giz

Em meio aos caos de início da noite, numa cafeteria frequentada por jovens, uma pessoa se destaca. Sentado sozinho numa mesa de canto, o homem saboreia seu café com o pensamento longe dali. Relembra sua mocidade constatando que lá atrás, já era um frequentador de cafeterias. Sempre foi o local preferido para pensar, observar e escrever. Muitos textos a princípio e depois, com carreira já consolidada, vários de seus livros foram escritos nessa ambiente. Sorri de forma desencantada ao relembrar que esses espaços eram cheio de charme e liberdade.

Hoje, transformadas em espaços glamourizados, pessoas circulam por elas munidas de seus notes, tablets, smartphones, isolando-se em seus mundos virtuais. O que antes era recinto para acolhimento e troca de ideias, hoje, tornou-se depósito de seres humanos robotizados e alienados.

Nem mesmo se tem a liberdade de acender um cigarro e, entre uma tragada e outra, liberar ideias e desenvolver roteiros para um novo romance ou conto.

Enquanto simula profunda tragada num cigarro imaginário, o senhor ajeita a flor na sua lapela, alisa o tecido da calça no padrão risca de giz e abre um envelope amarelado pelo tempo. Uma carta se abre diante de seus olhos cansados que – ao percorrer suas linhas -, ganha um brilho intenso.

Se alguém prestasse atenção, veria um personagem bem interessante saído de um filme noir.

Dobrando a carta e devolvendo-a ao envelope, saboreia mais um gole do café fazendo careta. Massageia o rosto flácido, coça a cabeça que ainda mantém uma cabeleira farta. Guarda o envelope no meio de um velho livro de capa de couro.

-Ana Maria… por onde andará a essa altura da vida? Será que ainda é viva?

-Senhor? Falou alguma coisa? Deseja mais café? – pergunta uma jovem garçonete que limpa a mesa ao lado.

-Não minha filha. Sou só um velho resmungão que tem por costume falar sozinho.

-O senhor é muito refinado. Sempre que aparece pede por favor, agradece. Um cavalheiro! Isso não existe mais não.

-E você minha jovem, demonstra ter um olhar para o próximo e está sempre com um sorriso nos lábios para atender a todos. Isso também é raro.

-Sim. Mas hoje, percebo que o senhor está triste. Desculpe se estou sendo invasiva mas, aconteceu alguma coisa?

-Além de jovem, bonita e atenciosa, ainda é observadora. Agora virei seu fã!. Tem razão mocinha. Hoje, acordei saudoso de um tempo que não volta mais. Coisa de velho solitário. Não liga não.

Dizendo isso, toma um último gole do café já frio, reúne seus pertences, ajeita o chapéu de feltro cinza na cabeça e sai, desejando boa noite para a moça.

Pensativa, a garçonete recolhe a xícara usada pelo senhor. É quando percebe algo caído próximo a cadeira: uma foto em preto e branco com um belo casal de jovens abraçados e sorridentes.

A moça, linda em seu vestido rodado e chapéu com véu cobrindo parcialmente seu rosto bem feito. O jovem, impecável em seu terno estruturado em risca de giz, chapéu de feltro e um cigarro acesso no canto da boca.

Romântica, a jovem guarda a foto em seu avental para, no dia seguinte, devolvê-la a seu dono. Não deseja tomar para si talvez o único elo de um passado feliz de um velho solitário. No fundo, sente uma pontada de inveja por não ser a moça feliz ao lado do jovem amoroso.

-É, já não se faz amor como antigamente…

-Falando sozinha Janaína? Deu para isso agora?

-É chefe. Às vezes tenho isso.

-Então deixa os devaneios de lado e vá atender a mesa 8.

-Ok!Ok! É vida que segue. É trabalho que chama!

Imagem licenciada: Shutterstock

Aquarela borrada

aquarela-bolognesi

Sabe aquela inquietação, misto de ansiedade, medo e vazio, que toma conta da alma? Pois é, amanheci assim.

No desjejum da manhã chuvosa e fria, me alimentei de saudade acompanhado de ovos estralados. Mastiguei por um longo tempo relembrando nosso lindo encontro que jamais aconteceu.

Insisto em fantasiar. Uma maneira que encontrei de manter-te real ao meu lado nessa solidão que mergulhei.

Não reclamo. A solidão – que para muitos é o fim da rota, para mim, é boa companhia. Gosto de minha rotina, de meus silêncios pontilhados por trilha musical de Chet Baker e Cesar Camargo Mariano. Aprecio minha voz não pronunciada que permanece dentro de mim. Sou boa companhia. Converso bastante com meu eu e, através de nossas conversas, filosofamos noite adentro.

Relembrei a viagem a Paris que tanto sonhei ao teu lado. Você, como sempre, amarelou no último instante. Jamais assumiu o medo de avião. Medo esse, que te impediu de ser feliz e realizar seus sonhos diversas vezes na vida. Segui sozinha imaginando-te sempre ao meu lado. Descobrindo os becos da cidade luz, sorvendo o beau vin que as bodegas ofertam. Desvendei a cidade de metrô e em poucos dias, já me sentia uma legítima parisiense.Acho que nasci pra isso! Fui ficando. Em pouco tempo consegui emprego de garçonete num restaurante três estrelas frequentado por pseudos escritores e artistas de todos os gêneros. Pessoas incríveis que me acolheram com carinho legítimo. Me senti em casa! Os anos passaram muito rápido. Virei artista incentivada por todos. Primeiro, comecei a desenhar, depois pintar. Virei excelente retratista. Passei a vender meus quadros na Place du Tertre. Em pouco tempo fiquei conhecida. Fui apresentada à  Jean-Paul, músico, instrumentista e com ele, me aventurei. Descobri ao seu lado que cantava bem. Uma voz pequena como a de Nara Leão e fiz  sucesso cantando Bossa Nova misturada com Techno. Gravei dois CDs que ainda hoje fazem sucesso nas discotecas locais. Hoje, amadurecida, descobri a escrita. Escrevo memórias. Minhas e dos outros. Não alcancei o hall da fama muito menos virei Nobel da literatura. Não é meu objetivo. Escrevo mais pra mim do que para os outros. É a forma que encontrei de deixar minha marca nesse mundo.

Continua chovendo. A janela embaçada pelos respingos d’água mostram uma cidade mais cinzenta do que de costume. Gosto do que vejo!

Reponho mais café em minha caneca, aspiro seu aroma inconfundível e tento lembrar com mais nitidez seu rosto e contornos. Já passaram tantos anos e ainda não te esqueci. No entanto, sua imagem ganha tons esmaecidos. Assim como a paisagem na janela. Tento escrever sobre você como forma de te fixar a minha realidade. A memória que ainda guardo escorre feito tinta fresca em excesso se transformando num grande borrão do passado.

Imagem: Marion Bolognesi

 

Resgate

bau velho

Foi com alegria e certa curiosidade que encontrei no fundo do porão da antiga casa de minha avó, um velho baú. A peça foi do meu avô e encontrava-se coberto de pó e teia de aranha. Tossindo um pouco devido a minha alergia, precisei levantar do chão, me afastar e acalmar os pulmões agredidos pelo excesso de pó e lembranças.

Voltei para perto do baú e, respirando fundo, abri. Uma profusão de fotos, correspondências, bottons, pulseiras, apito e muitas outras coisas antigas guardadas de forma desorganizada dentro da peça.

Meus olhos se encheram d’água. Em parte pelo tanto de lembrança que retornaram de tão profundas gavetas da memória. Em parte, pelo tanto de cheiro de velharia, mofo e umidade que exalava do baú.

Com esforço, empurrei o baú para perto da única janela que existia no porão, que dava para o jardim. para melhor respirar e remexer aquilo tudo. A curiosidade falando mais alto. Sentei feito índio e comecei a jogar tudo pra fora e selecionar as inúmeras fotos P&B, binóculos, álbuns com suas capas rotas e amarelecidas pelo tempo.

Iniciei a investigação pegando foto por foto e tentando identificar ano, pessoas, lugares.

Numa foto quase apagada, reconheci a antiga estação de trem da minha cidade. Digo reconheci, porque já vi outras fotos da mesma época, num enorme painel em eterna exposição no museu da cidade. Na minúscula plataforma, está um grupo de pelo menos dez pessoas. Homens de terno, gravata e chapéu de feltro. Mulheres de vestido rodado, salto agulha ou sapatilha, cabelos presos num coque ou num rabo de cavalo ou com presilhas. Reconheço minha mãe entre as mulheres. Garota de seus quinze anos, cabelos cacheados na altura dos ombros, saia rodada e plissada, blusa de ban-lon, sapatilha e meia soquete. Parei ali, naquela figura que se perdeu no tempo. Naquela menina que não cheguei a conhecer mas que me era tão familiar apesar da distância. Todos sisudos na fotografia. Típica pose da década de 50.

Reconheci a irmã mais nova de minha mãe que se vestia de forma semelhante mas, com a diferença de usar salto alto.

Tão lindas! Tão jovens! Tão cheia de sonhos!

Sonhos…Essa ideia ficou martelando e questionei quais seriam os sonhos que elas acalentavam naquele momento vivido? Sei por palavras de minha própria mãe que ela não tinha tempo para sonhar. A vida sempre foi dura para ela e não foi dado a chance nem o direito a sonhos. Segundo ela, aceitava o que a vida lhe ofertava.

Sempre que ela dizia isso, me causava mal estar. Para mim, eterna e assumida sonhadora, a vida sem eles era praticamente impossível. O que veio depois eu soube, acompanhei de perto a luta das duas para enfrentar tantos reveses que a vida apresentou. Sei que, apesar das diferenças existentes entre elas, sempre foram amigas e companheiras. Com o passar dos anos, minha mãe se anestesiou. Minha tia, amargou e envelheceu barbaramente.

Olhando novamente as fotos – sim, fotos pois encontrei outras do mesmo passeio, um piquenique no Pico do Jaraguá, reconheci duas amigas de minha mãe e tia que até hoje frequentam minha casa. Nas fotos, duas moçoilas irradiando juventude. Hoje, uma está quase cega e paralítica. A outra, ácida e revoltada com o que a vida lhe presenteou. Desquitada, mãe de um único filho que herdou sua revolta, tornou-se uma religiosa da pior espécie não vendo a hora de morrer para ganhar o céu. Coitada! Ainda crê nisso! A outra, mesmo cega e sem poder andar, manteve a chama da alegria e serenidade acesas dentro de si, sendo uma presença amorosa que dá prazer em reencontrar.

Daquelas fotos, a maioria das pessoas ali presente no piquenique já estão mortas ou a beira de. Por instantes, bateu uma fina dor em meu peito ao ver o quanto a vida é efêmera. Passamos por ela numa velocidade atroz. Nos binóculos, reconheci a criança que fui ao lado de minha irmã mais velha e duas primas. No meio delas, em frente ao portão da minha antiga casa, estava registrada para a eternidade, uma criança de seus três anos, ridícula num vestidinho curto deixando à mostra uma fralda avantajada deixando-me parecida com uma saúva branca. Comecei a rir da comparação. Cabelinho tigela, liso e ralo, olhar distante de quem não estava entendendo nada e o eterno dedo na boca. Sempre tive essa mania. Até hoje gosto de ficar assim. Minha irmã, também de cabelinho tigela, saia xadrez de lãzinha – lembro dela vermelha e azul-marinho pois também a usei mais tarde. Blusinha com laçarote, sandália verlon. Minha prima, um vestido tubinho com laçarote fino, botinha branca de verniz curta e uma boina de lado na cabeça. Minha outra prima, irmã mais nova, vestia uma calça cigarrete xadrez, sapatilha branca de verniz (pelo jeito era moda) e uma blusinha marinheiro.

Tão bonitinhas, tão meninas e tão sisudas nas fotos. Sempre achei graça na seriedade das fotos antigas. Hoje, ao contrário, todos gostamos de fazer caras e bocas, caretas espalhando sorrisos para registrar uma alegria muitas vezes falsa.

Revirando um pouco mais, encontrei um convite de casamento de um casal de tios, um santinho de alguém que se foi e não conheci, um álbum de figurinha que pertenceu ao irmão caçula de minha mãe…Um Bat Beg lilás que me acompanhou por um bom tempo deixando meus braços com hematomas semelhantes ao brinquedo! Então ele estava aqui o tempo todo! De uma hora pra outro meu brinquedo favorito sumiu não deixando rastro de seu paradeiro. Cheguei a achar que tinham roubado ele na escola. Só pode ter sido minha mãe quem o escondeu. Ela odiava seu barulho e temia que me machucasse feio. Peguei nas mãos e tentei brincar como nos velhos tempos. Era um ás nesse brinquedo! O máximo que consegui foi fazer reaparecer os hematomas que colecionava no passado e constatei o quanto isso dói. Encontrei o boneco Mickey de minha irmã caçula com a orelha mordida. Lembrei o quanto eu gostava de assustar a pobre criança no berço com esse boneco. Eu era terrível!

-Tia, finalmente te achei! Está todo mundo te procurando. O caixão já foi fechado e está todo mundo indo pro cemitério. Infelizmente, você perdeu o bonito discurso do tio Lázaro. Ele é bom nisso hein? Podia ter sido político ou padre. O que você está vendo?

-Vidas. Após uma que se foi, precisei resgatar outras para aplacar a dor que estava sentindo. Não dizem que recordar é viver?

-Ah tia, pára com isso. Ficar remexendo velharias não faz bem a ninguém. Vem, sobe comigo que quase todo mundo já se foi. Você vai comigo em meu carro.

-Tá. Só me faz um favor

-Sim?

-Ajude-me a levar esse baú pois a partir de hoje ele é meu.

-Tia, mas isso é velho demais e está muito empoeirado. Deixa isso aí vai.

-Não. Ele vai comigo pois faz parte da minha vida. Sem ele, não saio daqui.

-Ai,ai,ai porque que todo mundo que envelhece se apega tanto as coisas antigas hein? Meus pais são iguaizinhos. Tá bom, eu levo pra você.

Saímos do porão em silêncio. O sobrinho, já homem feito. Alto, musculoso, bonito em seus vinte e quatro anos carregando o pesado baú e eu, cinquentona, já sentindo o peso de muitas experiências mas com a chama da alegria em viver acesa. Chegamos à rua e, ao entrarmos no carro, já distanciando da velha casa tive a certeza de que, se meu sobrinho conseguir envelhecer, saberá da importância de se resgatar memórias. Sorrio melancólica enquanto que pela janela, paisagens familiares vão ficando para trás. A vida segue.

Imagem: Google

Traço inacabado

traço inacabado

 

Já nasci saudosa. Essa é minha marca maior além do coração sem fundo, olhar curioso de eterna infante e uma vontade infinda de ser feliz. É claro que nem sempre isso é possível e aprendi, no decorrer de minha existência, a aceitar a vida como ela se apresenta.

Da mesma forma, busco olhar meu próximo com lentes e filtros da tolerância. Não sou religiosa. Já fui, e muito, no entanto, afastei-me por questionar tudo e tornar-me figura “non grata” diante da gleba hipócrita.

Guardo em minhas gavetas da memória, momentos que gravei para a eternidade. Lembranças da infância, são muitas, são felizes, são puras. Época em que não sabia contabilizar muito menos separar o certo do errado, o bonito do feio, simplesmente vivenciava cada dia sem me questionar sobre nada. Deixava-me levar pela vida. E era feliz!

Não me importava em ter apenas um sapatinho verlon, uma meia rota, um vestido que já havia passado por diversas crianças até chegar a mim.

Brinquedos? Somente o que minha avó Maria confeccionava. Havia as almofadinhas das Cinco Marias recheadas de arroz, as bonecas feitas de papel machê e retalhos de tecido. Na realidade, não tive muitos brinquedos mas brinquei exaustivamente! Sou de uma geração em que se ia para as ruas, formava-se turmas e brincávamos o dia inteiro. Era pique, pega-pega, passa anel, estátua, queimada… Tantas eram as brincadeiras na rua, que até então, era território das crianças e não dos automóveis.

Ao final da tarde, minha avó e outras mães chamavam as crianças para o banho e depois o lanche que sempre tinha bolos, biscoitos, broas de milho, geleias acompanhadas do tradicional café com leite ou chá preto.

Como era bom! Anos mais tarde conheci o pão de queijo que uma prima de minha mãe aprendeu a fazer e vez ou outra, fazia de baciada e chamava a criançada para saborear.

Sim, isso era felicidade! Comilanças alimentando o bucho (termo de minha avó) e muita conversa alimentando a alma.

Tive uma infância pobre, contudo nunca faltou alimento em minha casa. Podíamos não ter uma mesa farta em supérfluos que hoje compramos no supermercado, mas sempre tivemos o pão, o leite, a manteiga, o café e o feijão com arroz.

A carne para acompanhar, recebíamos de uma prima minha que era casada com um português dono de churrascaria. A sobra, ele trazia para sua casa e dividia com as famílias menos favorecidas. Graças a Deus estávamos na lista dos desfavorecidos e jamais faltou um naco de carne e linguiça em nossos pratos. Assim como também nunca faltou as frutas e uns doces que recebíamos de uma tia, irmã caçula de minha mãe que aparecia uma vez ao mês e nos brindava com Dan top.

Um para cada criança. Comia devagarinho para prolongar o prazer de comer chocolate. Adorava me lambuzar toda e depois lamber os dedos, a mão, a embalagem.

Sou canceriana nascida em pleno dia 24 de junho, dia de São João. Por conta dessa data, muitos aniversários foram celebrados de frente a uma fogueira comendo batata doce assada, pé de moleque, pipoca, bolo de milho e quentão – no caso só para os adultos. Para a criançada, ki-Suco de uva. Tomava como se fosse iguaria dos Deuses!

E havia também a paçoca de roça da vó Maria. Ah… Que festa se fazia cada vez que vó Maria convocava a família toda para socar o amendoim e o açúcar no pilão centenário até se transformar em paçoca. Era uma farra só. Fazíamos fila indiana para socar o pilão e a cantoria corria solta acompanhada de muitas risadas. O brilho de prazer nos olhares ficou registrado na minha memória. Coisa gostosa lembrar a barriga da minha avó balançando de cima pra baixo enquanto cantava, assoviava e ria. Tudo ao mesmo tempo e dizendo: Soca direito canaiada! Soca com gosto, pra valer! – e dizendo isso caía na risada banguela que me encantava.

Sua lembrança é tão nítida em minha mente: baixinha, gordinha, sempre de vestido florido e avental. E jamais se separava de seu lenço na cabeça feito camponesa que foi de fato. Mesmo morando na cidade, não abriu mão de seus hábitos. Cozinhava assobiando canções de Cascatinha e Inhana:

Índia seus cabelos nos ombros caídos
Negros como a noite que não tem luar
Seus lábios de rosa para mim sorrindo
E a doce meiguice desse seu olhar
Índia da pele morena
Sua boca pequena eu quero beijar”

E o que dizer do vô Dito, índio de nascença, criado por família branca, músico nato que tocava um bandolim como poucos. Cozinheiro exímio, desenhista talentoso que instigou e deu-me a mão nos primeiros passos de meus riscados. Adorava me desafiar e assim, de linhas em linhas fui aprendendo e aperfeiçoando meu traço nos desenhos. Como ele, virei retratista e passei a andar sempre com um bloco de papel e lápis olhando, observando e desenhando todos que me chamavam a atenção.

Sua morte, atropelado numa avenida movimentada serviu de divisor de águas em minha vida – até então, inocente e longe de qualquer fantasma.

Sofri muito. Sentia sua falta e cheguei a ficar doente. Anos mais tarde, já adulta, soube pela minha mãe que minha professora chegou a avisá-la de ter me visto várias vezes no local de sua morte olhando para o solo de piche.

Confesso que até hoje não me lembro desses dias.

Segui os outros anos até chegar a adolescência desenhando cada vez mais e melhor. Cheguei a ganhar uma maleta com várias bisnagas de tinta a óleo e pinceis de todos os tipos e tamanhos além de telas. Ganhei esse precioso presente de um pintor naif, hoje conhecido mundialmente por Madalena. Foi uma alegria tão grande que passei a pintar sem parar.

Até que a vida me chamou para a dura realidade e passei a trabalhar longe de casa para ganhar um salário melhor. Não tive mais tempo para desenhos, pinturas e sonhos.

A vida me embruteceu. Por mais de trinta anos, nunca mais peguei num grafite muito menos em pincéis. Houve um bloqueio no desenho, ocorreu uma atrofia no músculo principal – meu coração, transformando-me num autômato. Passei anos a fio somente executando tarefas materiais e necessárias. A rotina me engoliu fazendo-me refém da acidez. Deixei de enxergar beleza, leveza. Tornei-me rude comigo mesma e com as pessoas.

No entanto, essa tal vida que tanto falei até agora, essa mesma aprontou comigo no sentido de trazer-me à razão. Ela, a vida, é ladina, safada, malandra e deu uma rasteira para que eu num voo solo pudesse enxergar novamente quem eu era de fato. Não esse estereótipo que abracei e finjo diariamente que sou.

Sou uma junção de sangue, carne, nervos e sentimentos que percorrem toda a carcaça física e transcende a matéria se expandindo para todo o universo. Sou dotada de pura emoção e represando tanto tempo isso, é claro que não iria fazer bem. A rasteira que a danada da vida me deu não vem ao caso mas a reação que ocorreu em mim, ah isso sim, vale a pena comentar.

Ela me deu um looping dos bons me fazendo da noite pro dia, uma atleta de seu time. Era isso ou minguava. Preferi viver e retornar à minha antiga e sempre presente pessoa que fui e ainda sou. Só me encontrava anestesiada pela rotina.

Hoje, voltei a valorizar o belo, a poesia, a música e até voltei a traçar. Não é que continuo com meu traçado firme?

Compreendi que meu traço não tem fim, assim como a vida, é inacabado e digo isso porque tenho a certeza que nada termina por aqui. Caso contrário, seria muita sacanagem dela, a vida.

E ela, de tão boa ainda me ensinou outros traçados como esses, que acabo de escrever.

Imagem: Marcos Andolphatto

Lembranças…

Para quem ainda não sabe, tenho participado com alguns contos na revista literária Plural que está sob o comando de Lunna Guedes. Na última edição, o tema foi Lembranças e eu mergulhei com tudo nas minhas e transformei-a num belo conto. Convido a todos para conhecer a revista e os demais autores que nela se encontram. A revista está ótima pessoal!

Para ler

rubem plural

Escrita embolada, crise de idéias, preguiça mental. Ou tudo isso junto!

escrita

Sobre o que mesmo desejo falar?

Não sei…

Já quis sentar e escrever por horas a fio sobre amor, desamor, partidas, chegadas, vida, morte, gozo e tantos outros temas que dão boas histórias.

Mas agora? Não sei sobre o que escrever. Só sinto a necessidade absurda de preencher linhas vazias e invisíveis com palavras, pensamentos, histórias. Só não sei ainda sobre o que definir como história ou tema para desenvolver.

Estou cansada! Um cansaço bravo que chega a doer nos ossos. Ardem meus olhos também e sinto que esse cansaço aliado a essa dor vem da alma. Será que isso é envelhecer?

Volto-me para dentro e procuro abrigo entre as colchas remendadas de memória. Elas sempre me aquecem quando sinto esse frio que vem de meu interior percorrendo minha espinha dorsal chegando ao âmago cerebral disparando o alarme de que sinto-me só e infeliz.

Ganhei essas colchas de minha avó. Um dia ela me chamou, pediu para sentar a seu lado. Enquanto descascava os pinhões, entre uma mordida gostosa e outra que dava, olhava para mim, me analisava, pensava como iria abordar uma questão tão séria a uma menina de onze anos.

Com toda sua sabedoria de vida, ela conseguiu me transmitir uma história bonita que só e ainda me presenteou com essas colchas de memória.

– Marina, essas colchas recebi de minha avó também e repasso a você porque vejo que é uma menina especial, dotada de certos talentos e dons que poucos têm. Lá na frente já adulta você entenderá por completo essa minha conversa. Será a detentora dessas memórias que te passo. Tenha cuidado com elas, são frágeis e necessitam de constante atenção caso contrário, apagam-se feito foto polaroid.

Detenho toda a memória da família. Uma farta bagagem e arquivos sem fim de sentimentos, perdas, ganhos, decepções, alegrias de tantas e tantas gerações. Meu armário interno já se encontra abarrotado dessas colchas. Desejava imensamente ter descendentes para repassar essa bela e árdua missão. Mas parece que ela terminará comigo! Já passei da idade de procriar. Não vejo a quem possa repassar essa linda tarefa. As vezes me pego com um sentimento forte de fracasso. Fracassei como mulher e acho que também como mantenedora de memórias.

Desculpa vó! Não vou conseguir dar conta direito disso.

Está vendo só? Não consigo nem mesmo dar uma continuidade a essa bela e promissora história! Perco pouco a pouco o talento para a escrita. Se é que algum dia já tive. Tenho minhas dúvidas.

Por hora, fico por aqui antes que escreva mais bobagens deixando meu leitor de saco cheio comigo. Vou lá mas volto e você caro leitor, não desista de mim não. Uma hora retomo a escrita com gosto.