
– Você não é doutora!
Uma voz pequenina e aguda deu seu veredicto.
Sonia espantou-se e olhou para o lado vislumbrando uma criança mirrada, de olheiras profundas e cabelos escorridos e ralos.
– Sou sim! Não reconhece meu jaleco e estetoscópio? Só médico usa isso!
A pequena a mediu de cima a baixo, deu uma volta inteira observando cada coisa que compunha sua figura. Parou diante de Sonia, botou a mão no queixo e como um verdadeiro filósofo sentenciou mais uma vez:
– Mas não é doutora mesmo! Médico não é assim.
– Mas então… O que sou? Pode me dizer?
– Não sei não. Não sei se é criança, se é adulto… E ainda por cima está doente.
– Doente? Eu? Como pode falar isso?
– Doente sim! Olha só para suas pernas. E você deve estar bem pior que eu. Tá numa cadeira de rodas! Eu ainda consigo andar. Só me canso um pouquinho.
Não aguentando mais se segurar, Sonia caiu numa risada contagiante que fez as demais pessoas que se encontravam por perto rirem também.
– Pequena você é bem esperta pro seu tamanho. Como seu chama?
– Juliana E você?
– Sonia.
– Já que agora somos amigas, me fala: o que é você?
– Como assim? O que sou?
– Ah, é como te falei antes. Não consigo saber se você é criança ou adulto.
– Jú, posso te chamar assim né? Digamos que sou uma adulta com alma de criança. Ou uma criança no corpo de um adulto. Como achar melhor.
– Ahhhhh, entendi! Posso?
– O que?
– Passar as mãos em seus cabelos? Eles são tão brilhosos!
– Pode. Vem cá, dá sua mão. Passa assim. Isso!
– Macio!
– O que foi? Está chorando pequena Jú?
– Sim! Queria que meus cabelos fossem como os seus! Olha só como os meus estão podres! Arrebentam todinho! E dizendo isso caiu num pranto só.
– Vem cá minha amiguinha, senta aqui no colo da tia Sonia. Pode vir.
Aconchegando a menina em seu colo, Sonia a abraçou com tamanho carinho e emoção que algumas lágrimas também rolaram de seus olhos pintados.
– Minha pequena você é tão linda e especial! Seus cabelos estão caindo agora porque está para nascer outro mais forte. Por isso, não fique triste não. Em pouco tempo você terá novos cabelos e até mais bonitos que os meus. Acredite! Dou minha palavra de honra. Não é mesmo Doutor Fila Boia?
Outro doutor se aproximou das duas e as abraçou dizendo:
– A doutora tem toda razão Jú. Não tem por que ficar triste. Além do mais, hoje é dia de folia minha gente! Vamos cantar dançar e se divertir!
Após Doutor Fila Boia decretar que era festa, o saguão pegou fogo. Todas as crianças começaram a cantar e a dançar.
– Você não é doutora mesmo!
– Mas dizendo isso novamente!
– Eu ouvi você dizendo pro Doutor Fila Boia que está quase na hora de tomar seu remédio. Se você toma remédio, é porque está doente!
– É verdade pequena Jú! Agora você me pegou! Estou só um pouquinho doentinha. Nada grave.
– Sabia que eu também sou doentinha? E que todo mundo aqui também? Ó! A Kátia, aquela ali no canto com uma touca colorida e usando sonda, aquele menino que carrega o soro, aquela outra ali sentadinha com carinha de choro, a Laurinha. Ela está triste porque seus pais não vieram ainda. Talvez nem venham… Ei! Estão distribuindo salgadinhos e doces. Vamos lá pegar? – e dizendo isso saiu em disparada deixando Sonia de boca aberta com tamanha desenvoltura e beleza da criança.
– Está tudo bem? – disse Doutora Rabanete se aproximando de Sonia e dando um abraço nela.
– Sim! Apenas refletindo sobre a alegria de todas essas crianças que mesmo em condições difíceis, não deixam jamais sua alegria esvair-se. Às vezes me repreendo, pois me pego com pena de mim mesma achando que sofro demais.
– Natural sentir-se assim querida. Ninguém é de ferro.
– Obrigada por me trazer para esse trabalho voluntário. Está me fazendo um bem imenso. Além de desviar minha atenção da doença, está me fazendo conhecer pessoas lindas, feito esse pequeno tesouro que conheci hoje. É tão engraçado! Parece que já nos conhecemos de longa data.
-Também tenho essa sensação. E acho que sei o porquê.
– Sabe? Diz então!
– A doença humaniza e iguala as pessoas. Além de se aprender muito uns com os outros.
– Ei! Doutora qual seu nome mesmo?
– Sonia.
– Não! Seu nome de doutora!
– Ah! É mesmo! Meu nome é Doutora Pé na Cova. Desculpa tinha esquecido de me apresentar!
– Pé na Cova? – dizendo isso caiu na risada que não parava mais.
– Ai! Fiquei até com vontade de mijar!
– Qual a graça Jú?
– Simples doutora! Pé na cova estamos todos aqui. Mas ninguém quer saber de assumir que está né! Agora você foi corajosa. Tá com o pé quase do outro lado e encara isso numa boa. Parabéns!
– Nossa! Não tinha pensado nisso! Garota esperrrrrta! Ai está na hora de meu remédio. Preciso de um copo de água.
– Espera que eu e a Martinha vamos levar você até o bebedouro. O remédio está aí com você? – e falando sem parar, Jú foi empurrando a cadeira de rodas da Doutora Pé na Cova.
– Pára!Pára!Páraaaaa!
– Que foi?
-Você não pode empurrar a cadeira Jú! Não pode fazer esforço!
– Posso sim! E a sua cadeira é fácil de empurrar. Você não é pesada não! Pronto! Pode tomar seu remédio.
– Menina linda! Vem cá e me dê um abraço bem gostoso! Gostei de você viu!
– Eu também gostei de você doutora de araque!
– Numa próxima festa que tiver aqui, prometo que venho. Vou ficar bem contente em te ver de novo.
– Doutora, pode ser que numa próxima você não me encontre mais aqui.
– Ah! É mesmo! Talvez você já tenha tido alta né?
– Hum! Mais ou menos. Duvido muito que tenha alta. É mais provável que quando voltar aqui eu tenha ido embora, mas daí é porque virei anjinho.
– Como assim Jú? Anjinho?
– Eh doutora de araque viu! Não sabe que toda criança doente feito eu um dia vira anjinho lá no céu?
– Ai Jú não fala assim não! Você ainda vai ficar boa, crescer, virar uma bonita moça, casar, ter seus próprios filhos…
– Vou não. Sei que não… Ei! Você está chorando! Por quê?
– Querida, você fala nessas coisas com tanta naturalidade: doença, morte, virar anjinho no céu… Isso não te assusta?
– Não! Por que deveria assustar? Acho até bonito! Mas olha, não fica triste não porque, quando virar anjinho, se você ainda estiver por aqui, eu olharei por você e pedirei pra Papai do Céu que te proteja e te faça feliz sempre.
Ao saírem do hospital infantil, o grupo de palhaços estava exultante com o resultado da festa.
– Que troca maravilhosa se faz com essas crianças não?
– É verdade Doutor Fila Boia. No entanto saio daqui hoje sentindo certa tristeza em saber que talvez numa próxima visita, não encontrarei algumas dessas crianças.
– É Doutora Pé na Cova, isso faz parte de nossa rotina de trabalho. Faz parte da vida. Nossa proposta é justamente fazer dessas vidas que se encontram num momento difícil, mais alegre, mais leve. Amor é bom e nessas horas então, é a melhor medicação que eles necessitam.
– Eu também me encontro um pouco nessa situação não é mesmo? Ainda não recebi o diagnóstico definitivo sobre a doença que me assola. Também posso não estar presente num próximo encontro.
Após um breve silêncio, com os olhos marejados, ambos se abraçaram e Doutor Fila Boia encerrou a conversa dizendo:
– A garotinha está coberta de razão Doutora. Todos estão com o pé na cova a partir do momento em que nascem. Ninguém sabe o prazo de validade. Ninguém tem bola de cristal. E quer saber? Posso perfeitamente me despedir de você aqui, agora e, ao atravessar a rua ser atropelado e morrer na hora. Pare de pensar nisso e viva! Viva intensamente. Ame intensamente como se fosse seu último dia entre nós. Acredite: Estamos cercados de “anjinhos” velando por nós.
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