Flor rara

Tocada pelas lembranças da minha meninice, de repente, me vi frente a frente com uma mulher muito querida e que foi presença constante. Há pessoas que passam por nossas vidas e partem sem deixar vestígios. Outras tantas, são verdadeiros meteóros, que na rapidez da luz, vêm e vão para nunca mais. E, existem aquelas que carimbam em nossas almas, suas presenças para toda a eternidade.

Em meu projeto de crônicas que em breve publico apresento mulheres que fizeram parte de minha vida e deixaram um legado de alegria, amor e muita comida gostosa. Cozinheiras que marcaram presença no âmbito familiar. A flor rara, foi uma das mulheres mais queridas de minha vivência. Sua risada contagiante sempre mexeu comigo. Que saudade boa toma conta de mim, cada vez que recordo passagens ao lado dela.

E você, tem alguma lembrança boa e uma história ligada a um prato para me contar? Quero muito saber!

Mergulho nas úmidas paisagens

Quando soube do lançamento desse livro, fiquei curiosa. Organizado pela também escritora Luciana Iser Setúbal em parceria com o Clube da Escrita para Mulheres e a Editora Penalux, essa reunião de contos se materializou num belo livro.

Foi uma surpresa a cada texto lido. Escritoras que já conheço como Márcia Barbieri – no qual citei um livro numa postagem anterior -, Maria José Silveira, Aline Viana, Nanete Neves, Sonia Nabarrete, a própria Setúbal e Maria Esther Sammarone.  Mas conhecer escritoras novas (pelo menos para mim) e mergulhar em seu estilo literário foi uma feliz atividade. Todas exploraram o universo feminino na fase madura onde a vida sexual já declinou. Contudo, sabemos que continuamos a sentir desejo mesmo que a carne se torne flácida, que as rugas fixem moradia em nossos rostos, que os cabelos se platinem, o desejo e a vontade de atrair o olhar do outro (ou outra) permanece latente. Na realidade o que acontecia até bem pouco tempo, era sufocar o tesão e a vontade de continuar se relacionando porque segundo as convenções sociais, não era de bom tom uma mulher madura sentir “vontades”. Tinha de morrer em vida.

Hoje, o perfil da maioria das mulheres mudou. Assumiram as rédeas de suas vidas e desejos e fazem o que querem, como querem e com quem querem. A mulher atual, mesmo que assuma suas madeixas brancas, não tem mais a postura das avós ou tias do passado. O fato de se cuidar, bancar seus desejos sexuais, fazer suas próprias escolhas ao invés de esperar ser escolhida, faz toda a diferença. Nessa bela antologia, conheci mulheres incríveis (personagens e escritoras) que me transportaram para histórias deliciosas, alegres, otimistas, engraçadas, melancólicas, humanas.

Num momento em que feminicídio tornou-se notícia diária, resgatar a importância da mulher, tornou-se fundamental. Discutir o feminino, urgente. Ler escritoras e saber o que cada uma tem a dizer, mais que necessário. 

Debater os direitos do sexo feminino, suas necessidades físicas, psicológicas, materiais, sentimentais, sempre será matéria a ser discutida. 

Fiquei encantada com o poder literário de todas as escritoras presentes na antologia. É um livro para ser lido por todos. Já aguardo um volume dois.

Lançado pela Editora Penalux, o livro tem um belo tratamento gráfico. Capa do competente Ricardo A. O. Paixão (sou fã). Quem já leu outros livros dessa editora, conhece seus trabalhos. Parabéns a todos os envolvidos nesse belo projeto!

Narkissos.. Que isso meo!

narciso

Ao contrário da maioria das mulheres, detesto homem grude. Tudo em excesso cansa, desgosta, dá enjoo. Outro defeito (ou qualidade, aí depende do ponto de vista de cada um) que me irrita, é o cara que se acha o “Sedutor”. São tão previsíveis! E isso me dá uma canseira que nem te conto. Existe também aquele que só tem olhos para seu reflexo. O famoso “Narciso”. Personagem da mitologia grega que – fiquei sabendo da essência de seu nome há pouco. Aliás, muito apropriado. Explico:

Do grego Narkissos, que significa “aquele que foi narcotizado, paralisado”. A planta que leva esse nome tem propriedades reais de um narcótico. Segundo alguns estudiosos, mais potente que a papoula.

Deixando de lado a aula, retorno para minha linha de pensamento sobre os tais Narcisos.

São homens absurdamente lindos, bem cuidados, porém, incapazes de enxergar a mulher à sua frente pois seus olhos só conseguem apreciar e se apaixonar por seus próprios reflexos . E como gostam de um espelho!

Basta passar certo tempo nas academias para se ver dezenas deles. E a mulherada se esmerando em desfilar bundas e peitos empinados diante deles, que jamais verão beleza a não ser no próprio reflexo. Já repararam que esses homens estão sempre solitários? Até que alguns tentam bancar o sedutor com as mulheres mas, no fundo, o que eles gostariam mesmo é de poder transar consigo mesmo. E muitos devem bater punheta direto no silêncio de seus quartos. E devem gozar litros de fluídos afinal, o prazer está sempre na própria companhia…

…”Oi Gata!” – Homens aprendam: isso para uma mulher mais instruída e consciente de si soa quase como uma ofensa. Vá por mim!

…”Oi princesa!” – Essa cantada então, piorou. Já passei da idade de crer em contos de fadas queridão!

E o cara que se acha irresistível mas burro feito…sei lá o quê? Filhão, deixa eu te situar: mulher moderna, estudada , antenada, quer tudo menos um cara que fala errado (não tem nada mais broxante. Ou então aquele que só abre a boca para falar de futebol, carros ou política. Nada contra mas… Só isso? Não basta músculos desenvolvidos se o músculo principal (o cérebro) é menor que uma ervilha.

O pior, é que sempre fui imã para esses tipos. Tudo bem que eu não sou nenhuma santa. Muitas vezes dou corda para que o mesmo se enforque. Adoro acompanhar seus passos previsíveis. Já sei o final e isso torna a situação morna, sem perspectivas de algo que surpreenda. Tá legal, confesso: sou um pouco sacana em agir assim. Dependendo do cara, até dispenso de imediato. Para poupar o tempo dele e o meu. Mas as vezes…Divirto-me a beça. Chego a me sentir uma grande enxadrista manipulando meu opositor já antevendo suas jogadas. E no final, Xeque-mate! Dou um bota fora dos bons.

Mas querem saber de uma coisa? Apesar de todos esses tipos, ainda não perdi fé no sexo oposto. Gosto um tantão deles viu? E como a esperança é a última a sair e cerrar as cortinas, ainda aguardo a chance de conhecer um homem pra valer que me faça pensar que… “Ah, esse vale a pena!”

Imagem: Google

Sobrei? Acho que não!

mulheres-chinesas

Semana passada, chegando a empresa onde trabalho, passei pelo refeitório para tomar um chocolate e comer um pãozinho integral. Reforço para minha manhã. Enquanto me alimentava, passei a prestar atenção à TV ligada. Estava sintonizada no programa da Ana Maria Braga. Geralmente nem presto atenção no entanto, a temática me prendeu e fiquei atenta ao que se discutia pois as conversas paralelas estavam num volume alto. A matéria discutida se passava na China e abordava a questão das mulheres que ficam solteiras por lá conhecidas como “sheng nu”, em outras palavras, “Mulheres que sobraram”. Ser mulher na China já é barra. Ser mulher e ficar solteira então, barra ao cubo.

Esse termo mexeu comigo, com meus brios de mulher, de ser humano. Afinal, aos cinquenta e três anos nunca casei e se morasse na China, com certeza seria um empecilho e motivo de vergonha alheia. Graças a Deus nasci em solo brasileiro. E mesmo com todos as falhas que nossa sociedade possui, com todas as dificuldades que enfrentamos por aqui, considero-me privilegiada.

Nasci numa família pobre. Passei muitas necessidades contudo, jamais passei fome. Só não tive mordomias, nem roupa de grife, muito menos brinquedos caros. Me esforcei, estudei. Trabalho desde os quatorze anos e me fiz na vida. Conquistei tudo o que sonhei até agora. Se ainda não tenho um carro – sonho de consumo da maioria – é porque nunca me interessei em dirigir.

Retomando a China e suas posturas ofensivas a mulher, em especial a mulher que aos vinte e sete anos, solteira, já é considerada uma “sobra”, fiquei mastigando meu pãozinho integral e ruminando pensamentos sobre a questão. Lembrei do livro que li há alguns anos, da jornalista Xinran “As boas mulheres da China” e do quanto fiquei tocada em conhecer a dura e, na maioria das vezes, triste realidade das mulheres chinesas.

Que felicidade ter nascido numa família onde meus pais deram mais importância aos estudos do que em nos preparar para o casamento. Nada contra. Fico feliz em ver mulheres encontrando seus parceiros de vida e constituindo família. Sempre senti em meu íntimo que jamais casaria. Jamais teria filhos. Apaixonei-me várias vezes, namorei bem poucas. Nunca senti que seria com “aquele”. Nunca acalentei o sonho de vestir um traje branco e adentrar uma igreja para sacramentar os ritos de um casamento.

Enquanto amigas e primas se preocupavam em ampliar seus baús de enxoval para núpcias, eu me preocupava em estudar, sonhava em entrar para a faculdade, planejava viajar. Enfim, sempre fui julgada como a “estranha” por ter pensamentos assim. Já ao término da matéria, acabando também meu pãozinho e meu chocolate quente, tive um insight bem legal sobre a questão:

Tenho mais é que me orgulhar de ser uma mulher “sheng nu”. Não sobrei no mercado.

Sou mulher sobra porque carrego no peito muito amor para dar aos outros. Amor para distribuir aos familiares, aos amigos, aos desconhecidos. E conheço muitas outras mulheres solteiras que também são assim como eu. Temos disponibilidade de se doar a quem deseja ou necessita. E isso meu caro leitor que me aguentou até agora, não é tarefa para qualquer um não. Tem de ser Mulher em letras garrafais.

Saí do refeitório sentindo-me melhor. Mas isso não me tira a preocupação constante de que em muitos lugares do planeta, mulheres são desrespeitadas diariamente e consideradas sobras nas famílias que são obrigadas a carregar esse fardo que não deu “certo”.

P.S.: O minidocumentário a respeito da condição das mulheres na China foi uma campanha criada pela marca de produtos de beleza SK-II. É um documentário muito tocante que vale a pena assistir. Está valendo por fazer as pessoas pararem e pensarem sobre essa questão ainda tão presente nos dias de hoje.

O endereço é esse: Marriage Market Takeover (Please turn on subtitle)

Imagem: Google

Bus stop

ponto de onibus ninil goncalves

Hoje tamo no dia 21 e ainda tem uma semana inteirinha pra acabá o meis. Vida disgranhenta! Trabaiá tanto pra continuá no aperto entra ano sai ano. Dispois qui peitei a madama do 501, por ela só abusá de meu serviço, ganhei pé na bunda, sem pagamento do que me devia. Fidiputa! Há di morrê seca esturricada e vai fedê como todo mundo na vala rasa. Esse gosto ainda hei di tê. O disinfeliz do Raimundo me deixô na encruziada da vida com toda suas dívida de jogo e de bar. Lazarento! Esse também há de apodrecê em vida. Esse gosto ainda hei di te. A vida intera tive dedo podre pra esses homê. O Creiton era bão na cama mas um fidiuncão batia nimim todo santo dia. Sifufeu comigo. Ganhou um oio de vrido. Hoje pede esmola lá na esquina do Viaduto Nhangabaú. Já vi ele apanhá duns muleque mais forte qui ele. Esse também quero mais é qui si foda bunito bunito pra aprendê a nunca mais batê numa muié. O único que prestô não vingô… Armandinho… Saudade dele viu, era tão bãozinho… Fidumaégua resorveu virá homê di batina. Preferiu casar cum Deus…

Disgranhento! Vai si fudê tumén. Vai murrê moiano a batina e virá gozação dos seminaristas. Preferiu eles a mim. Porra de vida meu Deus? Por que sismô cumigo hein?

…E esse onbus qui num vem nunca? Tarveiz seja o urtimo qui pegue na vida. Amanhã o baraco vorta pro dono qui num tenho dinheiro pra pagá mais um meis. Merda! Cadê esse onbus? Cadê?

Droga, o final do mês chegando e ainda não paguei a mensalidade da facu. Está difícil ser estagiária. Mal dá pra comer um lanche por dia. Nem pro cinema está sobrando. Balada então, só quando a galera paga a minha. Caramba, fiquei com notas baixas em Estatística semestre passado. Não quero pegar uma DP, preciso marcar umas aulas de reforço. Caralho, o viado do Caio me deu bolo mais uma vez! Filho da Puta! Ele que me aguarde! Vou dar o troco com juros e correção. Preciso ter mais cuidado com minha mãe. Ela anda de antena em pé comigo revirando minha mochila, meus pertences,cheirando minhas roupas só porque comecei a ir nas raves com a galera. Oh encanação!

Mas que porra de ônibus que nunca vem caralho! Tô me cansando dessa vida de proleta viu! Isso não é pra mim não! Ano que vem vou infernizar meu pai pra dar um carro pra mim. Nem que seja de segunda mão. Ele que se vire. E pra ajudar ainda está esfriando. Assim pego uma bela de uma gripe e aí sim é que meu final de semana vai pro espaço e mais uma vez perco a chance de, ou conquistar de vez o viado do Caio, ou queimar seu filme com as outras garotas.

Droga! Ele me comeu tão gostoso!! Queria muito repetir a dose nem que fosse mais uma vez. Porra, por que tá tão difícil arranjar um namorado hein? Hein?

E esse Educandário que nunca vem! Alguém me explica onde meus pais estavam com a cabeça quando resolveram melhorar nossa “qualidade de vida” mudando pra esse cú de mundo! Preciso ficar esperta com essa dona aí sentada. Meu celular é novinho e não vou dar de bandeja pra ninguém. Era só o que me faltava: dura, sem namorado, fodida na facu e ainda por cima ficar sem smartphone. Ninguém merece!

Imagem: Ninil Gonçalves

Invisibilidade

A telinha a mantinha sociável e bem acompanhada. Mas…Que vontade de botar a cara para fora de casa e explorar o mundo exterior. Tinha medo!

Lá, naquele mundo virtual, tudo era fácil, rápido, bonito. Em pouco tempo, havia angariado uma leva de amigos virtuais que curtiam tudo o que escrevia. Sentia-se feliz, estava se tornando popular.

Mas aquela vontade de sair de seu quadradinho e ganhar o mundo, vira e mexe voltava e a deixava inquieta, angustiada. Queria mas não tinha coragem de se expor.

Fora criada com excesso de proteção. Primeiro por seus pais que enchiam a menina de mimos, brinquedos, carinho.

Depois da morte súbita de ambos, passou  aos cuidados de sua avó materna que, temerosa de que algo prejudicasse a menina, passou a sufocar e a superproteger de tudo e de todos.

Aos onze anos Donatella não quis mais saber de estudar e vó Rita fez sua vontade. Até gostou de ter sua neta o tempo todo em casa, em segurança.

Passaram-se anos vivendo da mesma forma. Rotina caseira, afazeres domésticos, quase não saía de dentro de casa.

A vida até que era boa! Dormia até tarde, comia a hora que quisesse, colhia em sua casa todos os bichinhos que por ali aparecesse pedindo abrigo. Para que pedir mais da vida?

Só que ela, a vida, não pensa da mesma forma e tratou de sacudir aquela existência paralisada. Ela, a vida, não aceita pessoas que embarcam nela para passar férias. Aqui, temos de labutar muito e provar a que viemos. Ninguém ganha ingresso vip para passar por aqui em brancas nuvens.

Avó Rita morre deixando Donatella aos cuidados de tia Noêmia, irmã mais velha de seu pai. Não se dão bem. Brigam o tempo inteiro. Noêmia, após um ano ao lado daquela sobrinha birrenta, muda-se para uma cidade interiorana sem deixar endereço.

Novamente Donatella se vê abandonada e, contra vontade, vai para a casa de sua outra tia Ruthnéia, irmã de sua mãe. Encontra no coração da tia, uma figura materna que retomará os cuidados com a já não menina.

Para garantir sua estada dentro de casa, compra um computador e ensina a utilizar tal ferramenta.

Aos cinquenta e sete anos, já trazendo em sua têmpora, fios grisalhos, Dona, sente que perdeu alguma coisa mas não sabe bem o quê. Anda preocupada vendo sua tia pouco a pouco perder a visão, a audição, o andar que antes era ligeiro e que hoje, não passa de um arrastar de pés cansados de viver.

Ela mesma já sente sua visão drasticamente reduzida, sua pele não é mais vistosa e macia quanto antes. Tem perdido o sono pensando que em breve perderá a companhia de sua doce tia. O que será de sua vida depois disso? Não tem mais ninguém, não sabe fazer nada afinal, sempre teve quem fizesse tudo por ela. O medo torna-se presença constante por aquilo que está por vir.

Tarde de domingo, chuvoso, cinzento, frio. Donatella se arrumou como pode, e está há quase duas horas ensaiando para sair de casa. Já foi a té a porta inúmeras vezes, toca a maçaneta e retira a mão como se recebesse uma descarga elétrica. Coça a cabeça, pisca, geme e volta a se sentar no sofá roto pelo uso de tantas décadas. Tudo ao seu redor envelheceu assim como ela. Hoje faz seis meses que sua tia não acordou mais. Há seis meses que vive solitária tendo como companhia apenas o computador desligado devido as contas da internet não pagas que a impediram de continuar as conversas e a interação com seus amiguinhos virtuais e os três gatos que sobraram daqueles dezessete que teve um dia. A solidão lhe pesa. A fome lhe abate pois nos últimos dias só tem ingerido restos da despensa farta que sua tia deixou. Parece até que já adivinhava que em breve partiria e fez questão de deixar para a sobrinha, um estoque de guerra que a sustentou por um tempo mas, como tudo nessa vida acaba, chegou ao fim.

Sente-se fraca, cansada, com medo. Lembra-se de umas primas distantes que perdeu contato há muitos anos. Tenta por todas as vias lembrar do endereço delas. Não consegue. Nunca foi ligada nesses assuntos de anotar endereço de ninguém. Nunca precisou! Sempre teve quem fizesse e se preocupasse com isso!

Percebe tardiamente o quanto foi prejudicada em sua criação. A intenção de todos até que foi boa mas a deixaram aleijada diante da vida. Chora baixinho lamentando seu triste destino. Sabe muito bem qual é e apenas aguarda o desfecho. Aceita.

– Alô, é da polícia né? Por favor, tem algo estranho acontecendo no número 143 da rua das Ortigas. Tem gatos trancados lá dentro que miam há dias sem parar, arranham portas e, confesso que eu e meu marido temos sentido um cheiro estranho vindo de lá. Como? Se conheço os moradores? Olha seu policial, conhecia a senhora que morreu há meses. Sei que tinha mais alguém lá mas nunca vi. Meu marido diz que já tinha visto uma outra mulher que morava lá e dificilmente saía de casa. Mas eu mesma nunca vi tal pessoa.

Águas turbulentas

O sol escaldante mexe com o comportamento humano. Alguns ficam calientes no quesito sexual. Com a visualização constante de corpos ardentes, morenos e suados à vista, a vontade de copular aumenta sensivelmente. Outros, se deixam dominar pela doce moleza que a alta temperatura proporciona. Daí, só desejam deitar numa rede e, assim como Caymmi, curtir uma boa preguiça ouvindo uma suave música, fechar os olhos e se deixar levar pelo mundo dos sonhos

Outros tantos, irritados com temperaturas elevadas, tornam-se insuportáveis elevando sua temperatura interior a níveis desagradáveis para as demais pessoas com as quais convive.

Era o que acontecia com Dalila, Sofia, Lorena e Bernadete. Confinadas numa casa na praia Brava de Guaeca, São Sebastião. Toda aquela visão paradisíaca não encobria as tormentas que aconteciam no interior de cada uma delas.

Personalidades fortes, carregadas de fantasmas que as atormentavam desde sempre, pouco a pouco, seus espinhos se mostravam a cada hora vivida em conjunto, uma vez que se encontravam confinadas para um feriado prolongado. Teriam de se aguentar até que viessem buscá-las na data combinada.

Dalila, tímida que era, se esforçava para se adaptar ao convívio coletivo com estranhas. Sofia, a descontraída do grupo, já dava mostrar de ter se arrependido de vir na companhia delas a esse paraíso. Eram pesadas por demais!

Lorena, séria, metódica, preocupada por natureza não conseguia se descontrair e esquecer as tarefas cotidianas que deixara na cidade. Sua mente pensava o tempo todo nos afazeres deixados para trás. Desconhecia por completo a palavra desestressar. O tempo todo buscando deixar em ordem o quarto que dividia com Bernadete que era o seu oposto.

Bernadete, a mais jovem das quatro, era mimada, infantil, irresponsável e muito, mas muito irritável e irritante. Desorganizada que era, largava tudo pelo caminho deixando Lorena de cabelos em pé. A “Senhora Ordem” não sabia até quando aguentaria conviver com essa criatura insuportável.

Dalila permanecia observando o comportamento das demais e, por medo de se tornar desagradável, mantinha-se muda só concordando com a cabeça com o que as demais decidiam, Dava muito trabalho discordar e tentar impor sua forma de pensar e agir. No entanto, já ansiava por aquele feriado terminar e poder regressar para seu quarto, seus livros, sua vida.

Sofia já dava mostra de que sua carga de alegria sempre inabalável, se encontrava na reserva. Pensava consigo à noite na cama: “Onde fui amarrar meu burro? Mulheres mais sem sal e tempero! Não sabem aproveitar as boas coisas que a vida proporciona. Imagina, um paraíso feito esse e essas aí só sabem brigar entre si, cobrar uma da outra coisas tão pequenas. Não sabem o verdadeiro valor da alegria, não sabem usar a lente da leveza”.

Lorena ruminava os pensamentos: “Deus do céu, será que deixei as contas do açougue pagas? E a consulta com doutor Acary, puxa vida, precisava ter marcado. Não posso me esquecer de ligar para ele assim que chegar. Inferno de lugar que não tem internet. Poderia estar adiantando um monte de coisas por aqui. Mas paciência né? Quem mandou eu me meter nessa furada. Um dia aprendo. Ah! Se aprendo! Sair com desconhecidos nunca mais! Inferno, não aguento mais ouvir a voz dessa imbecil que velha, age e fala feito uma criança de quatro anos. Vontade de descer o sarrafo na bunda dela. Nunca deve ter apanhado de criança. Taí, o resultado de muitos mimos e nenhuma vara na bunda. Tornou-se essa criatura desagradável que ninguém aguenta. Senhor! E o pior é que se acha o umbigo do universo! Só ela é importante, só o que ela deseja é o que vale, só seus gostos se sobressaem… Não sei até quando vou aguentar dividir o mesmo espaço que ela”.

Os dias foram se arrastando e levando junto as boas maneiras que aprenderam no mundo civilizado. Em quatro dias de confinamento, já gritavam umas com as outras, jogavam o que viam pela frente, chutavam os móveis e choravam desesperadamente até dormirem vencidas pelo cansaço. Os dias seguintes, imperou um silêncio sepulcral entre as quatro. Só falavam o mais que necessário e não se olhavam. Até que no quinto dia, o céu desabou num temporal assustador tirando todas daquele mutismo. Olharam-se com real preocupação vendo que as janelas e portas daquela casa tremiam a cada trovão e relâmpago que caia. A força das águas era medonha. O céu parecia revoltado com a humanidade. Revoltado com elas, que não souberam se tolerar e não mereceram aquele pedaço de paraíso. O Senhor das Tempestades urrava sua ira com todas as forças. Em pouco tempo, as águas começaram a invadir a casa e levar tudo com elas. Assustadas, subiram para o andar de cima da casa e permaneceram juntas, agarradas umas as outras.

Pela primeira vez tinham algo em comum: o medo. E foi justamente através dele que todas se uniram para sobreviverem. Permaneceram em oração, de mãos dadas, pedindo ao Pai Poderoso que as amparassem e as salvassem daquela tormenta.

Após duas horas de chuva intensa, as águas foram se acalmando até se transformarem num chuvisco leve. O silêncio imperou naquele pedaço de terra.

Sofia, a mais tímida, pela primeira vez falou determinada:

– Tudo bem com todas? Olha, a tormenta se foi e precisamos de coragem para descer, ver os estragos feito pelas águas e tomar providências para a limpeza e ordem das coisas no lugar. Depois também precisamos ver como ficou a estrada que dá acesso ao barco que nos vira buscar e se constatarmos que ficou tudo danificado, daremos um jeito de pedir ajuda com sinais de S.O.S. ou coisa que o valha. Precisamos ficar unidas pelo menos agora por uma única questão: sobrevivência. Entenderam?

Todas se olharam desarmadas e concordaram com a cabeça. Após essa trégua, trabalharam muito para limpar o andar da casa que tinha sofrido muito. Limparam toda a sujeira, repuseram os móveis no lugar, jogaram fora o que se estragou, secaram tudo na medida do possível e, exaustas, sentaram no degrau na escada de entrada e em silêncio permaceram mais um pouco. Repunham suas energias e pensavam em tudo o que vivenciaram naqueles dias. A tormenta parecia se acalmar também em seus íntimos.

Bernadete foi a primeira a falar:

– Lorena, desculpa minha infantilidade. Não guarde raiva de mim não. Sei que sou horrível, um monstro mesmo. Não sei nem porque ainda vivo se todos me odeiam. Por favor, me perdoa!

Lorena permaneceu alguns minutos calada, de olhos baixos. Depois disse:

– Bernadete, você realmente é uma pessoa irritante, não nego. Mas também não sou uma pessoa fácil. Sou mandona por natureza, sou inflexível, metódica, tenho mania de organização e limpeza e costumo ser irredutível em minhas atitudes. Também sou considerada por muitos um monstro. E também possuo um fã clube considerável. Por favor, queira você também me perdoar. Ter dividido o quarto comigo esses dias também não deve ter sido nada fácil pra você.

Sofia que até então olhava para o lado contrário de onde as demais se encontravam, também se manifestou:

– Dalila, sua timidez excessiva me deixou muito incomodada por todos esses dias. A minha alegria de viver não encontrava eco em sua pessoa. Nada do que falava parecia tocar você, que sempre me olhava de soslaio e me respondia com seu pesado silêncio ou quando muito, com respostas baixas e lacônicas. Queria muito ouvir sua gargalhada alta e o máximo que conseguia extrair de você era um esboço tímido de sorriso sem dentes. Simplesmente me deixava agoniada! Sei que em minha alegria compulsiva de vida, não enxergava sua figura tímida e delicada. Talvez fosse só eu baixar um pouco minha taxa de adrenalina para me adequar a sua personalidade. Fui incapaz disso. Me perdoa?

Dalila, com seus doces olhos marejados, fungou um pouco antes de esboçar sua mansa voz:

– Sofia, eu é que devo pedir desculpas à você. Com tanta alegria de viver dentro de si, merecia ter como companhia alguém mais descontraída, mais extrovertida que eu, que não passo de uma sombra em vida. Pareço foto desbotada pelo tempo. Sempre te observava e admirava sua personalidade esfuziante. Queria ter um terço de sua alegria e descontração e um terço também de sua espontaneidade. Sempre admirei pessoas como você mas nunca consegui ser assim. Meu universo é introvertido, todo pra dentro de mim. Não consigo me soltar e expôr o que sinto aos outros. Sempre temo pelo que o outro vai pensar de mim. Por favor, me perdoa!

E dizendo isso, saiu de seu lugar e abraçou Sofia que, tocada pela sinceridade da companheira de quarto, se deixou levar pela emoção e ambas choraram juntas.

Tocadas pela mesma emoção, Bernadete e Lorena também se abraçaram e choraram juntas por alguns minutos. As lágrimas levando para longe todo estranhamento dos dias. Sentiam-se leves, perdoadas em sua pequenez humana, redimidas diante da vida.

Pela primeira vez, todas juntas fizeram a refeição e comeram juntas, sorridentes, felizes e leves. Pela primeira vez olhando-se nos olhos e enxergando a verdadeira essência de cada mulher ali presente.

Na data combinada, seu Orlando chegou com o barco para buscar o grupo feminino que havia trazido dias atrás.

– Bom dia senhoras e senhoritas! Tudo bem por aqui? A chuva fez muito estrago? Se assustaram muito?

Sorridentes entraram no barco e Dalila, que entrou por último disse:

– Seu Orlando, bendita chuva! Abençoada tempestade que chegou, lavou e levou tudo o que não prestava mais. Estamos bem graças a Deus e a essa boa chuva!

– Não tiveram medo? A tempestade foi das grandes. Até fiquei preocupado com vocês aqui sozinhas.

– Medo? Sim. No início tivemos muito mas muito medo mas depois, ela só nos trouxe alegria e leveza seu Orlando. Olha só como estamos voltando mais leves para casa. – comentou Sofia rindo gostosamente ao término de sua fala.

– Não me esquecerei jamais desses dias aqui seu Orlando. Foi realmente um divisor de águas em minha… Não, em nossas vidas! – disse Lorena também sorrindo e olhando a todas.

– Elas têm razão seu Orlando, esses dias mudaram nossas vidas. Definitivamente. Cheguei mimada e cheia das vontades e infantilidades. Saio hoje uma mulher madura e cheia de confiança em meu futuro. Santa água que caiu seu Orlando! – respondeu Bernadete olhando as demais companheiras e sorrindo com olhos marejados abraçou a todas dentro do barco.

Coçando a careca, seu Orlando nada entendendo do ocorrido entre as mulheres pensou por uns segundos:

“Mulheres! Vá entendê-las! Eu é que não!” – e sorrindo terminou de colocar as bagagens das agora “amigas” e deu início ao retorno a vida real. O paraíso ficando para trás e cada uma levando um pouco do tesouro que descobriram por lá.

O barco sumiu deixando ao longe uma paisagem que guardaria as obsessões de cada uma pra si.

Despedaçadas

mesa posta( Google Imagem)

Tensão no ar.

À mesa, quatro vidas que se entrelaçam mescladas por rivalidades, amor, competição, admiração, inveja, paralisia!

A movimentação de olhares e frases não ditas é grande. O silêncio das emoções que margeiam suas almas é tortura que perdura há anos.

Décadas de mágoas, de sonhos desfeitos, de insatisfação. Tudo temperado com pitadas de rancor e medo.

Medo de viver, medo de morrer, medo de sofrer.

E sofrem!

Por verem suas vidas passar à margem da verdadeira vida. Por continuarem atadas a uma ideia pré-concebida do que deve ser essa vida, por verem os outros conquistarem suas vidas e serem felizes. Mas… O que é felicidade?

Essa preciosidade que muitos almejam e bem poucos conquistam e mesmo esses que se dizem felizes, muitas vezes dão cabo dessas belas vidas achando-as vazias.

O silêncio pesa à mesa. E diante de tanta densidade, uma delas grita: Ahhhhhhh!!!

Todas param e a olham com censura. Falta nesse meio uma certa dose de ternura.

Solo árido de vivência, amor e calor.

Matrona empedernida pelas experiências da vida

Por não terem peito para encarar a vida, fazer suas vidas, dar cabo dessas míseras vidas!