Nenhuma das chaves que possuía podia decifrar os segredos dos [invisíveis] cadeados

(Flávia Côrtes – As estações)

Nasci com o dom da intuição desenvolvida. Costumo antever alguns episódios antes que aconteçam, previ algumas partidas, conversei com entidades que se apresentaram à mim, conversei num dialeto africano, sem nunca saber uma única palavra. Atravessei caminhos de brasa acesa, viajei para Paris sem gastar um centavo e nem ficar sentada por horas dentro de um avião. Percorri ruas, senti cheiros, ouvi conversas nas mesas dos bistrôs. Em sonhos, encontrei soluções para problemas reais, fui aconselhada por meu anjo guardião inúmeras vezes.

Trago comigo as chaves de tantos cadeados invisíveis e jamais, desde que você partiu, consegui contato. Nem sequer uma palavra em sonho, um sopro em meus ouvidos, uma única brisa a entrar em meu recinto, anunciando que você se encontrava ao meu lado.

Será que tomou ao pé da letra as últimas palavras de seu avó, que em sonho lhe pedia para desatar os nós?

Tentei te ver nas águas que se movem, nas nuvens que se formam e passeiam alegremente pelo céu. Te procurei nos búzios, na borra de café. Consegui ver de um tudo, só não vi você.

Sim, eu sei que preciso te deixar partir de vez mas, onde foi mesmo que guardei seu cadeado para te libertar? Sofro amnésias seletivas. Contra a razão, optei por te manter preso a mim, mesmo que seja nas lembranças.

Esse texto faz parte da blogagem coletiva Blogvember. Participam comigo:

Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins

Imagem gratuita: Pexels

Guardo-te na caixa dos segredos como se joia fosse… espio-te

com lupas microscópicas. (Mariana Gouveia)

Tem coisas e pessoas que são tão importantes em nossas vidas que guardamos como verdadeiros tesouros com medo de serem roubados. Outras vezes nosso egoísmo nos leva a tomar essa atitude. Não desejamos dividir com ninguém. Foi o que aconteceu com nossa relação. Se é que posso chamar assim…Pensando bem, posso pois é uma relação. Diria até estável uma vez que já completou duas décadas.

Está certo que entre idas e vindas, ocorreu hiatos. Períodos de total silêncio de ambas as partes. Até eles me são preciosos. Eu sei que você está longe, vivendo sua vida, atravessando cotidianos, comendo, bebendo, digerindo essa nossa absurda realidade. Curtindo as conquistas de seu amado time. Escrevendo.

Também sigo minha rotina, celebrando minhas pequenas/imensas vitórias. Natural afinal, são minhas, são genuínas. Consumo moderadamente, me alimento cada vez mais de produtos naturais, dou valor ao pequeno produtor, evito comprar de empresas que exploram crianças, reflito mais sobre meu papel no mundo. Leio cada vez mais, mergulho nas séries coreanas que tanto embalam minha alma sonhadora e fantasiosa. Sou velha, bem sei mas mantenho minha criança latente, cheia de energia dentro dessa caixa que pulsa sem parar aquecendo minh’alma.

Quando a realidade se torna insuportável, abro a tampa e admiro sua beleza, sua fina ironia, ouço-te declamar poemas tecidos com o mais puro amor que sai de ti. Na companhia de minha criança interior, ambos não permitem que sinta o peso da solidão. Sometimes, penso se voltaremos algum dia a nos encontrar, como outrora fizemos. É quase certo que não, por isso, tem sido cada vez mais frequente, minhas miúdas mãos carcomidas pelo tempo, vasculhar o fundo da caixa na esperança de reviver um beijo, um afago, um suave cafuné. Novamente ouço Shania Twain cantarolando You’re still the one, sorrindo confirmo que sim. Permaneço escrevendo.

Esse texto faz parte da blogagem coletiva Blogvember. Participam comigo:

Lunna Guedes –  Mariana Gouveia –  Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins

Imagem licenciada: Shutterstock

Ritual

Xícara devidamente posta, cookies de especiarias, descansam num pote de vidro.Toalha alisada, aroma cafeinado envolvendo o ambiente ao som de Sarah Vaughan. Cortinas cerradas, impedem a bruta realidade de entrar e estragar a energia trabalhada: paz.

No aparador, uma vela de jasmim acesa, complementa e perfuma a cenografia montada. Na solidão do apartamento, a mulher se veste sem pressa, mirando o espelho. Sorri ao ver o reflexo que a agrada.

Pega os apetrechos e segue para a sala. Liga seu All in one branco, acessa a aula pelo Youtube, desdobra o tapete de yoga, posiciona em lótus, fecha os olhos e agora – com trilha sonora de Kitaro – inicia a meditação diária.

Dentro de uma hora, “ele” estará online para mais uma relação virtual. Suspira profundamente esboçando tímido sorriso.

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Quinta das especiarias – “Filhos postiços”

Ao escrever meus textos de memórias, não poderia deixar de contar sobre minha relação com meus “filhos postiços” que ganhei em minha caminhada de vida pessoal e profissional.

Conviver com crianças e jovens foi um grande aprendizado. A troca de experiências é positiva para ambos os lados envolvidos. Aproveitei e alimentei minha juventude, independente do corpo físico seguir o processo de envelhecimento. Mantenho o espírito jovem e aberto às novidades.

Foram muitos jovens que deixaram sua marca e lembranças ao partirem para a vida ou fora dela. Entre eles, meus sobrinhos amados. Através do convívio com eles, conheci um amor nunca sentido. Esse amor incondicional alimenta, fortalece nosso sistema imunológico, alegra e registra momentos que carregamos como nossos verdadeiros tesouros.

Sempre soube que não me casaria nem teria filhos. Isso não me causou tristeza, afinal, havia tantas coisas a conquistar, conhecer e viver. Escolher a profissão de bibliotecária e trabalhar em escola, também foi opção. Conviver com crianças e adolescentes sempre me renovou. Assim, por vias tortas, tive muitos “filhos postiços”.

(Trechos de Filigrana de amor, texto do livro Quinta das Especiarias)

Você está convidado a participar do lançamento online de Quinta das Especiarias, confeccionado pelo selo Scenarium Livros Artesanais, sob a batuca talentosa de Lunna Guedes.

Para conseguir seu convite: scenariumplural@gmail.com

Para comprar seu exemplar acesse aqui

Dia: 27/11/2021

Horário: 17h

Marulho

Navegar é preciso

viver não é preciso, dizia Pessoa

O que ele não soube, é o quanto amei navegar em seu mar

Corpo rígido a me levar em ondas intensas

A derramar em meu porto, seu prazer

Levando-me a esquecer a náusea de viver

em terra firme

Benção minha mãe

Quando decidi falar sobre essa mulher, me peguei sem palavras afinal, como descrever um ser tão acima de mim e demais pessoas?

Certa vez, li em algum lugar, que quando os anjos foram criados por Deus, para descerem a Terra, deveriam vir disfarçados de mãe. Preciso dizer mais? Quem de nós, seres humanos comuns poderia ter essa forma de amar incondicionalmente?

Quem de nós pode ou tem condições de perdoar infinitas vezes? Mães são criaturas dotadas de um enorme senso das coisas, têm uma intuição fenomenal, têm o dom de esboçar o mais lindo sorriso quando muitas vezes, por dentro, estão sangrando.

Não se importam de atravessar noites ao nosso lado quando adoecemos. Deixam de comer para ter sempre o alimento para seus rebentos. Defendem suas crias com uma voracidade anormal.

Fazem sempre o impossível para ver seus filhos felizes (o possível, o resto da humanidade já faz). Vibram com cada conquista que seus filhos adquirem e sofrem ao vê-los aflitos, derrotados e infelizes. Todos esses adjetivos descritos acima fazem parte da personalidade única que é minha mãe.

Quando pequena, achava-a severa, brava. Na adolescência, tivemos sérios entraves.

Vivia pegando no meu pé. Muitas vezes desejei que ela fosse diferente. Com o passar dos anos e a aproximação da maturidade, descobri nela, outra mulher. Descobri a amiga, a confidente e assim, nossa relação tornou-se estável e hoje somos grandes companheiras.

De uns anos pra cá sempre digo que “Quando crescer quero ser igual à Dona Ilda” Adquirir sua sabedoria, paciência, tolerância e quero também seguir sua filosofia de vida: minha mãe veio a esse mundo para ser feliz!

E olha que, nesses anos de vida que ela tem, já passou por cada uma! Contudo, nada abala sua segurança, sua fé, sua postura rígida, porém suave diante da vida.

Independente dos sofrimentos que a vida lhe imputa, sua filosofia da felicidade não estremece. Ao invés de torná-la frágil, fortalece mais. E sempre sorrindo! Igual à minha avó Maria, sua mãe.

Se Deus permitir, desejo chegar à terceira idade mantendo o semblante sereno que ela carrega. E quero também despertar nos outros, o mesmo carinho, o mesmo respeito que hoje todos têm por ela.

Deixo aqui minha homenagem a essa grande mulher, Dona Ilda, minha mãe e a todas as mães desse planeta.

Sem vocês, posso dizer com segurança, que não existiria vida em nenhuma parte.

Sem mãe, o mundo seria em preto e branco e sem fundo musical.

Benção minha mãe!

Esse texto abre meu livro Receituário de uma expectadora, lançado pela Scenarium Livros Artesanais, em 2016.

Caloroso amante

Desde pequena, preferia a natureza aos humanos. Os adultos eram complicados e as crianças, idiotizadas. Na família, era tida como a caçula esquisita. Trocava qualquer brincadeira para ficar na companhia das galinhas e patos do terreiro, dos gatos vagabundos da vizinhança, dos cães de rua. No entanto, sua companhia preferida eram as plantas.

Sentia imensa alegria ao acompanhar o crescimento delas em vasos, horta e pomar. Traçava diálogos longos e animados com as margaridas do jardim, avencas, jiboias, lírios da paz. Era íntima das hortaliças. Ouvia com muita atenção as reclamações do pé de tomates, surpreendia-se com as confissões dos alfaces, as fofocas do pé de chuchu que adorava se esparramar contando tudo em detalhes.

Ao término de cada dia, permanecia petrificada admirando o pôr do sol. Aquela bola de fogo no céu a estasiava. Não cansava de assistir ao bonito espetáculo.

Seu sofrimento tornou-se constante ao ingressar na escola. As crianças mostraram diariamente o quanto podem ser más. Todo dia, uma brincadeira nova para humilhar a tal da “esquisitinha caipira”. Sua dor emocional começou a se manifestar em seu corpinho franzino. Brotoejas, resfriados, febre, noites mal dormidas, perda de apetite.

Retornava para casa e se refugiava em meio a plantação onde, entre lágrimas, expunha para suas companheiras seu drama.

Seus pais, preocupados, passavam as noites discutindo o que fazer sobre o comportamento da pobre menina. Sua mãe, amorosa, dizia que tinham que ter paciência com a pequena. Era de todos, a mais sensível. Seu pai, homem rude, discordava. Para ele, só mesmo uma boa sova resolve mimos. Caso não melhorasse, ele ameaçava retirá-la da escola. Afinal, pra que tanto estudo para uma menina? Melhor trabalhar sua personalidade para os afazeres de casa.

Em pouco tempo sua ameaça se concretizou. Ao contrário de receber como castigo, a pobrezinha agradeceu imensamente a bondade do pai em dar por encerrado seu sofrimento. Jurou que nunca mais entraria em uma escola. Agradeceu também, junto ao pé de café, as orações que suas companheiras da flora fizeram, intercedendo por ela.

As folhas do calendário foram rolando uma a uma até chegar ao aniversário de dezoito anos. Aquela mirrada criança se transformou em uma bela moça. Uma beleza sem retoques artificiais. Cuidava dos afazeres domésticos com sorriso sempre presente no rosto que agora, adquirira cor pois passava horas ao sol, lavando, estendendo roupas no varal, levando comida aos porcos, galinhas, patos. Aguando a plantação.

Muitos pretendentes surgiram no entanto, nenhum despertava seu interesse. Seus irmãos foram se casando e mudando nas proximidades. Ela, firme na convicção de que não desejava casar com ninguém. Sua mãe apenas acenava com a cabeça e pensava: Nem todas vieram para casamento. Ela será nosso amparo na velhice. Confio em sua bondade.

Novas folhas do calendário rolaram. Muitas estações mudaram encerrando seus ciclos naturais. Agora, aos trinta e cinco anos, quase nada mudou em sua rotina. Alguns fios de cabelo branco surgiram em sua vasta cabeleira que mantém arrumado num coque. Ganhou alguns quilos que – ao contrário de suas irmãs agora mães -, trouxe-lhe sensualidade. O trabalho pesado fortaleceu sua musculatura. Ganhou pernas e braços torneados, belos. As rugas ao redor dos olhos e boca não a envelheceram, trouxeram-lhe uma aura de sabedoria. Aprendeu a arte e os benefícios medicinais das plantas e agora, recebe mães com suas crianças para benzer e passar medicações que a natureza oferece. Transformou-se numa guardiã e estudiosa das ervas.

Outro hábito adquirido com o passar dos anos, foi permanecer nua em seu quarto. Sentia-se integrada à natureza. Sabia ser parte dela. Como as demais pessoas jamais aceitariam tal comportamento, confina-se em seu espaço após a labuta e, toda tarde, antes do sol se pôr, desnuda-se, deita ao chão próximo da janela que, para seu deleite, é grande, e passa as horas finais do dia sentindo-se abraçada pelo calor. Despede-se dele como quem se despede do amante. Com olhar de quem deseja mais e mais. Hoje, pela primeira vez, sentiu algo diferente. Enquanto tomava seu banho de sol, mantendo os olhos fechados, ouviu uma voz masculina pedindo para que abrisse as pernas. Mesmo estranhando, obedeceu. Aos poucos, o calor do sol envolveu seu botão ainda intocável. Delicadamente, desabrochou abrindo-se.

Inexperiente, assustou-se querendo fechar as pernas contudo, a voz novamente disse-lhe: Não meu amor, confie em mim. Quero te fazer mulher e feliz. Relaxe e deixe-me penetrá-la. Desejo te conhecer por dentro também.

Entre contorções que a princípio foram suaves até o espasmo e o grito de prazer intenso, sua primeira experiência sexual foi na companhia desse, que se tornaria seu companheiro até a hora derradeira, quando retornaria à natureza, transformando suas moléculas em adubo para uma formosa quaresmeira e, continuar pela eternidade, a receber os carinhos de seu amante.

Imagem licenciada: Shutterstock

Amor padrão risca de giz

Em meio aos caos de início da noite, numa cafeteria frequentada por jovens, uma pessoa se destaca. Sentado sozinho numa mesa de canto, o homem saboreia seu café com o pensamento longe dali. Relembra sua mocidade constatando que lá atrás, já era um frequentador de cafeterias. Sempre foi o local preferido para pensar, observar e escrever. Muitos textos a princípio e depois, com carreira já consolidada, vários de seus livros foram escritos nessa ambiente. Sorri de forma desencantada ao relembrar que esses espaços eram cheio de charme e liberdade.

Hoje, transformadas em espaços glamourizados, pessoas circulam por elas munidas de seus notes, tablets, smartphones, isolando-se em seus mundos virtuais. O que antes era recinto para acolhimento e troca de ideias, hoje, tornou-se depósito de seres humanos robotizados e alienados.

Nem mesmo se tem a liberdade de acender um cigarro e, entre uma tragada e outra, liberar ideias e desenvolver roteiros para um novo romance ou conto.

Enquanto simula profunda tragada num cigarro imaginário, o senhor ajeita a flor na sua lapela, alisa o tecido da calça no padrão risca de giz e abre um envelope amarelado pelo tempo. Uma carta se abre diante de seus olhos cansados que – ao percorrer suas linhas -, ganha um brilho intenso.

Se alguém prestasse atenção, veria um personagem bem interessante saído de um filme noir.

Dobrando a carta e devolvendo-a ao envelope, saboreia mais um gole do café fazendo careta. Massageia o rosto flácido, coça a cabeça que ainda mantém uma cabeleira farta. Guarda o envelope no meio de um velho livro de capa de couro.

-Ana Maria… por onde andará a essa altura da vida? Será que ainda é viva?

-Senhor? Falou alguma coisa? Deseja mais café? – pergunta uma jovem garçonete que limpa a mesa ao lado.

-Não minha filha. Sou só um velho resmungão que tem por costume falar sozinho.

-O senhor é muito refinado. Sempre que aparece pede por favor, agradece. Um cavalheiro! Isso não existe mais não.

-E você minha jovem, demonstra ter um olhar para o próximo e está sempre com um sorriso nos lábios para atender a todos. Isso também é raro.

-Sim. Mas hoje, percebo que o senhor está triste. Desculpe se estou sendo invasiva mas, aconteceu alguma coisa?

-Além de jovem, bonita e atenciosa, ainda é observadora. Agora virei seu fã!. Tem razão mocinha. Hoje, acordei saudoso de um tempo que não volta mais. Coisa de velho solitário. Não liga não.

Dizendo isso, toma um último gole do café já frio, reúne seus pertences, ajeita o chapéu de feltro cinza na cabeça e sai, desejando boa noite para a moça.

Pensativa, a garçonete recolhe a xícara usada pelo senhor. É quando percebe algo caído próximo a cadeira: uma foto em preto e branco com um belo casal de jovens abraçados e sorridentes.

A moça, linda em seu vestido rodado e chapéu com véu cobrindo parcialmente seu rosto bem feito. O jovem, impecável em seu terno estruturado em risca de giz, chapéu de feltro e um cigarro acesso no canto da boca.

Romântica, a jovem guarda a foto em seu avental para, no dia seguinte, devolvê-la a seu dono. Não deseja tomar para si talvez o único elo de um passado feliz de um velho solitário. No fundo, sente uma pontada de inveja por não ser a moça feliz ao lado do jovem amoroso.

-É, já não se faz amor como antigamente…

-Falando sozinha Janaína? Deu para isso agora?

-É chefe. Às vezes tenho isso.

-Então deixa os devaneios de lado e vá atender a mesa 8.

-Ok!Ok! É vida que segue. É trabalho que chama!

Imagem licenciada: Shutterstock

Difícil definição

henrique

Mudar o verbo da noite para o dia transformando alguém tão caro e próximo num personagem do passado é doloroso. Alguém que dias atrás se encontrava ao nosso lado conversando, rindo, fazendo planos, enquanto traçava una bella  pizza ou un talharim ao pesto – seus pratos preferidos. Dói.

Agora, o que resta é um bolo indigesto parado na garganta diante do fato consumado. Nunca em minha vida senti tamanha dor. Nunca.

A inquietação que assola minha mente e coração parece que vai explodir a qualquer momento da mesma maneira que implodiu dentro de si, pondo término a um ser que tinha urgência em viver pois parecia saber que havia pouco tempo.

Meu menino que começava a amadurecer e cultivar ideias de fincar raízes, formar família, ter filhos. Esse era seu sonho. Contudo, ao mesmo tempo que alimentava tais quimeras, se jogava de cabeça em tudo o que pudesse fazer. Não quis seguir com os estudos mesmo sendo um Q.I. alto comprovado por especialistas. Contrariando a todos, dizia não poder perder tempo.

Tempo…

Sempre esse senhor a direcionar nossas vidas. E de alguma maneira que nos foge ao entendimento, ele sabia que precisava correr e dar conta de fazer sua história o mais completa possível. E deixou. Um Best Seller digno de aventuras Harry Potterianas, seu personagem preferido desde a infância. Havia total identificação, inclusive física.

Tornou-se precoce cidadão do mundo . Uma inquietação sem fim o movia a vários lugares. Viveu em constante busca de seu Graal.

Dono de mil talentos, desenhava quadrinhos e até se aventurou no mundo dos Tattoos. Aprendeu a cozinhar e sabia preparar pratos com requintes profissionais. Circulou por todas as esferas. De malandros e hippies da Avenida Paulista – sua favorita – ao mundo da moda, dos artistas de teatro, TV, aos grupos religiosos cristãos.

Família…

Essa, apesar de ser sempre um ponto de atritos e divergências, era também seu porto seguro. Todas as vezes que sentia-se perdido ou inseguro, era para ela que se voltava. Renovava suas forças, alimentava-se do amor incondicional que todos lhe tinham, respirava ares de amor e retornava para o mundo.

Em nosso último encontro, enquanto saboreávamos uma pizza, ele perguntou se eu já havia escrito algo sobre ele. Pensei e respondi que sim. Ele perguntou: Sério mesmo? Escreveu? O quê? Respondi sorrindo: se quiser saber vai ter de ler meu blog inteiro e se identificar. Tenho certeza que se reconhecerá. Mas terá de ler.

Não teve tempo. E eu, desde então sigo com o mesmo aperto na garganta e coronário e com os dedos enrijecidos pela dor de perdê-lo. Tão cedo…

Caso tivéssemos escolha, teria cedido de bom grado o tanto de vida que me resta. Já vivi bastante, conquistei muitas coisas, vivenciei tantas outras. Só pelo prazer de vê-lo se realizar, casar, ter filhos e levar uma vida simples no campo. Sem correrias nem atropelos.

Uma pena a vida não ser ficção caso contrário, já teria deletado essa parte da história e dado um rumo diferente. É meu menino, não deu.

Só deixo aqui uma pergunta que – por mais que busque resposta, não encontro uma que me satisfaça: quem ou o que preencherá essa imensa cratera de um metro e noventa e dois que se abriu em meu peito?

Talvez, repito novamente Talvez, daqui um tempo, a quantidade de lembranças que você espalhou por toda parte ao tombar inerte no chão frio me satisfaça. Talvez, com paciência e coração mais compassado, consiga montar o seu quebra-cabeças e perceba o quanto foi bonita sua passagem em nossas vidas. Mesmo que meteórica. Você passou. Sua luz permaneceu.

 

Imagem: Arquivo particular

Valentine’s day

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O choque ao te rever não foi bem o que esperava sentir. É certo que passado tantos anos, ambos envelhecemos. Mas não foi a falta de cabelos ou a barriga proeminente, muito menos as rugas profundas em seu rosto que me incomodaram.

Ao contrário do que esperava encontrar, você manteve-se muito bem. Soube envelhecer. Corpo esguio, ainda lapidado pela musculação. Pele azeitonada pelo sol, cabelos com reflexos esbranquecidos te presentearam com certo charme que seduz qualquer mulher. Seus profundos olhos verdes mantiveram o brilho e a vivacidade que outrora me encantou.

Te observar a certa distância sentado com elegância fumando seu inseparável cigarro – ao mesmo tempo que me trouxe boas lembranças, novamente veio carregada de sensações que não soube muito bem traduzir. Titubiei.

A insegurança de enxergar através de seu límpido olhar minha carcaça envelhecida e desprovida daquela jovial menina de seus dezesseis anos, me fez dar dois passos atrás.

Sei que casou, teve filhos que hoje devem ser adultos feito nós. Também soube por conhecidos, que divorciou e novamente encontrou alguém. Ao contrário de você, não soube prosseguir. Passei décadas pulando de relação em relação. Fui incapaz de me entregar a outro após te perder. Hoje sei que fui fraca e teimosa em não romper de vez nosso cordão umbilical. Busquei insanamente seu corpo em outros corpos, seu sorriso em outras bocas, seu olhar em outros olhos. Luta vã. Perdi duplamente por não saber abrir mão de um amor juvenil e por deixar escoar tantos outros homens que poderiam e quiseram me fazer feliz. Fiquei presa a uma ilusão. A um amor inventado por minha mente ultra romântica. Fui incapaz de me desvencilhar da roupagem adolescente. E levei essa rebelde pro resto de minha vida emocional. Mesmo agora, portadora de uma carcaça envelhecida e craquelada pela osteoporose, carrego ainda essa menina que um dia te amou e se entregou ao jovem risonho e sensual que você me apresentou.

Te observo mais alguns minutos por trás de uma banca de flores. Talvez a mesma banca que você adquiriu o buquê de rosas que repousa na mesa. Você não se esqueceu das minhas preferidas: rosas silvestres! Estão lindas! Obrigada amor mas não poderei aceitar. Desculpe mais uma vez me acovardar diante de uma possível felicidade. Não sei lidar com isso. A solidão me é familiar e quente feito útero de mãe. Te observo mais uma vez e num roupante, saco meu smartphone e registro sua elegante pose no café.

Segurando uma lágrima que queima meus olhos, dou as costas à você e sigo meu caminho rumo ao metrô. Escondo-me na multidão. No vagão, vários casais se enamoram e muitos rapazes carregam seu arranjo de flor que em breve farão alguma namorada ou esposa se encher de alegria e transbordar de amor. Sentada olhando pela janela, reafirmo que esse dia não me pertence.

Imagem: Unsplash