
Já nasci saudosa. Essa é minha marca maior além do coração sem fundo, olhar curioso de eterna infante e uma vontade infinda de ser feliz. É claro que nem sempre isso é possível e aprendi, no decorrer de minha existência, a aceitar a vida como ela se apresenta.
Da mesma forma, busco olhar meu próximo com lentes e filtros da tolerância. Não sou religiosa. Já fui, e muito, no entanto, afastei-me por questionar tudo e tornar-me figura “non grata” diante da gleba hipócrita.
Guardo em minhas gavetas da memória, momentos que gravei para a eternidade. Lembranças da infância, são muitas, são felizes, são puras. Época em que não sabia contabilizar muito menos separar o certo do errado, o bonito do feio, simplesmente vivenciava cada dia sem me questionar sobre nada. Deixava-me levar pela vida. E era feliz!
Não me importava em ter apenas um sapatinho verlon, uma meia rota, um vestido que já havia passado por diversas crianças até chegar a mim.
Brinquedos? Somente o que minha avó Maria confeccionava. Havia as almofadinhas das Cinco Marias recheadas de arroz, as bonecas feitas de papel machê e retalhos de tecido. Na realidade, não tive muitos brinquedos mas brinquei exaustivamente! Sou de uma geração em que se ia para as ruas, formava-se turmas e brincávamos o dia inteiro. Era pique, pega-pega, passa anel, estátua, queimada… Tantas eram as brincadeiras na rua, que até então, era território das crianças e não dos automóveis.
Ao final da tarde, minha avó e outras mães chamavam as crianças para o banho e depois o lanche que sempre tinha bolos, biscoitos, broas de milho, geleias acompanhadas do tradicional café com leite ou chá preto.
Como era bom! Anos mais tarde conheci o pão de queijo que uma prima de minha mãe aprendeu a fazer e vez ou outra, fazia de baciada e chamava a criançada para saborear.
Sim, isso era felicidade! Comilanças alimentando o bucho (termo de minha avó) e muita conversa alimentando a alma.
Tive uma infância pobre, contudo nunca faltou alimento em minha casa. Podíamos não ter uma mesa farta em supérfluos que hoje compramos no supermercado, mas sempre tivemos o pão, o leite, a manteiga, o café e o feijão com arroz.
A carne para acompanhar, recebíamos de uma prima minha que era casada com um português dono de churrascaria. A sobra, ele trazia para sua casa e dividia com as famílias menos favorecidas. Graças a Deus estávamos na lista dos desfavorecidos e jamais faltou um naco de carne e linguiça em nossos pratos. Assim como também nunca faltou as frutas e uns doces que recebíamos de uma tia, irmã caçula de minha mãe que aparecia uma vez ao mês e nos brindava com Dan top.
Um para cada criança. Comia devagarinho para prolongar o prazer de comer chocolate. Adorava me lambuzar toda e depois lamber os dedos, a mão, a embalagem.
Sou canceriana nascida em pleno dia 24 de junho, dia de São João. Por conta dessa data, muitos aniversários foram celebrados de frente a uma fogueira comendo batata doce assada, pé de moleque, pipoca, bolo de milho e quentão – no caso só para os adultos. Para a criançada, ki-Suco de uva. Tomava como se fosse iguaria dos Deuses!
E havia também a paçoca de roça da vó Maria. Ah… Que festa se fazia cada vez que vó Maria convocava a família toda para socar o amendoim e o açúcar no pilão centenário até se transformar em paçoca. Era uma farra só. Fazíamos fila indiana para socar o pilão e a cantoria corria solta acompanhada de muitas risadas. O brilho de prazer nos olhares ficou registrado na minha memória. Coisa gostosa lembrar a barriga da minha avó balançando de cima pra baixo enquanto cantava, assoviava e ria. Tudo ao mesmo tempo e dizendo: Soca direito canaiada! Soca com gosto, pra valer! – e dizendo isso caía na risada banguela que me encantava.
Sua lembrança é tão nítida em minha mente: baixinha, gordinha, sempre de vestido florido e avental. E jamais se separava de seu lenço na cabeça feito camponesa que foi de fato. Mesmo morando na cidade, não abriu mão de seus hábitos. Cozinhava assobiando canções de Cascatinha e Inhana:
“Índia seus cabelos nos ombros caídos
Negros como a noite que não tem luar
Seus lábios de rosa para mim sorrindo
E a doce meiguice desse seu olhar
Índia da pele morena
Sua boca pequena eu quero beijar”
E o que dizer do vô Dito, índio de nascença, criado por família branca, músico nato que tocava um bandolim como poucos. Cozinheiro exímio, desenhista talentoso que instigou e deu-me a mão nos primeiros passos de meus riscados. Adorava me desafiar e assim, de linhas em linhas fui aprendendo e aperfeiçoando meu traço nos desenhos. Como ele, virei retratista e passei a andar sempre com um bloco de papel e lápis olhando, observando e desenhando todos que me chamavam a atenção.
Sua morte, atropelado numa avenida movimentada serviu de divisor de águas em minha vida – até então, inocente e longe de qualquer fantasma.
Sofri muito. Sentia sua falta e cheguei a ficar doente. Anos mais tarde, já adulta, soube pela minha mãe que minha professora chegou a avisá-la de ter me visto várias vezes no local de sua morte olhando para o solo de piche.
Confesso que até hoje não me lembro desses dias.
Segui os outros anos até chegar a adolescência desenhando cada vez mais e melhor. Cheguei a ganhar uma maleta com várias bisnagas de tinta a óleo e pinceis de todos os tipos e tamanhos além de telas. Ganhei esse precioso presente de um pintor naif, hoje conhecido mundialmente por Madalena. Foi uma alegria tão grande que passei a pintar sem parar.
Até que a vida me chamou para a dura realidade e passei a trabalhar longe de casa para ganhar um salário melhor. Não tive mais tempo para desenhos, pinturas e sonhos.
A vida me embruteceu. Por mais de trinta anos, nunca mais peguei num grafite muito menos em pincéis. Houve um bloqueio no desenho, ocorreu uma atrofia no músculo principal – meu coração, transformando-me num autômato. Passei anos a fio somente executando tarefas materiais e necessárias. A rotina me engoliu fazendo-me refém da acidez. Deixei de enxergar beleza, leveza. Tornei-me rude comigo mesma e com as pessoas.
No entanto, essa tal vida que tanto falei até agora, essa mesma aprontou comigo no sentido de trazer-me à razão. Ela, a vida, é ladina, safada, malandra e deu uma rasteira para que eu num voo solo pudesse enxergar novamente quem eu era de fato. Não esse estereótipo que abracei e finjo diariamente que sou.
Sou uma junção de sangue, carne, nervos e sentimentos que percorrem toda a carcaça física e transcende a matéria se expandindo para todo o universo. Sou dotada de pura emoção e represando tanto tempo isso, é claro que não iria fazer bem. A rasteira que a danada da vida me deu não vem ao caso mas a reação que ocorreu em mim, ah isso sim, vale a pena comentar.
Ela me deu um looping dos bons me fazendo da noite pro dia, uma atleta de seu time. Era isso ou minguava. Preferi viver e retornar à minha antiga e sempre presente pessoa que fui e ainda sou. Só me encontrava anestesiada pela rotina.
Hoje, voltei a valorizar o belo, a poesia, a música e até voltei a traçar. Não é que continuo com meu traçado firme?
Compreendi que meu traço não tem fim, assim como a vida, é inacabado e digo isso porque tenho a certeza que nada termina por aqui. Caso contrário, seria muita sacanagem dela, a vida.
E ela, de tão boa ainda me ensinou outros traçados como esses, que acabo de escrever.
Imagem: Marcos Andolphatto