
Com os olhos ardendo, teimava em olhar para as labaredas que pouco a pouco chegavam à ela.
Hipnotizada pelo horror e beleza que se formavam através do brilho do fogo e dos livros se queimando, não conseguia reagir. A fumaça já começava a sufocá-la e mesmo assim, não movia seus pés. Simplesmente deixava-se ficar fazendo parte do cenário macabro. Em pouco tempo, o que um dia fora chamado de “Templo do Saber” agora não passava de “Cinzas do Saber”.
E ela, que já fazia parte da mobília, via-se vagarosamente crepitando com pequenos focos de incêndio por todo seu corpo.
Interessante, não sentia dor. Apenas um torpor causado talvez pela intoxicação da fumaça altamente tóxica. Estava te dando um “barato”.
Pensou: “Morrer então é isso? Uma total falta de tudo?”
A ala dos livros malditos acaba de desabar. Um estrondo lembrando a fúria de Deus. Coincidência logo os malditos ruírem primeiro? Entre centenas que rolaram ao desabar o teto do andar superior, quatro vieram parar a seus pés. Mesmo com toda fumaça impedindo a visão, pode ler quais eram: Arquivos secretos da feitiçaria e da magia negra, O ocultismo, O mistério das catedrais e Os grandes livros misteriosos.
Ironia do destino? Sacanagem do Divino? Humor negro do Todo Poderoso?
O último livro que reconheceu, abriu-se como por encanto no capítulo em que falava sobre “As clavículas de Salomão”.
Em pouco tempo, sua mente treinada de bibliotecária pesquisadora rolou por diversos catálogos imaginários tentando reconhecer o que significavam tais “clavículas”. Percebeu que apesar de todo seu eruditismo e dedicação ao estudo, morreria sem saber o que isso representava e qual sua importância.
Já sentia seus pulmões arfando sem darem conta de suas funções. Já se tornara um pedaço de madeira com um mínimo de vida teimando em pulsar. Ouvia ao longe, vozes gritando: “Tem gente lá dentro! A bibliotecária não saiu”
Mesmo sem a visão física, tinha decorado cada corredor, prateleira, local em que se encontram todas as obras. Em meio a mais de setenta mil livros, reconhecia onde cada ser habita. Mentalmente se reporta ao corredor A-B onde fica a Bibbia Borso D’Oeste com suas belas e raras ilustrações.
Grito: NÃO!!!!!!! Ela não pode sumir como todo o resto! É bela demais! Isso não pode acontecer meu Deus! Não é justo!!
– Ei! Bombeiro, ouviu isso? Alguém lá dentro gritou! Não falei que ainda tinha gente lá dentro?
– Também ouvi, mas está praticamente impossível entrar nesse fogaréu. É colocar nossa vida em risco também.
– Mas arriscar-se faz parte da rotina de vocês bombeiros não é mesmo?
– O risco existe sim, mas sempre calculado. Jamais pelo impulso. Além do mai……….
Um estrondo terrível toma conta do prédio inteiro e é ouvido a várias quadras dali.
Todos que se encontram próximos se jogam ao chão no intuito de se protegerem. Uma fumaça enegrecida se espalha lembrando 11 de setembro.
Minutos se passam e um silêncio pesado como a atmosfera carregada de gases tóxicos, se espalha pelo perímetro da biblioteca.
Como personagens oriundos de uma grande catástrofe, pessoas levantam-se olhando para o que restou da imponente construção. Por entre restos de focos do incêndio, pedaços de madeira em brasa, fuligem de papeis incinerados, uma imagem se destaca naquele cenário de horror.
Otávio, o capitão dos bombeiros pisca várias vezes achando que está enxergando mal. Olha para seu companheiro Salvador e em silêncio se questionam sobre a veracidade da visão. Ninguém fala. Ninguém ousa quebrar aquele momento de encantamento macabro.
Como uma tora de árvore queimada, enegrecida e com focos de fumaça saindo por todos os lados, a bibliotecária dá alguns passos trôpegos segurando um imenso livro aberto num capítulo escrito em latim: INCIPIT EVANGELIVM SECUVNDVM LVCAM
Imagem: Biblioteca Sarajevo