12 de março – Dia do Bibliotecário

Tudo começou no ano de 1991, quando tive meu primeiro contato e experiência trabalhando em uma biblioteca. Não foi amor a primeira vista mas sim, um sentimento que foi chegando silêncioso e se instalou para nunca mais sair.

DIGITAL IMAGE

Fiz carreira no ambiente escolar permanecendo em um único colégio, por vinte e cinco anos repletos de momentos de grande aprendizagem, troca e amizades.

Os cabelos foram acinzentando mas o amor pelos livros e por biblioteca e seus mecanismos de trabalho, se fortaleceram no dia a dia.

Serei eternamente grata à instituição que me recebeu com carinho mas sentia crescer em mim, o desejo de abrir as asas e voar para outras paragens. Parti, sentindo que havia deixado algo de bom mas também carregava em meu íntimo, uma vida inteira passada dentro daqueles muros. Até pensei em parar de vez mas, a inquietação por retornar a uma biblioteca pulsou novamente.

Em minha nova morada, a alegria do retorno. O acolhimento foi grande e vislumbro desafios a transpor e muito a contribuir com essa instituição que abriu as portas para mim.

Uma vez bibliotecária, sempre bibliotecária. Parabéns a todos os profissionais que – como eu – acredita e planta diariamente através de suas ações, a semente da informação, formação, cultura e lazer. Não é fácil mas a realização desse trabalho faz todo o diferencial na vida dos que frequentam uma biblioteca.

Imagens: Acervo pessoal

Agradecimentos: Agradeço de coração, ao Colégio Dante Alighieri que por 25 anos, foi minha casa, meu templo, minha biblioteca do coração

Agradeço ao Colégio Boni Consilii, pela chance de continuar com o coração pulsando dentro de uma biblioteca escolar. Tenho certeza de que juntos, faremos história.

Ser Bibliotecária

No silêncio da biblioteca, um par de olhos percorre estantes, passeia por títulos e, busca algo que nem sabe o que é…

Tarde preguiçosa de outono, um jovem senhor caminha pelos corredores, observa sinalizações, móveis, estantes, iluminação. Toca as capas de livros, esboça um sorriso no olhar.

Sai, da mesma forma que entrou: em silêncio. Porém, algo aconteceu pois sorri abertamente e – pela primeira vez -, enxerga a bibliotecária que o tempo todo esteve atenta. Diz um quase inaudível e tímido “Boa tarde”.

Satisfeita, a bibliotecária olha para o acervo, seus companheiros de trabalho e pensa:

“Mais um usuário feliz com o que encontrou. Esse, tenho certeza que voltará muitas e muitas vezes! Acompanhei de perto sua transformação.”

A matéria prima de um profissional de biblioteca não é apenas emprestar e devolver livros. Vai além. Como as sacerdotisas celtas, temos a missão de transformar leitores em seres humanos melhores. E isso, fazemos através da escolha dos livros para exposição e sugestão de leituras, pelo nosso olhar sempre atento, conciliador, sedutor e claro, no sorriso constante. Não aquele sorriso Colgate de propaganda de TV e sim, o sorriso que vem da alma e se espelha no rosto da(o) profissional que abraça a profissão como sacerdócio e que acredita piamente que sua profissão é muito mais que seguir as tabelas PHAs, CDD e CDUs.

Quem segue esse caminho torna-se apenas um tecnólogo competente mas frio. Nada contra afinal, precisamos também desse perfil profissional. Contudo, o usuário de uma biblioteca carece de alguém mais humanizado à frente do atendimento.

Numa biblioteca somos vários profissionais reunidos num só: padre, psicólogo, professor, médico da alma, orientador. Ouvimos muitas vezes, o que ninguém ouve e guardamos segredo pois sabemos o quanto nossa atenção e confiança é importante para o leitor que muitas vezes, sentindo-se desorientado, nos procura.

E com essa confiança adquirida, ganhamos o carinho, o respeito e o amor do usuário para o resto da vida. Sei disso por experiência própria. Ganhei usuários pequeninos, os vi crescer, orientei-os em várias questões. Hoje, formados, adultos e com família constituída, encontro-os e sou sempre recebida com um sorriso e um brilho nos olhos de reconhecimento e respeito pela “tia da biblioteca” que tanto os ajudou.

É quando me certifico que escolhi a profissão certa!

Um certo senhor fora do seu tempo

Observar a variedade existente de tipos humanos é matéria rica para nós escritores. Desde pequena observo o comportamento alheio. Gosto de catalogá-los e talvez por isso mesmo, tornei-me bibliotecária. Aqui onde trabalho, convivo com vasto material humano no qual me deleito em estudar e depois, lapido-os ao meu bel prazer, transformando-os em personagens de minhas histórias. Agora mesmo estou diante de uma sala repleta de alunos, professores, funcionários em seu horário de almoço, pais e visitantes. Bem na minha mira, encontra-se uma…Como direi? Figura!

Um senhor num terno verde, gravata borboleta xadrez, com seus óculos na ponta do nariz a ler o jornal do dia. Vocês leitores devem estar pensando: Mas porque ela diz que ele é uma figura?

Calma que já explico. Senhor de seus quase setenta anos, todo formal inclusive em sua maneira rebuscada de se expressar verbalmente, não olha ninguém nos olhos, não dirige a palavra para as mulheres, logo sou ignorada. No que agradeço! Prefiro ficar aqui na invisibilidade estudando a persona. Riquíssima!

Vive no e do passado. Não tem e-mail, celular, nunca acessou a internet, detesta todo tipo de tecnologia. Um personagem que deve ter entrado numa máquina do tempo e caído aqui em pleno século vinte e um por engano. E não se conforma com tudo o que presencia na atualidade. Acaba de se levantar, depositar o jornal no balcão, passou seus olhos embaçados por mim como se eu fizesse parte da mobília e já saía da biblioteca quando levantei e me postei diante dele cumprimentando-o:

– Já vai senhor? Tenha uma boa tarde e até amanhã!

Por uns segundos pareceu me enxergar e uma breve luminosidade passou por seus olhos que logo murcharam em seu habitual embaço.

– Boa tarde senhorita! – respondeu de forma quase inaudível e, da mesma forma silenciosa que entrou, saiu.

Acho que vou transformá-lo num personagem só meu! E agora, se me dão licença, preciso atender os alunos.

A biblioteca bomba de atividades e eu amo isso tudo!

Palavras em chamas

biblioteca sarajevo

Com os olhos ardendo, teimava em olhar para as labaredas que pouco a pouco chegavam à ela.

Hipnotizada pelo horror e beleza que se formavam através do brilho do fogo e dos livros se queimando, não conseguia reagir. A fumaça já começava a sufocá-la e mesmo assim, não movia seus pés. Simplesmente deixava-se ficar fazendo parte do cenário macabro. Em pouco tempo, o que um dia fora chamado de “Templo do Saber” agora não passava de “Cinzas do Saber”.

E ela, que já fazia parte da mobília, via-se vagarosamente crepitando com pequenos focos de incêndio por todo seu corpo.

Interessante, não sentia dor. Apenas um torpor causado talvez pela intoxicação da fumaça altamente tóxica. Estava te dando um “barato”.

Pensou: “Morrer então é isso? Uma total falta de tudo?”

A ala dos livros malditos acaba de desabar. Um estrondo lembrando a fúria de Deus. Coincidência logo os malditos ruírem primeiro? Entre centenas que rolaram ao desabar o teto do andar superior, quatro vieram parar a seus pés. Mesmo com toda fumaça impedindo a visão, pode ler quais eram: Arquivos secretos da feitiçaria e da magia negra, O ocultismo, O mistério das catedrais e Os grandes livros misteriosos.

Ironia do destino? Sacanagem do Divino? Humor negro do Todo Poderoso?

O último livro que reconheceu, abriu-se como por encanto no capítulo em que falava sobre “As clavículas de Salomão”.

Em pouco tempo, sua mente treinada de bibliotecária pesquisadora rolou por diversos catálogos imaginários tentando reconhecer o que significavam tais “clavículas”. Percebeu que apesar de todo seu eruditismo e dedicação ao estudo, morreria sem saber o que isso representava e qual sua importância.

Já sentia seus pulmões arfando sem darem conta de suas funções. Já se tornara um pedaço de madeira com um mínimo de vida teimando em pulsar. Ouvia ao longe, vozes gritando: “Tem gente lá dentro! A bibliotecária não saiu”

Mesmo sem a visão física, tinha decorado cada corredor, prateleira, local em que se encontram todas as obras. Em meio a mais de setenta mil livros, reconhecia onde cada ser habita. Mentalmente se reporta ao corredor A-B onde fica a Bibbia Borso D’Oeste com suas belas e raras ilustrações.

Grito: NÃO!!!!!!! Ela não pode sumir como todo o resto! É bela demais! Isso não pode acontecer meu Deus! Não é justo!!

– Ei! Bombeiro, ouviu isso? Alguém lá dentro gritou! Não falei que ainda tinha gente lá dentro?

– Também ouvi, mas está praticamente impossível entrar nesse fogaréu. É colocar nossa vida em risco também.

– Mas arriscar-se faz parte da rotina de vocês bombeiros não é mesmo?

– O risco existe sim, mas sempre calculado. Jamais pelo impulso. Além do mai……….

Um estrondo terrível toma conta do prédio inteiro e é ouvido a várias quadras dali.

Todos que se encontram próximos se jogam ao chão no intuito de se protegerem. Uma fumaça enegrecida se espalha lembrando 11 de setembro.

Minutos se passam e um silêncio pesado como a atmosfera carregada de gases tóxicos, se espalha pelo perímetro da biblioteca.

Como personagens oriundos de uma grande catástrofe, pessoas levantam-se olhando para o que restou da imponente construção. Por entre restos de focos do incêndio, pedaços de madeira em brasa, fuligem de papeis incinerados, uma imagem se destaca naquele cenário de horror.

Otávio, o capitão dos bombeiros pisca várias vezes achando que está enxergando mal. Olha para seu companheiro Salvador e em silêncio se questionam sobre a veracidade da visão. Ninguém fala. Ninguém ousa quebrar aquele momento de encantamento macabro.

Como uma tora de árvore queimada, enegrecida e com focos de fumaça saindo por todos os lados, a bibliotecária dá alguns passos trôpegos segurando um imenso livro aberto num capítulo escrito em latim: INCIPIT EVANGELIVM SECUVNDVM LVCAM

Imagem: Biblioteca Sarajevo

Lucubrações numa tarde chuvosa

A tarde úmida e fria me saúda. Olho pela janela e a vejo tingindo a cidade de cinza. Gosto disso. Cá dentro, no conforto de minha sala, saboreio um chá de rosa silvestre, hibisco e amora. Admiro sua tonalidade carmim, seu aroma adocicado, sua fumaça suave que sobe e se perde no ar. Assim como meus pensamentos. Gosto desse horário em que me perco em linhas de rimas, de ritmo e, falando em ritmo, minha trilha sonora é Brahms. Sua sonoridade me remete a um passado que possivelmente não vivi mas que me soa tão familiar. Chego a me ver rodopiando por aqueles imensos salões do século XIX. Lembro que ele – Brahms, representou brilhantemente o romantismo musical.

Também sou ultrarromântica e totalmente musical. Sorrio diante dessa constatação. Meu caro Brahms, temos coisas em comum!

O chá, delicioso aquece meu interior assim como as notas musicais que penetram muito mais que meus ouvidos. Inundam minha alma de uma paz temporária e boa demais. Sei que em breve irá embora mas por hora, me deleito.

Olho novamente pela janela e vejo que a garoa aperta, transformando a paisagem urbana numa pintura de Edward Hopper. Lá fora, diante do boteco, uma figura folclórica que tira seu cochilo habitual quase caindo de sua cadeira. Acho graça em seu perfeito equilíbrio sonambúlico.

Volto para a sala e constato inúmeras vidas solitárias agregadas em pseudos grupos. Cada alma encarcerada em seu universo particular não abrindo mão de seus celulares de grife. Dourados, negros, brancos, azuis. Telinhas brilhantes inundando a biblioteca de uma suposta vida virtual.

Incapazes de um “olho no olho”, desviam de meus olhos perscrutadores e curiosos. Gostaria tanto de receber um olhar de volta!

Agora é Bach quem me faz companhia. Isso me lembra o quanto ando afastada de qualquer religiosidade. Quanto tempo não adentro uma igreja a não ser para apreciar a arquitetura. Esse passatempo adquiri com um amigo que ama visitar igrejas e foi através dele, que perdi minha virgindade eclesiástica. Pode parecer engraçado para quem não me conhece mas, fui criada em outra religião apesar de ter feito primeira comunhão como manda o figurino. Imposição de papai que fazia questão que todos os seus filhos comungassem.

Outro dia, saindo do trabalho, caminhando sem rumo pela avenida Paulista, passei pela paróquia São Luis Gonzaga. Em mais de vinte anos passando em frente, nunca havia entrado! Minhas pernas ganharam independência e me levaram para seu interior.

Fiquei maravilhada com a paz que encontrei por lá. Em pleno coração financeiro e cultural de São Paulo, envolta por tanta poluição sonora, encontrei um mundo totalmente silencioso do qual tive que fazer um esforço absurdo para sair.

Aproveitei para pensar na vida. Ou melhor, aproveitei para limpar minha mente de qualquer pensamento ou preocupação cotidiana. Simplesmente fiquei!

Fechei os olhos e assimilei toda aquela energia que volitava por entre aquelas paredes. Que sensação maravilhosa. Recomendo a todos que façam ao menos um dia tal experiência. A única oração que fiz foi abrir meu coração e mente para toda aquela beleza invisível aos olhos humanos.

E falando em olhos humanos… O que vejo daqui de minha mesa! Oh dura realidade que nos força a retornar e deixar de lado as divagações.

Um doce de aluna recortando uma         peraí, uma     Vou disfarçar e chegar mais perto como quem não quer nada.

Uma revista DA BIBLIOTECAAAAAAA!!!!!!!!!!

“VALENTINAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!”

Crônica do Atchim!!

espirrando

Movimentação na biblioteca. Nem de longe lembra o templo do saber. Mais parece final de campeonato. Algazarra total com os lugares tomados pela criançada num momento especial: gravação de um filme.
Uma euforia acompanhada de maquiadores, roteiristas, iluminadores, cinegrafista e a presença constante do professor que de forma hercúlea, tenta se fazer entender.
Do lado de cá do balcão, observo a tudo e tento reprimir minha vontade de fazer algo que não devo mas que está difícil de controlar.
Não. Não é o que você está pensando. É outra coisa.
Como também serei protagonista nessa história, devo manter a pinta de mocinha a todo custo. Provar que sou uma grande dama da sétima arte. Está duro manter a pose. Olho para os lados na inútil tentativa de sair de cena sem ser notada. Impossível. Uma barricada de pessoas que compõe a equipe de gravação impede a entrada e saída de qualquer pessoa do recinto.
Sinto que vou explodir a qualquer momento.Internamente lamento.
Por fora sorrisos congelados pela bela maquiagem que me foi feita. Cabelo ajeitado por trás da orelha, olhar de intelectual, passo eles pela gleba pré-adolescente que finge estar fazendo algo que nem sabem o que é: estudar!
Olhares eufóricos pela atividade, pelo ambiente novo diante de seus olhos que não estão acostumados a frequentar a biblioteca local. A meu ver, desperdício total.
A gravação segue seu curso, parando inúmeras vezes e retomada vezes infindas também.
E eu, procurando manter-me invisível, quase não aguentando mais. Pensando que vou botar todo o trabalho de uma tarde a perder.
Não desejo ser a responsável mas não sei se terei saída. Sinto-me traída.
Por uma vontade animalesca de… Ai, meus olhos ardem. Como dizia, uma vontade de… Oh God! Não posso. Estão quase terminando. Preciso aguentar mais um pouco. Vamos, pense em algo bem diferente. Pense em suas férias na praia de Acapulco, ou nos Alpes Suíços, ou até mesmo na chácara do seu tio Bernardo, em Porangaba. Desvie seu pensamento por mais um tempo. Vai menina, você é capaz!
Puta que pariu! Eles não terminam nunca e eu…eu acho… eu acho que não…
– Posicione para gravarmos você simulando um empréstimo.
– Maquiadora! Vem dar um brilho no rosto da bibliotecária. Cadê a cabeleireira! Vem Janete, dá um jeito nessa cabeleira rebelde. Zenaide, passa um blush nela porque está muito pálida. Ah! Um batom também. Nossa que boca mais sem cor!
– Moça, essa maquiagem é antialérgica?
– Não… Porq???
ATCHIM! ATCHIM!ATCHIMMMMMMMMM!!
Foi-se pro espaço. cabelo, maquiagem, compostura. Ficou apenas meus olhos esbugalhados de tanto tossir, engasgar, chorar. Oh vida difícil de pessoa alérgica. Basta chegar a temporada e começo a surtar.
Ah, mas quer saber? No final, tudo deu certo e consegui gravar minha participação no filme.
A cabeleireira e a maquiadora fizeram milagres e saí bem na fita. Acho que dou pra coisa!

Imagem: Google

Incubadora de ideias

Extremily bizarre surrealDesmaio por dentro em imensas correntezas de preguiça. Pode parecer exagero de minha parte mas é exatamente assim que me sinto. O pouco oxigênio que compartilho nessa sala com outras pessoas torna-me quase um zumbi. Assonada, engulo moscas, poeira invisível, ânimo alheio e os poucos sonhos que ainda acalento. Luto para sair desse estado mas tanto o espírito quanto a matéria sentem-se vencidos. Entrego os pontos.

Embarco na leitura de um livro de Lewis Carroll. Deixo-me seduzir pela fantasia que ainda é o porto seguro para os mais sensíveis e desgarrados dessa vida material e miserável. Só isso não me basta. Preciso e quero sonhar com algo melhor. Assumo a persona de Alice e saio correndo pelos labirintos tracejados em minha mente obscura. Procuro algo que ainda não tenho certeza do que seja. O que não tem tanta importância mas sim, o ato em si de procurar. Isso significa viver. Mobilizar-se para algo mais grandioso do que essa rotina de olhar o vazio de outras almas plasmado numa foto registrando um pretenso momento feliz que nunca existiu. De passar os olhos embaçados e curtir o que nem lemos ou assimilamos direito.De  compartilhar ideias que surgem do nada e voltam para o nada. Nada. Nada. Nada…

Aqui, nessa ilha da fantasia chamada ficção, reencontro personagens que nutrem essa minha eterna carência de vida. Homens e mulheres, bichos, seres alados, magia por todos os lados fazem minha alma mais feliz. Mirando o redor e enxergando centenas de livros dos mais variados tamanhos, estilos, autores que compõe uma biblioteca, imagino-me uma rainha e sua corte. A tarde outonal vai cedendo a chegada da noite de forma mansa e solícita.Do lado de fora, numa tela de cinema mudo, percebo os carros num desfile sem sons. Um colorido esmaecido pela fuligem dos motores. As parcas árvores que ainda restam balançam diante da doce carícia do vento. Aqui, no parapeito, acolá nos fios de alta tensão, pássaros encardidos cumprem com sua sina trazendo-nos um pouco da vida natural nessa selva de concreto.
Um senhor a minha frente se perde em sua leitura do jornal. Ao lado, uma criança se entrega a sua tarefa de casa. Ao longe, sons abafados de crianças brincando no parque me lembram que ainda pertenço a esse mundo. Da mesma forma que o mundo das fábulas, ainda temos nuances de alegria e encantamento. Nem tudo está perdido para essa autora cética da humanidade. Ainda tenho muito a escrever!

Imagem: Tfich

Amor ao que se faz

Roseli_Pedroso_370

No silêncio da biblioteca, um par de olhos percorre estantes, passeia por títulos e capas, busca algo que nem sabe o que é…

Tarde preguiçosa de outono, um jovem senhor percorre corredores, observa sinalizações, observa móveis, estantes, iluminação. Toca as capas de livros, esboça um sorriso no olhar.

Sai da mesma forma que entrou, em silêncio. Mas com uma diferença: sorri abertamente e, pela primeira vez, enxerga a bibliotecária que o tempo todo esteve atenta. Diz um quase inaudível e tímido “Boa tarde” e some pelos corredores.

Satisfeita, a bibliotecária olha para seus companheiros de trabalho e pensa:

“Mais um usuário feliz com o que encontrou. Esse, tenho certeza que voltará muitas e muitas vezes! Acompanhei de perto sua transformação.”

É isso. A matéria prima de um profissional de biblioteca não é apenas emprestar e devolver livros. Vai muito além. Como as sacerdotisas celtas, temos a missão de transformar leitores em pessoas melhores. E isso, fazemos através da escolha dos livros para exposição e sugestão de leituras, pelo nosso olhar sempre atento, conciliador, sedutor e claro, no sorriso contante em nossos rostos. Não aquele sorriso Colgate de propaganda de TV e sim, o sorriso que vem da alma e se espelha no rosto da(o) profissional que abraça essa profissão como sacerdócio e que acredita piamente que sua profissão é muito mais que seguir as tabelas PHAs, CDD e CDUs da vida.

Quem segue esse caminho torna-se apenas um tecnólogo competente mas frio. Nada contra afinal precisamos também desse profissional contudo, o usuário de uma biblioteca carece de alguém mais humanizado a frente do atendimento e da troca com eles. Numa biblioteca somos vários profissionais juntos num só: padre, psicólogo, professor, médico da alma, orientador. Ouvimos muitas vezes, o que ninguém soube e guardamos segredo pois sabemos o quanto nossa atenção e confiança é importante para aquele leitor que muitas vezes, sentindo-se desorientado em alguma questão, nos procura.

E com essa confiança adquirida, ganhamos o carinho, o respeito e o amor do usuário para o resto da vida. Sei disso por experiência própria. Ganhei usuários pequeninos, os vi crescer, orientei-os em várias questões e hoje, formados, adultos e com família constituída, encontro-os e sou sempre recebida com um sorriso e um brilho nos olhos de reconhecimento e respeito pela “tia da biblioteca” que tanto os ajudou.

É nessas horas que me certifico que escolhi a profissão certa!

Imagem: acervo da própria autora

Tarde voyeur (ou xeretando vida alheia)

Foto-0040

A tarde desmaia mansamente em minha janela tomada pela fuligem dos carros e cocôs de pombos. Meus olhos cansados passeiam pelos rostos anônimos. Observo o senhor da pipoca que toda tarde estaciona seu carrinho para faturar com a fome das crianças. Enquanto elas não saem pelo portão do colégio, ele joga conversa fora com o pessoal do boteco em frente. Daqui ouço suas vozes sem conseguir decodificar ao certo o assunto do momento. Ao lado do bar, uma loja de antiguidades exibe um elefante branco imenso em sua vitrine. Em minha opinião, um pouco exagerado para uma humilde vitrine. Enfim…Mudo o foco e visualizo uma madame saindo de um carro luxuoso parecendo que fugiu de uma propaganda europeia. Esguia, usando saia preta justa na altura do joelho, saltos agulha de verniz, blusa de seda estampa oncinha, ornada por joias que acredito, sejam verdadeiras. Óculos de sol Monblanc – reconheço pois sou mulher antenada na moda. Um luxo só!

Cabelos vermelhos de um brilho intenso, mais parece uma Gilda repaginada.

Dentes alvos envoltos em boca carnuda carmim feito seus cabelos. Não tem quem não vire para admirá-la.

Com ar preocupado, olha seu celular Nokia N95 com 325 diamantes, revestido de ouro dezoito quilates (reconheci pois li um artigo falando dessa belezura para poucos) e fazendo uma ligação, gesticula muito deixando a mostra mãos muito bem manicuradas. Mãos de quem nunca pegou no pesado. Espicho mais o pescoço para fora da janela na dura intenção de ouvir o que aquela diva Givenchy esbraveja ao celular. Coisa mais feia, é, eu sei mas a curiosidade matou um gato não foi? E eu doidinha para matar minha curiosidade sobre aquele personagem incomum.

Para minha infelicidade, o telefone toca. Resisto na vã esperança de que a pessoa do outro lado desista ou perceba que se enganou.

Não se enganou. Volto para a mesa atendendo uma desconhecida em busca de seu filho que ficou de passar a tarde na biblioteca estudando.

Irresponsavelmente respondo que ele não se encontra e desligo. Atravesso a sala louca para retomar minha aventura voyeur mas, o que encontro é um vazio onde a dama se encontrava. Um sentimento estranho toma conta de mim. Misto de decepção e espanto em me conscientizar do quanto saí de minha gaiolinha para xeretar vida alheia.

Acabei numa gargalhada sonora e gostosa deixando os poucos alunos aqui presentes sem entenderem nada do que havia acontecido. Ri até a barriga doer e ficar com os olhos lacrimejando. Voltei para a mesa balançando a cabeça observando o quanto uma boa música ao fundo e uma mente imaginativa pode criar afinal, tudo não passou de uma fuga de um dia de rotina cansativo. Só desejei repousar por alguns minutos na ficção. E não é que deu uma boa história?

Mas que eu fiquei curiosa com aquela dama…Ah fiquei! Quem será ela?

Talvez a encontre em outras histórias…

Imagem: Acervo da autora

Zen nada pra fazer

Imagem

A tarde se despedindo me leva a refletir sobre tudo e nada. Solitária entre livros, ouço o barulho do trânsito que insiste em entrar na biblioteca pelas frestas das janelas. Dá um certo ritmo ao silêncio. Gosto desse horário. É um instante em que tenho a chance de pensar em outras coisas que não sejam catalogação, indexação, palavras-chave. É o momento em que me liberto da bibliotecária, estou longe da dona de casa, distante da filha e irmã. Enfim, um rasgo da realidade onde me permito ser apenas eu.

Esse recorte me possibilita esvaziar tristezas, decepções, fardos, Uns minutos em que me permito desenhar sorrisos bobos, piscar os olhos de expectativa do novo – mesmo que o novo ainda não tenha surgido – mascar o nada, cantar a esmo, criar realidades.

Gosto desse clima outonal onde os vários tons de cinza se mesclam entre a natureza e a poluição dos prédios. Sinto fazer parte disso tudo. Aprecio os tons alaranjados das folhas que caem formando um lindo tapete natural.

O sinal ensurdecedor do colégio avisa que está na hora de encerrar mais um dia, mais uma semana que se vai. Já faz parte do passado. Hora de se desligar da empresa, vestir o uniforme de fim de semana e tentar mais uma vez ser feliz!