Mudez

Tenho tanto a dizer no entanto, permaneço encolhida nesse canto escuro. Evito multidões, pego carona no anonimato, negocio com o invisível.

O mundo gira, gira, gira e… continuamos a cometer os mesmos erros do passado. Alimentando ideias e atitudes que não servem mais para o século vinte e um e, mesmo assim, permanecemos apegados a regras e condutas que ferem a humanidade que escapa por nossos dedos. Nos transformamos em quê? Réplicas de rascunhos jogados fora do grande Senhor da Vida. Insistimos em ser o escrito mal desenvolvido, traçados renegados que moldamos de forma irresponsável e dizemos para quem quiser nos ouvir que inventamos algo novo. Nos iludimos e iludimos os demais idiotas que nos seguem sem raciocinar sobre nossas palavras.

A história (triste) se repete e se repete… incansavelmente, se repete. Quero crer que exista algum fundamento para tudo isso acontecer sempre. Ando descrente, em luta interior com meus próprios valores. Enquanto a guerra se desenha em terras distantes, travo uma guerra particular e – confesso – não acredito que haja um vencedor. Assim como lá.

Enquanto a bomba nuclear derradeira não estoura por aqui, ouço Four Seasons, na esperança de que a música acalme e me transporte para paragens mais verdes e que uma brisa suave e perfumada me convença de que tudo é passageiro, inclusive, a ignorância humana.

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Nua

Há uma semana enclausurada em meus 42 metros quadrados sem direito a uma varanda gourmet. Minhas camisetas já estão mais justas e os músculos flácidos. Isso não é por conta do confinamento, é preguiça mesmo contudo, sei da necessidade de me exercitar. Ontem a noite percebi que alguns produtos básicos se encontravam no fim. Pensei: vou encomendar pela internet e eles me entregam.

Três grandes supermercados estão congestionados sem previsão para entrega. Bateu desespero.

Despertei por volta das sete horas e fui correndo tentar fechar uma compra num dos supermercado. Sem previsão de entrega. Nos três. Em minha rua, a poucos metros do meu prédio tem um supermercado, na rua paralela outro e mais a frente outro. Em minha rua tem padaria, farmácia, lojas. Todas fechadas com exceção da farmácia e do supermercado.

Fui protelando a hora de descer e fazer de vez as compras. Uma insegurança em colocar os pés para fora do meu apartamento. Pensei: ah, o que tenho aguenta mais uma semana. Não vou.

No entanto, uma semente do desespero abriu fendas em minha alma. Me troquei, peguei a bolsa, sacolas e desci para a rua. Vazia, estranha, desconhecida. Nem as putas da esquina se encontravam fazendo ponto.

Fui num fôlego só. Cheguei ao mercado, peguei o carrinho e saí desembestadamente pegando todos os itens necessários de minha lista. Os demais clientes, assim como eu, encontravam-se calados, olhar assustado, desviando seu carrinho do meu, ninguém ficando junto num mesmo corredor. Uma coreografia interessante. Um acordo mudo entre todos. Sorrisos tímidos sem mostrar os dentes de medo do tal vírus. Olhos baixos ou fixos nas mercadorias desejadas. Claro, não encontrei álcool. Somente os destilados enfileirados em suas gôndolas. Solitários. Fiquei tentada em fazer um estoque para me ajudar a passar as horas. A lógica superou a loucura e deixei-os de lado. Já me encontrava tempo demais fora de casa. Mais uma vez, bateu desespero. Tenho certa idade, meus cabelos platinados podem chamar a atenção do vírus, encontro-me fora de forma, estou sozinha… Foram tantos pensamentos desordenados a poluir minha mente que corri para o auto atendimento. Não queria nem chegar perto da moça do caixa. Coitada. Pelo que pude observar, ela silenciosamente me agradeceu a escolha. Reconheci o medo em seus olhos também.

Registrei as mercadorias, paguei, organizei as três sacolas lotadas em meus ombros e saí em disparada rumo à segurança de meu lar. Ao aguardar o semáforo abrir para o pedestre, dois sem teto se aproximaram pedindo ajuda para comprar algo para comerem. Vergonhosamente, disse não ter dinheiro e comecei a orar para que o sinal abrisse. Um deles se afastou mas o outro ficou emparelhado comigo, dizendo impropérios, me chamando de velha sovina, desejando que o tal vírus me acolhesse a alma não cristã. De olhos embaçados, atravessei a rua correndo risco de atropelo ou possível queda. Subi onze andares carregando o peso das sacolas e de minha alma encolhida, quase uma ervilha.

Ao girar a chave, deixei a realidade lá fora. Despi por completo e, nua, levei as roupas para a máquina de lavar, joguei o tênis no tanque, e corri para o chuveiro onde pude finalmente, deixar as lágrimas represadas virem à tona misturando-se à água do chuveiro. Soluços, engasgo, vergonha da minha humanidade tão mesquinha e medrosa.

Aos poucos, me acalmei. Consciente da água desperdiçada, levantei do chão, fechei o registro, me enrolei na toalha. Ao longe, ouço a voz potente da nossa “Pimentinha” cantando a oração do momento:

Se eu quiser falar com Deus, tenho que ficar a sós/Tenho que apagar a luz…Tenho que ter mãos vazias/Ter a alma e o corpo nus…

Enquanto organizo os mantimentos na dispensa, constato a falta de um item: Droga, que merda, esqueci do café!

Deus!!! Olhai por nós!

Carta de apresentação

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Testo minha capacidade de continuar escrevendo. E escrevo para manter a lucidez.

Exercito a escrita, gerando força para seguir em frente com a vida. Essa mesma vida que hora está uma beleza, ora pesadelo.

E nesse exato momento, ela se encontra feito roteiro de Bergman. Introspecção total no qual me escondo para não encarar minha mediocridade.

Quisera eu ser uma pessoa genial. Não sou. Vivo meu dia a dia comandada pela mesquinhez, corroída pela falta de amor próprio, inveja e desejo de exterminar metade da população mundial.

Reconhecer a vileza e ignorância das pessoas que me rodeiam, me faz lembrar que não sou diferente delas. E isso acaba comigo. Dia após dia, durmo pensando em acordar uma pessoa melhor.

E sempre desperto sentindo que estou mais miserável, mais hipócrita, mais…

Desesperada por dar um fim a essa maratona desembestada tentando provar que sou melhor. Não. Não sou melhor que ninguém. Também não sou pior. Somente, minha humanidade pura, bruta, ressequida, fala mais alto. Salta aos olhos dos outros que, críticos feito eu, reconhece-se em mim e gera – neles também – , essa revolta que não tem fim.

 

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Balanço geral

Todo ano a mesma coisa. Os mesmos rituais. Os mesmos rostos eufóricos a desejar o melhor. E assim, escapando do estresse que é enfrentar lojas e filas, além do mal humor de balconistas que trabalham cerca de dezoito horas em péssimas condições (sei bem porque já fui uma), perder horas preciosas no trânsito ou no aperto das conduções coletivas. É chato, é desgastante mas, quando nos reunimos para se confraternizar, tudo some: cansaço, nervosismo, mal humor, noites mal dormida.

Fica a leveza de espírito em saber que conseguimos finalizar mais um ano de muito trabalho, dissabores, perdas, falta de dinheiro e inúmeras incertezas. Mantêm-se a certeza de que, o que vale mesmo, são os momentos que passamos juntos aos que amamos e re-afirmamos mais um ano de contrato.

Esse ano, mais do que outros, tenho a certeza de que devemos nos esforçar para fazer cada momento único e rico em alegria, tolerância e amor. Não sejamos econômicos em expressar carinho e sorrisos. Como seres em eterna mutação, acredito que nossa permanência aqui no plano terreno é bem passageiro e – por conta disso mesmo – precisamos nos conscientizar que precisamos amar, mas amar muito. Não esse amor Doriana que a indústria marqueteira propaga e sim, o amor verdadeiro que a tudo suporta e nada cobra. Apenas aceita.

Estou parecendo piegas? Pode ser caro leitor. Quer saber? Bendito os que ainda têm a capacidade de ser piegas e não se envergonha de expressar o que pensa ou sente.

A humanidade está carente e precisa se despojar dessa roupagem fake no qual todos devemos aparecer belos, magros, bronzeados e felizes. Abaixo a maquiagem. Desejo homens e mulheres de cara e coração limpos. Sem artifícios. Apenas humanos.

Descobri-me carneiro

DSC01493Em plena manhã ensolarada, uma tormenta se aproxima de mim e em pouco tempo, deságuo. Tento disfarçar minha umidade, mas não obtenho sucesso e as pessoas ao meu redor começam a olhar e comentar baixinho entre si. Outras, mais discretas apenas me olham de soslaio e abaixam a cabeça ou desviam o olhar atravessando a janela do coletivo perdendo-se na paisagem urbana. Uma dor que não consigo medir nem descrever toma conta de meu peito que parece pequeno para acomodar um coração que está prestes a explodir. Estarei enfartando penso eu num breve momento de lucidez. Estarei prestes a morrer? Tantos morrem seguindo para seu trabalho. Farei parte dessa estatística?

Uma sirene grita pedindo que abram espaço num trânsito transbordando de tantos tanques urbanos que tomam espaço de três carros na avenida. Os motoristas olham-se assustados, irritados, pois não tem pra onde sair para deixar a ambulância passar. Seu grito continua ecoando fazendo trilha sonora ao meu sofrimento. Choro e minhas lágrimas quentes abrem brecha numa esperança de servir de caminho para aquele que tenta sobreviver dentro da ambulância. Inútil eu sei, no entanto, prefiro pensar que ajudo de alguma forma a salvar uma vida.

Quero parar de chorar mas não consigo. Para completar, o ônibus faz uma parada num ponto em frente ao cemitério Redentor e uma canção começa a tocar no rádio Say a little prayer for you…

A tormenta volta com força total e me encolho no canto próximo à janela numa tentativa de tornar-me invisível. Parece que absorvi toda dor existente no mundo e meu peito não tem espaço suficiente para abarcar tamanha dor.

– Moça, moça, tudo bem? Já chegamos à Avenida Paulista. Ponto final. Sei que desce sempre aqui. Todo mundo já desceu.

Com muito esforço saio da neblina que me encontro e ainda com dificuldades em respirar, retorno à realidade. Agradeço o cobrador por se lembrar de mim e me avisar. Desço e tropegamente inicio minha caminhada até a empresa onde uma série de atividades me aguarda. Preciso recuperar a lucidez e despir a vestimenta de carneiro. Pelo menos por hora, voltar a ser humana.

a imensidao intima dos carneirosMarcelo Maluf, você foi o responsável por esse “mico” que paguei em plena luz do dia por volta das 8h43 da manhã dessa quarta-feira. Mais pessoas engrossarão o cordão dos que me acham doida por cantar e chorar e ler e voltar a cantar e chorar em público. Lendo o seu livro recém-lançado A imensidão íntima dos carneiros, me catapultou para uma realidade lindamente dolorosa e sofri toda a dor de seus antepassados que nada mais é, que a dor de toda a humanidade condensada nos seus. Você teve o dom de me transformar em um dos carneiros e pude vivenciar todo esse universo de sensações e dores que fazem de nós, medonhamente humanos.

Você fala no medo que é matéria palpável em todos que passamos por essa vida terrena e isso, torna seu romance universal. Parabéns! Tenho certeza que ele será compreendido em todas as nacionalidades que ele porventura venha a ser traduzido. Sua linda história familiar já é um sucesso por ter sido tramada com pontos tão finos e delicados que mesmo um ogro, ao ler suas páginas, verão seus corações empedernidos desmancharem com tamanha beleza e verdade. Ainda agora, de frente a tela de meu computador no trabalho, escrevendo essas linhas finais, emociono-me. O belo também nos faz chorar!

Título: A imensidão íntima dos carneiros

Autor: Marcelo Maluf

Editora: Reformatório

Ano: 2015

Leia um trecho: http://sidengo.com/imensidaointima

Book trailer: https://youtu.be/XKgfVqrDeJs