Há uma semana enclausurada em meus 42 metros quadrados sem direito a uma varanda gourmet. Minhas camisetas já estão mais justas e os músculos flácidos. Isso não é por conta do confinamento, é preguiça mesmo contudo, sei da necessidade de me exercitar. Ontem a noite percebi que alguns produtos básicos se encontravam no fim. Pensei: vou encomendar pela internet e eles me entregam.
Três grandes supermercados estão congestionados sem previsão para entrega. Bateu desespero.
Despertei por volta das sete horas e fui correndo tentar fechar uma compra num dos supermercado. Sem previsão de entrega. Nos três. Em minha rua, a poucos metros do meu prédio tem um supermercado, na rua paralela outro e mais a frente outro. Em minha rua tem padaria, farmácia, lojas. Todas fechadas com exceção da farmácia e do supermercado.
Fui protelando a hora de descer e fazer de vez as compras. Uma insegurança em colocar os pés para fora do meu apartamento. Pensei: ah, o que tenho aguenta mais uma semana. Não vou.
No entanto, uma semente do desespero abriu fendas em minha alma. Me troquei, peguei a bolsa, sacolas e desci para a rua. Vazia, estranha, desconhecida. Nem as putas da esquina se encontravam fazendo ponto.
Fui num fôlego só. Cheguei ao mercado, peguei o carrinho e saí desembestadamente pegando todos os itens necessários de minha lista. Os demais clientes, assim como eu, encontravam-se calados, olhar assustado, desviando seu carrinho do meu, ninguém ficando junto num mesmo corredor. Uma coreografia interessante. Um acordo mudo entre todos. Sorrisos tímidos sem mostrar os dentes de medo do tal vírus. Olhos baixos ou fixos nas mercadorias desejadas. Claro, não encontrei álcool. Somente os destilados enfileirados em suas gôndolas. Solitários. Fiquei tentada em fazer um estoque para me ajudar a passar as horas. A lógica superou a loucura e deixei-os de lado. Já me encontrava tempo demais fora de casa. Mais uma vez, bateu desespero. Tenho certa idade, meus cabelos platinados podem chamar a atenção do vírus, encontro-me fora de forma, estou sozinha… Foram tantos pensamentos desordenados a poluir minha mente que corri para o auto atendimento. Não queria nem chegar perto da moça do caixa. Coitada. Pelo que pude observar, ela silenciosamente me agradeceu a escolha. Reconheci o medo em seus olhos também.
Registrei as mercadorias, paguei, organizei as três sacolas lotadas em meus ombros e saí em disparada rumo à segurança de meu lar. Ao aguardar o semáforo abrir para o pedestre, dois sem teto se aproximaram pedindo ajuda para comprar algo para comerem. Vergonhosamente, disse não ter dinheiro e comecei a orar para que o sinal abrisse. Um deles se afastou mas o outro ficou emparelhado comigo, dizendo impropérios, me chamando de velha sovina, desejando que o tal vírus me acolhesse a alma não cristã. De olhos embaçados, atravessei a rua correndo risco de atropelo ou possível queda. Subi onze andares carregando o peso das sacolas e de minha alma encolhida, quase uma ervilha.
Ao girar a chave, deixei a realidade lá fora. Despi por completo e, nua, levei as roupas para a máquina de lavar, joguei o tênis no tanque, e corri para o chuveiro onde pude finalmente, deixar as lágrimas represadas virem à tona misturando-se à água do chuveiro. Soluços, engasgo, vergonha da minha humanidade tão mesquinha e medrosa.
Aos poucos, me acalmei. Consciente da água desperdiçada, levantei do chão, fechei o registro, me enrolei na toalha. Ao longe, ouço a voz potente da nossa “Pimentinha” cantando a oração do momento:
Se eu quiser falar com Deus, tenho que ficar a sós/Tenho que apagar a luz…Tenho que ter mãos vazias/Ter a alma e o corpo nus…
Enquanto organizo os mantimentos na dispensa, constato a falta de um item: Droga, que merda, esqueci do café!
Deus!!! Olhai por nós!