31 de outubro – Dia D

E por conta do Halloween, quase cometo a heresia de me esquecer de enaltecer um dos maiores escritores de nosso tempo: Drummond.

Para quem não sabe, hoje é a data do nascimento de um de nossos maiores poetas: Carlos Drummond de Andrade e por conta disso, desde 2011 o Instituto Moreira Salles organiza o Dia D – Drummond para que passe a integrar o calendário cultural do país.

Sempre participo dessa celebração pois o legado do nosso poeta é vasto, é rico e precisamos valorizar a escrita de nossos autores brasileiros, tão pouco reconhecidos pelo próprio povo brasileiro.

Lanterna mágica

Meus olhos têm melancolias,

minha boca tem rugas.

Velha cidade!

As árvores tão repetidas.

Debaixo de cada árvore faço minha cama,

em cada ramo dependuro meu paletó.

Lirismo.

Pelos jardins versailles

ingenuidade de velocípedes.

E o velho fraque

na casinha de alpendre com duas janelas dolorosas.

No país dos Andrades

No país dos Andrades, onde o chão

é forrado pelo cobertor vermelho de meu pai,

indago um objeto desaparecido há trinta anos,

que não sei se furtaram, mas só acho formigas.

No país dos Andrades, lá onde não há cartazes

e as ordens são peremptórias, sem embargo tácitas,

já não distingo porteiras, divisas, certas rudes pastagens

plantada no ano zero e transmitidas no sangue.

No país dos Andrades, somem agora os sinais

que fixavam a fazenda, a guerra e o mercado,

bem como outros distritos; solidão das vertentes.

Eis que me vejo tonto, agudo e suspeitoso.

Será outro país? O governo o pilhou? O tempo o corrompeu?

No país dos Andrades, secreto latifúndio,

a tudo pergunto e invoco; mas o escuro soprou; e ninguém me secunda.

Adeus, vermelho

(viajarei) cobertor de meu pai.

Inocentes do Leblon

Os inocentes do Leblon

não viram o navio entrar.

Trouxe bailarinas?

trouxe imigrantes?

trouxe um grama de rádio?

Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,

mas a areia é quente, e há um óleo suave

que eles passam nas costas, e esquecem.

E você? Já leu um poema hoje? Já Drummondiou?

BEDA – Alquimia

Os vapores sobem

No espargir dos aromas

Manuseia o tomilho

Que trata como um filho

Cantarola  enquanto refoga

Canções que improvisa

A bordo de permanente sorriso

Dois fios de azeite

Sobre dentes de alho esmagado

Acompanhados por

Dentes-de-leão

O refogado hipnotiza e seduz

Tragam o açafrão, a flor de sal

O estragão!

A salsaparrilha

O pulsar do coração

No panelão de ferro

Arte e alquimia

Degustadora poesia

Em silêncio

Condimentos

São sentimentos

(Jorge Ricardo Dias)

Esse texto faz parte da blogagem coletiva BEDA Blog Every Day August

Participam comigo:

Claudia Leonardi – Darlene Regina – Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Ortega Nuñes – Suzana Martins

Imagem licenciada: Shutterstock

Beda 19 – Salv(oa)dor

Salvoador

de um povo oprimido

não reconhecido,

retumba o tambor

De um espírito forte

lutador, que rangeu de dor

nas senzalas de seu senhor

Quebrou grilhões, partiu

ainda não encontrou

nem provou seu valor

— Num lamento grave

foliões, sua o peito latejante

Seguem adiante, inovando

— passos

Nem Gabriela, nem Jorge

muito menos, Brown

O povo na rua

— clama

reconhecimento, respeito

Marias, Josés, Janainas,

tantos anônimos que

cedo, estômago vazio

— quando muito,

tapioca ou acarajé

Os estimulam a seguir

sobrevivendo, numa Salvador

árida, blue, suja, degradante,

No centro velho, ninguém se salva,

impera somente

ador.

Esse texto faz parte do b.e.d.a — blog every day august.

Participam Adriana Aneli — Claudia Leonardi — Darlene Regina – Lunna Guedes – Mariana Gouveia — Obdulio Nuñes Ortega

Imagem: acervo pessoal

Beda 3 – Muitos, nunca mais

Passei a noite em claro,

no escuro

com olhos estatelados

mirando o nada, fechados

para o mundo

os meses têm sido incômodos

movo-me, inquieta na paralisia

dos dias comandados pelo isolamento

lamento, a perda de tantas vidas

de nossas rotinas, de doces abraços, de hálitos quentes

hoje me irritei

com a felicidade alheia, escarrada

em minha janela

uma família brincando, a beira da piscina

cerrei a cortina, indignada

como conseguem sorrir

diante de tamanha dor?

sons uivantes rasgam a tarde

prenúncio de mais dissabor

e eles ali, sorridentes ao redor

da mesa farta de churrasco

recebendo a luz que o sol irradia

iluminando seus sorrisos de publicidade

odeio qualquer manifestação

de falsa felicidade

ofensa alheia, tal alegria desencadeia

um asco

engulo palavras em silêncio

praguejo a humanidade em fúria

alimentada pelo calor do final de verão

choro, pois muitos nunca mais

verão

nem luz, nem escuridão.

Esse texto faz parte do b.e.d.a — blog every day august.


Participam Adriana Aneli — Claudia Leonardi — Darlene Regina – Lunna Guedes – Mariana Gouveia — Obdulio Nuñes Ortega

Imagem: acervo pessoal

B.E.D.A. – Clausura

grilhões

impedem meu caminhar

rotina

me sufoca

mesmice laboral

ruína dos sonhos

planos esfacelados

de uma vida leve,

colorida

obrigações,

responsabilidades,

dívidas

transformam

ganhos em perdas

permaneço

nessa prisão

anseio sair

não sei

para onde ir

grito

por mudanças

não saio

do lugar

ralho

contra o sistema

contribuo

com passividade

falsa

sou

como todos

bulímica

mastigo

o dia a dia

não sinto

sabor

vomito

nada supre

a fome da alma

sigo

feito zumbi

nessa trilha

chamada vida

trago

dúvidas

vale a pena

prosseguir?

almejo

liberdade

só não sei

como ela é.

Participam dessa blogagem coletiva:

Adriana Aneli – Alê Helga – Claudia Leonardi – Darlene Regina – Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Ortega

Peça quebrada

Abraço-me

tentativa de sentir a própria

solidão

Grito em meu mutismo

busca vã por

alguém

Me cerco por móveis

desmontados,

simbolizam meu interior

procuro solução para nova

montagem

Sou relógio faltando peças

Algo quebrado necessitando troca

Ouço um tic-tac confirmando:

existo!

Participam dessa blogagem coletiva:

Adriana Aneli – Alê Helga – Claudia Leonardi – Darlene Regina – Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Ortega

Imagem licenciada: Shutterstock

B.E.D.A. – Descrença

O doce da rapadura é amargo

Assim como o amor day after

Seco, árido, vazio

Vazio são os diálogos soltos no ciberespaço

Muitos bits, raros momentos de sabedoria

não de bar mas, da vida

Vida rasa, falsa, frágil, empobrecida

Pobre de mim que suporto tanta mediocridade

Na minha idade, não tenho mais paciência

E a ciência? Perdendo tempo em prologar

essa merda de vida…

Báh!

Esse texto faz parte da blogagem coletiva “Blog Every Day April”. Participam também:

Adriana Aneli – Alê Helga – Claudia Leonardi – Darlene Regina – Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Ortega

 

Marulho

Navegar é preciso

viver não é preciso, dizia Pessoa

O que ele não soube, é o quanto amei navegar em seu mar

Corpo rígido a me levar em ondas intensas

A derramar em meu porto, seu prazer

Levando-me a esquecer a náusea de viver

em terra firme

Terapia da alma

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Quem sou eu?

No que me meta-morfoseei?

O que busquei nessa minha trajetória de vida?

O que e quanto conquistei?

E estas conquistas, foram coisas pelas quais

realmente sonhei, desejei?

Ou, simplesmente obedeci e aceitei o que a

sociedade impôs?

Sou feliz? Sou realizada? Estou em paz?

Quero continuar? Quero partir?

Quero calar? Quero falar?

Quero…

…Arrebentar os grilhões que me prendem

à situações cômodas mas prisionais

Cansei dessa máscara de boa moça

Nem vinte anos tenho mais

Chega de baixar a cabeça e dizer “tudo bem”, “Amém”

Não sou boba, muito menos demente,

Não minta!

Jogue na minha cara que não sirvo mais

à essa engrenagem ressequida

Chute minha bunda mas faça com dignidade, com verdade!

Liberte-me dessa rotina para que – mesmo chorando –

o não reconhecimento,

me possibilite trilhar o passo

para me Re-

Inventar.

 

Imagem licenciada: Shutterstock