Beda 8 – Velhas fotos desbotadas

Tenho estado tão fora da “casinha”, que esqueci a data de hoje. Não é ingratidão ou falta de sentimentos. Não é ausência de amor. Talvez seja a danada da consciência ditando regras para me proteger.

Pai, você por muitos anos, foi uma figura impalpável. Um homem que não se mostrava aos filhos. Por muito tempo, interpretei sua postura de forma equivocada. Julguei e condenei você inúmeras vezes. Acreditava ser um homem fraco e irresponsável.

Hoje, madura, reconheço sua humanidade repleta de virtudes e vícios. Reconheço-te frágil, pela vivência familiar que teve em sua infância e adolescência. A rigidez dos antigos, causou muitos males aos corações sensíveis. Não te compreenderam, da mesma forma que seus irmãos também não contaram com esse olhar mais cuidadoso e amoroso. Cada qual cresceu, feito erva daninha e foram se moldando conforme a vida lhes malhava. Houve estragos permanentes em todos.

Seu coração repleto de feridas abertas, encontrou conforto ao lado da mulher forte e centrada que foi mamãe. Ao lado dela, você encontrou um pouco da compreensão e amor, negados no passado.

Você tentou. Hoje compreendo que você deu seu máximo. Se para nós, seus filhos, não foi suficiente, não carregue culpas. Hoje compreendo o quanto é penoso criar filhos. Tarefa pesada e repleta de cobranças.

Sinto imensamente sua partida precoce. Se vivo, hoje, seríamos grandes amigos. Você sentiria muito orgulho de mim, sua “turquinha” como carinhosamente me chamava.

O que me consola, é que em seus últimos meses de vida, estreitamos nossa convivência. Nos conhecemos melhor, desnudos de máscaras sociais. Apenas dois seres humanos na companhia um do outro.

Onde você estiver, desejo luz e acima de tudo, paz de espírito. Tesouros preciosos que em vida, nunca conseguiu conquistar.

Que pena, não tenho nenhuma foto ao seu lado. Também, somos de uma geração onde não havia smartphones, muito menos, a cultura de selfies para exibir nas redes sociais. Vasculhei o baú de fotos, na casa de mamãe, só encontrei essas fotos desbotadas e desfocadas. Fruto de mãos destreinadas e falta de preocupação com qualidade de imagem.

Os registros fotográficos podem estar apagados, mas, o sentimento de filha, mantem-se vívido, nítido e colorido.

Abenção meu pai!

Esse texto faz parte do b.e.d.a — blog every day august.

Participam Adriana Aneli — Claudia Leonardi — Darlene Regina – Lunna Guedes – Mariana Gouveia — Obdulio Nuñes Ortega

Imagens: acervo pessoal

A história se repete

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Desde pequeno que ouço uma frase que sempre achei engraçada mas não compreendia. Ouvia principalmente na fala grave de meu avô Romualdo:

– Manda quem pode. Obedece quem tem juízo.

Fui um moleque inquieto, brigão. Irresponsável mesmo. Na adolescência então, colecionei muitas cicatrizes por viver mais em luta do que em paz sentado nos bancos escolares. Não tinha saco pra estudar!

Aos quinze anos, meu pai chamou para um “dedo de prosa” . Isso significava bronca e das boas! Já conhecia meu velho.

Após o jantar chamou-me à sala, mandou minha mãe e minha irmã Adelaide cuidarem da louça na cozinha pois tinha de ter uma conversa séria comigo. Não queria ser interrompido por nada.

Na hora senti um arrepio na base da nuca que subiu e senti meus cabelos se arrepiarem. Ele andou pela sala, ensaiou sentar em sua poltrona, olhou para o relógio cuco, coçou a cabeça, massageou seu vasto bigode, sentou-se.

Um silêncio pesado instalou-se no recinto. Sentia que estava sendo engolido pelos móveis pesados e escuros que ele tanto gostava. Não sei se foi impressão minha ou se aconteceu mesmo mas por um segundo senti que as lâmpadas piscaram e sua luminosidade diminuiu deixando o ambiente mais pesado ainda. Meu pai continuava com os olhos semicerrados e com ar pensativo, sério como há muito não via.

– Fabiano, você em pouco tempo de vida já tem uma lista imensa de desobediência e rebeldia. Sua mãe não aguenta mais falar com você e dar de cara com seu descaramento. Eu não aguento mais ouvir reclamações de todas as partes sobre sua conduta. Você não quer saber de nada. Não liga para os livros e estudo. Quer permanecer na ignorância.

Ah se eu, na minha época, tivesse tido a chance de estudar como você tem. Não teria desperdiçado por nada. Hoje seria um outro homem. Teria uma profissão digna. Não que a minha não seja digna mas, sem dúvida, seria muito melhor.

Tenho tido muitas conversações com Monsenhor Emiliano e ele me aconselhou que você só vai tomar jeito se for para um seminário. Lá você vai aprender as matérias necessárias para sair dessa condição de burro que tem e ainda por cima, ganha de lambuja uma personalidade moldada na cristandade. Vai aprender a ser gente sem que seja na ponta do chicote!

Engoli em seco com tanta informação.

– Pai, eu posso mudar. Prometo estudar mais daqui pra frente.

– Ah! Mas você vai estudar mesmo menino! Lá, no seminário. Só vai retornar quando se tornar um homem de verdade. Pode ir para seu quarto e dormir pois amanhã logo na primeira hora vou te levar para o internato. Já está tudo resolvido e suas malas prontas.

– Pai…

Não precisei de mais nada para confirmar a resolução dele. Bastava lançar aquele olhar congelante que a gente entendia. Com o coração aquecido em brasa de raiva, indignação, tristeza e medo, passei a noite em claro pensando no que me aguardaria.

Interessante justamente agora, toda essa lembrança retornar com força total como se tivesse acontecido hoje! Trinta e quatro anos se passou desde aquela conversa difícil com meu velho. Muita água rolou por debaixo dessa ponte. Foram anos duros, sofri muito mas aprendi aquilo que meu pai chamava de “virar um homem de verdade”. Hoje sou só agradecimentos àquele que espremeu seu coração de pai mandando-me para longe com o intuito de me transformar numa pessoa responsável, honesta. Como ele sonhava, hoje tenho uma profissão que, mesmo ele jamais ter se expressado verbalmente, sei que fui motivo de orgulho nos anos que lhe restaram. Formei-me em Direito. Hoje sou um juiz muito respeitado por todos. O velho nunca se abriu porque não foi educado para ser mais espontâneo. Coitado! Imagino o quanto deve ter tido vontade de sorri para mim, me abraçar forte e dizer:

– Filho! Perdoa esse velho pai! Tudo o que fiz foi pensando no seu bem. Em seu futuro. Não me queira mal por tê-lo afastado do seio familiar. Eu e sua mãe sentimos demais sua ausência nesses anos todos mas valeu cada lágrima escondida que deixamos rolar. Hoje vemos o resultado de nosso sacrifício. Você e sua irmã são nossos maiores tesouros em vida!

Uma lágrima quente teima em rolar pelo meu rosto.

-E aí véio! Quer falar comigo? Pow! Fala logo que ainda vou sair com meus amigos! Ce tá chorando?

Em silêncio, limpo as lágrimas, levanto-me da poltrona, caminho pela biblioteca. Coço a cabeça, mexo em meu bigode. Olho para Lucas, meu filho e digo:

– Filho, esquece seus amigos por hoje porque a conversa será bem longa.

Ainda em construção

ESPELHO

“Quem é você?”

Saindo da sessão de psicanálise, Catarina subiu a rua até o metrô matutando essa questão. Seu analista fez essa pergunta e deseja resposta dela na próxima sessão.

– Fudeu geral! – pensa a abitolada Catarina! Se tivesse essa resposta não estaria pagando uma fortuna nessa porra de terapia!

Já deu pra perceber a finesse da garota não?

Dona Calú, mãe de Catarina não sabe mais o que fazer para melhorar o comportamento da filha. Já transferiu a garota para mais de três colégios incluindo um religioso, de freiras onde após sete meses, foi expulsa e excomungada pelas irmãs.

– Onde foi que erramos Saulo! – Pergunta sempre em prantos, a mãe zelosa que sempre se dedicou a dar a melhor educação a sua “princesinha”.

Sempre com o olhar perdido no nada, seu Saulo também não tem resposta e se sente completamente paralisado diante da conduta digamos…esquisita da única filha. Se por um lado dá vivas internamente quando Cat assiste junto dele os jogos do Corinthians e vibra animadamente feito um gavião autêntico, por outro se lamenta ao ver os olhares tortos de desaprovação do resto da família e amigos. No fundo, no fundo, ela é o garoto que ele sempre sonhou em ter.

Mas Deus quis que viesse uma única menina…

Chegando em casa, Cat vai direto pro quarto ignorando as perguntas apreensivas de dona . Calú. Passa a tranca na porta. Deseja paz. Se é que é possível isso naquela casa. Catarina ama seus pais mas não suporta a atitude sufocante de sua mãe. “Ela sim é que precisava fazer terapia e não eu!” pensa tirando seu tênis do pé, jogando longe sua camiseta e calça jeans surrada e caindo na cama pensativa.

“Quem é você?” – A pergunta martelando feito goteira na calha e ressoando fundo em seu íntimo. Seus olhos, geralmente ávidos e espertos mostram-se vítreos e lágrimas se formam querendo transbordar. Num movimento rápido, Catarina passa suas mãos limpando aquele momento de fragilidade emocional. Levanta-se e olha para sua imagem no espelho. Fica estática por um tempo. Era como se ali, tentasse penetrar aquele universo escuro de sua alma.

– Droga! Não sei quem sou! E porque deveria de saber? Por que é tão importante rotular, enquadrar, classificar? Por que não me aceitam como sou? Se fosse para ser todos iguais, bastaria nascer apenas um no planeta. Que merda de vida! Só se apegam a coisas bobas tipo…eu gostar de olhar meninas! Qual o problema? São lindas mesmo! E o que é bonito é pra se olhar, admirar…desejar. Minha mãe e os demais adultos são incapazes de reconhecer em mim qualidades. Só tiro nota alta na escola, sou excelente atleta e já conquistei várias medalhas em olimpíadas escolares, sou ágil com números e faço contas de cabeça. Consigo montar e desmontar equipamentos e domino como poucos programas de computador. Ah! Minha mãe nem reconhece meu talento para consertar aparelhos eletroeletrônicos aqui em casa. Já tirei ela de cada sufoco! Nem meu pai é tão bom nisso quanto eu!

Meu pai…é um cara bacana, sei que me entende e me aceita como sou. Mas é um covarde, um banana dominado pelas ideias e vontades de minha mãe.

Detesto gente fraca, gente que se esconde, gente que não opina sobre as coisas.

Feito meu pai.

Pôxa! Um cara tão legal que o dia a dia foi apagando lentamente e hoje, é apenas uma sombra do que já foi quando jovem.

Não quero ser como nenhum dos dois!

Olhando-se ainda no espelho, Catarina se ilumina e diz a si mesma:

Na próxima sessão, quando meu analista perguntar quem eu sou já sei qual resposta vou dar:

“Doutor, sou um ser humano ainda em construção!”

O errado sou eu?

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Venho de uma geração que não vê motivação alguma para se fazer algo. Minha mãe vive me dizendo que sou um fracasso. Não estudo o suficiente, não a ajudo nos deveres de casa, não arrumo nem mesmo meu quarto, não faço amigos, não namoro. Diz que sou uma nulidade!

Meu pai engrossa o cordão dos que se sentem frustrados comigo. Por não torcer pro mesmo time dele, por nem gostar de futebol e sim de esportes mais “delicados” como costuma dizer. Pôxa! Só porque gosto de natação, esqui aquático, ginástica rítmica ele acha que sou viado!
Vive implicando também com meus gostos musicais: ele é roqueiro da turma das antigas. Curte demais o velho rock’n’roll como os dinossauros Beatles, Rollings Stones, Jeff Back, Led Zepellin e Cia. Eu, por meu lado, já curto mais o som de Greenday, Pearl Jam, Alice in Chain, Nirvana. Ele diz que esses moleques são muito deprês e que eu devia ouvir coisa melhor. Eu, sempre rebato que cada um, cada um, mas ele não me ouve. Acha que só seu gosto musical é bom e que todo o resto é lixo. Nem me dou ao luxo de replicar. Dá uma preguiça!

E falando em preguiça, essa é uma palavra que mais ouço quando estou na sua casa. Se ainda não falei pra vocês, falo agora: sou cria de uma família desfeita. Coisa mais comum na minha geração. No início da separação deles até que senti bastante, mas aos poucos fui me adaptando afinal, era melhor ter duas casas para ficar do que aguentar os velhos brigando e implicando um com o outro o tempo integral. Era um saco! Esqueciam que sempre estava presente e falavam cada coisa um para o outro! Melhor nem lembrar!

Hoje acho legal ter duas casas, pois tenho dois quartos totalmente equipados para mim e assim, fico sempre de boa. Aliás, é justamente esse “ficar de boa” é que tem incomodado meus pais. Mas o que posso fazer se a vida inteira Eles me criaram assim? E agora vem com essa cobrança sem graça!
Minha mãe vive dizendo pra mim que sou muito apático, sem iniciativa, que estou sempre cansado para tudo. O pior é que ela tem certa razão!
A vida em si é um cansaço só para mim. Não sei explicar mas não consigo achar graça nas coisas que a maioria acha. Prefiro ficar na minha, sozinho, de boa.

Meu pai vive me dizendo que já está na hora de pensar no futuro. E eu penso comigo: Futuro? Que futuro?
Sou tudo isso, mas uma coisa tem de bom. Pelo menos acho isso bom. Ou talvez nem seja tão bom. Sei lá.
Mas sou um cara muito antenado com o mundo através da telinha da net. Leio de um tudo. Notícias, resenhas de filmes, artigos sobre economia, conflitos, política…

E aí pergunto: do jeito que o mundo caminha com tantas guerras, desemprego, corrupção, dá pra se imaginar um futuro promissor? Acho que não. Pra mim nem vale a pena tentar. É pura perda de tempo e energia. Pra que se matar de estudar, fazer faculdade, batalhar por um emprego merreca com um salário de merda, acordar cedo todo dia, aguentar chefe medíocre e colegas idem? Pra que me matar para provar que sou melhor que os outros quando na realidade, estou no mesmo barco furado que toda a raça humana está?

Outro dia, na casa de meu tio Zeca, fuçando sua discografia descobri um grupo que já tinha ouvido falar, mas nunca tinha prestado atenção. Botei o bolachão pra rodar e comecei a ouvir o som. Primeiro o que me chamou a atenção e gostei, foi o instrumental. Forte, raivoso, irado! Bateria, guitarras, baixo. Mó som! Depois, aos poucos fui prestando atenção na letra da música e aí…Cara! parei! Fiquei ouvindo até o fim do disco e paralisei! As letras das músicas tem tudo a ver com meu estado de espírito!
A canção do senhor da guerra, Pais e filhos, Teatro dos vampiros, Que país é esse?, Geração Coca-Cola,…Cara, me identifiquei total!

Agora, ouvindo essas mesmas músicas e relembrando minha vida numa fita cinematográfica mental, reavalio o que fui na infância, na adolescência e agora, já maior de idade, assumo as rédeas de minha vida e sigo rumo ao meu destino. Se vai dar certo? Não tenho respostas. Vou quebrar a cara e ser mais um desempregado na Europa? Grandes possibilidades. Vou conhecer meu grande amor por lá? Não é má ideia. Voltarei pedindo arrego para meus pais? Qual o problema afinal, eles são minha referência de vida, meu porto seguro e sei que se precisar, é só chamar.

Agora me dão licença que o avião vai partir!