A carta foi escrita com os espinhos que ninguém plantou

(Mariana Gouveia – As estações)

Janelas cerradas transforma o ambiente do escritório em uma câmara abafada. Somente a luz fraca de uma luminária sobre o papel de carta decorado, ainda em branco. Mãos nervosas se mexem, limpando um pó inexistente do tampo da mesa. Inquieta, se levanta, ajeita o excesso de tecido que forma a saia de seu vestido. Percorre a sala olhando para todos aqueles volumes de livros que compõe o ambiente mais querido de sua casa. Sua cela de luxo, refúgio das frustrações, das frases não ditas, dos olhares não mais trocados, dos silêncios gritantes.

Volta a sentar, se apruma mantendo a postura ereta . Com delicadeza que lhe é peculiar, pega a caneta tinteiro e tenta iniciar o texto tanto tempo ensaiado. Para no meio do caminho e uma dor fina se espalha por seu peito preso. Arfa por liberdade. Cada célula de seu corpo clama por ela. Não nasceu para ser dama da sociedade, representar o tempo inteiro uma falsa felicidade, imagem e reflexo da hipocrisia que todos vivem. Ela deseja mais que aquilo. A rotina doméstica, a solidão de uma dona de casa não lhe cabe.

Abaixa o olhar e percebe que a caneta vasou tinta por sobre o papel formando uma poça escura. Perfeita abertura representando o desconhecido. Sorri diante da ideia recém-nascida. Abandona a caneta e a sala. Horas depois, retorna. Cabelos soltos, calça comprida de seu marido, camisa solta que realça os seios libertos. Nós pés, um par de botas. Nas mãos, duas maletas pequenas que são temporariamente repousadas no chão enquanto rabisca apressada, no mesmo papel manchado a frase:

Prezados, cansei! Favor não me procurar pois não mais encontrarão quem um dia fui..

Esse texto faz parte da blogagem coletiva Blogvember. Participam comigo:

Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins

Imagem gratuita: Pexels

Missivas

Iniciei o ato de me corresponder, ainda na antiga sexta série, hoje, equivalente ao sexto ano do fundamental II. A professora de francês, Maria Vitória, chegou trazendo a novidade nos apresentando a International Youth Service (I.Y.S.). Foi um divisor de águas para mim, garota ingênua que não conhecia praticamente nada fora de meu mundinho na rua Gal. Bittencourt, 520. Em pouco tempo, passei a trocar cartas com jovens da França, Guiana Francesa, Cotê d’Ivoire, hoje mais conhecida por Costa do Marfim.

Achava o máximo receber cartas diferentes numa língua que não a minha e saber da vida de alguém que não imaginava existir. Conhecer culturas, costumes, gostos musicais além, claro, de poder exercitar o aprendizado da língua francesa, que estudávamos na escola.

Após tantos anos, não consigo lembrar dos nomes dos garotos e meninas que troquei muitas cartas. Acredito que tenha algumas delas, guardadas em uma caixa na casa de minha mãe. Ah… lembrei do nome do rapaz de Cotê D’Ivoire: se não me falha a memória, seu nome era Lèaba…ou algo parecido. A memória prega peças na gente. De repente não é nada disso.

Minha irmã mais velha, trocou suas missivas com uma italiana de nome Francesca. Ela, assim como minha irmã, amava os Beatles e também lia fotonovelas. Minha irmã recebeu algumas que ela enviou. Tutti in italiani. Tinha cada italiano bonito!! Recordo de alguns: Franco Dani, Jean Mary Carletto, atrizes lindas como Paola Pitti e sua irmã Katiuscia, Claudia Rivelli (fiquei sabendo mais tarde que é irmã de Ornella Mutti. São bem parecidas…

Tinha também o galã mais lindo das fotonovelas italianas Franco Gasparri. Suspirei muito ao ler suas fotonovelas. Suspendi a respiração ao pesquisar no Google e descobrir que ele já passou dessa pro andar de cima…Madonna!

Recordo que fiz a felicidade do rapaz que era da Costa do Marfim, ao enviar junto de uma carta, um disco de Milton Nascimento. Ele ficou maravilhado com o presente. Quem não ficaria não é mesmo?

Anos mais tarde, trabalhando na primeira biblioteca escolar, meu diretor foi para Paris, fazer seu doutorado, trocamos algumas cartas onde ele me apresentou curiosidades da cidade que sempre sonhei conhecer. Tenho essas cartas até hoje. Canceriana, sabe que é, gosta de colecionar antiguidades…

Com a chegada dos e-mails e depois as redes sociais, pouco a pouco fui esquecendo a alegria em escrever uma missiva e aguardar a resposta que poderia demorar dias gerando uma doce ansiedade. Tempos modernos…

Tive por algum tempo, um resgate através de troca de correspondência literária com um amigo/irmão. Foi através de uma delas que li pela primeira vez, um texto de Caio Fernando Abreu: Sapatinhos vermelhos. Foi ali que minha paixão por esse escritor começou…

Hoje, escrevo por aqui aguardando com certa ansiedade, as visitas de meus leitores e seus comentários que equivalem a sensação gostosa que sentia ao trocar correspondência. E você escrevia ou escreve muitas missivas?

Esse texto faz parte da blogagem coletiva Blogvember. Participam comigo:

 Lunna Guedes –  Mariana Gouveia –  Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins

Para fazer minha foto de ilustração, busquei em meus baús e…Achei uma carta de Lèaba Augustin!!!

Beda 29 – Não sei se irá chover ou não

Querido amigo,

Enquanto aguardo a água ferver, cutuco o canto da unha. Hábito que carrego desde pequena quando algo não me agrada ou preocupa.

Saio de perto do fogão e sigo para o quarto. Abro e fecho gavetas. Organizo o que já se encontra organizado. Aliso os lençóis e fronhas. Acaricio as toalhas de banho e rosto.

Ao fechar a porta de correr do armário, pelo espelho, vejo o reflexo do vaso de lírio da paz. Preciso dar mais atenção à ele, que anda se sentindo solitário. Murcha a cada dia. Nunca mais floriu. Dizem que ele capta a energia ruim do ambiente. Serei eu, a culpada por estar definhando?

Meus olhos são desviados para o vaso de violetas que não para de florir, ao contrário do lírio. Suas folhas aveludadas e carnudas, saltam para fora do vaso. Lembro que preciso replantar algumas mudas em outro vaso, mas como sempre, deixo para depois.

Volto para a cozinha e desligo a jarra elétrica. Enquanto deito a água fervente na xícara, o perfume do chá de jasmim, envolve minhas narinas que se abrem em aprovação.

Sobre a mesa da sala, um bloco e caneta esperam pacientemente, eu terminar meu ritual, antes de sentar e escrever.

Bebericando o chá, abro as cortinas, recebendo a luz do dia que se encontra em matiz cinza. Hoje, nada de sol.

Lembra quando fomos juntos na excursão do cursinho para Paraty? Que aventura!

Tempos em que nossa única preocupação era ser feliz. Ríamos tanto… Tudo era motivo para risos. Lembra do passeio pelo centro histórico? Recorda o tombo que sofri naquelas pedras malditas? Arrancou meu couro do joelho que sangrou horrores. Em sua tranquilidade, se ajoelhou ao meu lado, tirou um lenço do bolso de sua bermuda e delicadamente, assoprando com suavidade, estancou o sangue. Sem pressa.

Em pleno calor de 38 graus, tive calafrios, sentindo suas mãos em minha perna. Naquele momento de dor, senti desejo de alcançar sua boca e me deixar perder dentro dela. Mas foi tudo bem rápido. Da mesma forma que surgiu, sumiu aquela vontade de te ter ao meu lado não como um amigo/irmão, mas como homem.

Nem sei porque fui lembrar disso agora. Desculpe-me. Não quero causar constrangimento. Nossa amizade valeu muito mais que esses pequenos tesões da juventude. Desde que casou e partiu para o exterior, nunca mais soube de você. Mantenho sua página pelo Facebook mas nem entro para espiar suas experiências, suas conquistas, sua felicidade.

Só sei, que de tempos em tempos, sinto sua falta. Sua presença espirituosa e sábia deixou um buraco jamais preenchido. Nesses anos, fiz muitas amizades, alguns namorados, paixões desvairadas mas, igual a você, nenhum passou nem perto.

Rasgos no céu indicam possível temporal. Não sei se irá chover ou não. Aqui, algumas gotas salgadas indicam que por horas, haverá tempestade de saudade.

Engulo a bebida quente, rasgando mais uma carta que jamais receberá.

Esse texto faz parte do b.e.d.a — blog every day august.

Participam : Claudia Leonardi  – Lunna Guedes – Mariana Gouveia — Obdulio Nuñes Ortega

Essa carta faz parte do Projeto 52 Missivas – Scenarium Plural Livros Artesanais

Imagem: acervo pessoal

Contato com um dragão no paraíso: missiva

cartas caio

Caríssimo C.F.A.,

São Paulo acordou envolta numa neblina que me fez lembrar sua região. Quando mais jovem, adorava esse clima frio afinal, nasci nesse período. Junho, mês de festividades, procissão, fogueira de São João. O Santo do meu dia de nascimento. Sabia que meu nome era pra ser Joanina, como reza a tradição de quem nasce nessa data? Ainda bem que meus pais tiveram outra ideia para me nominar. Gosto da sonoridade de meu nome. Nada contra porém, meu nome tem tudo a ver com minha personalidade.

Despertei pensando em você. Olha só que coisa! Tomei meu café e saí munida de casaco de lã, cachecol e luva. Coloquei também uma boina porque o vento está de lascar.

Saí caminhando pela Rêgo Freitas, atravessei a praça Roosevelt, entrei na rua Augusta. Minha intenção era chegar à Avenida Paulista. Caminhando lentamente lembrei que você costumava circular por aqui. Gostava de caminhar. Lembra? Dizia que caminhar te ajudava a pensar e desenvolver suas histórias. Também sou assim.

C., ando muito introspectiva. Talvez devido a idade, excesso de sensibilidade, tenho sentido certo receio – se é que posso chamar assim – de sair às ruas, de circular como fazia antes. Pode parecer papo saudosista, mas, antigamente era mais prazeroso sair à noite, andar pelas ruas, entrar nos locais públicos. Antes, saíamos para ver gente e – claro – ser vista por eles também. Atualmente, transformamo-nos em zumbis tecnológicos.

A “night” continua a mesma. Ferve. A diferença é que as pessoas não se encontram interessadas no ser humano ao lado e sim, nos likes que poderá ganhar em suas redes sociais. Só se preocupam com seus selfies. Aquele lance de sair e paquerar que tanto gostávamos de fazer quando jovens, deixou de ter importância nessa sociedade que privilegia o virtual em detrimento do real. Tenho certeza que, se aqui estivesse, ficaria indignado. Eu estou! O prazer que tínhamos em marcar encontros nos lugares badalados para conversar, se confraternizar, paquerar, não existe mais. É sério! Não estou inventando. Nas redes sociais temos centenas de amigos, porém, quando chamamos as pessoas para um encontro real, todos concordam e, conforme vai chegando o dia, vão comparecendo cheios de desculpas esfarrapadas. Ah! E os poucos que comparecem, dão mais atenção aos seus smartphones na mesa do que ao seu interlocutor ao lado. Broxante!

C., definitivamente estou encalhada feito baleia jubarte na praia. Não consigo me interessar por ninguém e ninguém se interessa por mim. Passei do ponto, tornei-me seletiva e chata. Sinais dos anos. Algumas vezes, quando bate certa solidão, penso em sair e conhecer pessoas mas… Quer saber? Bate uma preguiça! Então conto até dez, abro uma garrafa de vinho, encho uma taça, coloco uma seleção de Inger Marie Gundersen no Spotify, pego um bom livro e ponho pra correr a tal da solidão. Só sinto falta mesmo é de nossa amizade que, infelizmente não aconteceu.

Se tivéssemos nos conhecido, nossa amizade seria como a que tenho com R.P. Amigo-irmão que está ao meu lado há pelo menos vinte anos. Vou te contar uma coisa: se você tivesse tido oportunidade de conhecê-lo, também teria caído de paixão pela pessoa linda que ele é. Formaríamos uma tríade. Uau!! Teria sido massa!

Querido C., acredito que por conta da aproximação de meu aniversário, ando mais melancólica que nunca. Abro-me com você porque sei que de melancolia você entende como ninguém. Sei lá, a idade avançando, a juventude se esvaindo, as rugas e as pelancas se acentuando… Não ri não que isso é sério! Ai meu Deus! Olha só o que escrevo para você! Devo de estar mesmo muito doidona. Não ria! Sei que do outro lado você deve estar se divertindo com minha desgraça mundana. Quer saber? Também acho graça. Choro e rio ao mesmo tempo por saber que você não teve a chance de envelhecer feito eu. Cara, você foi embora muito cedo! Essa vida é mesmo muito injusta. Que merda! Estou deprimida novamente. Nem posso culpar os hormônios como fazia antes. Até eles me abandonaram. Foram-se assim como a melanina de meus cabelos que agora se encontram brancos feito flocos de neve. Mas…Sabe que gostei deles assim? Fiquei cool! Sempre gostei desse termo: Cool.

Ah! Outro dia, sabe quem encontrei? Sua amiga Marcia Denser. Nossa! Conversei bastante com ela sobre literatura e sobre você. Sua orelha não ardeu? Falamos muito viu! Ela confessou que também sente demais sua falta.

Retornei ao meu apê e estou aqui, sentada de frente a janela do décimo andar observando a paisagem urbana de prédios e carros que passam sem cessar. Interessante, ao longe ouço um som de britadeira, buzinas, e outros sons que não consigo identificar. No entanto, a paisagem parece estática apesar de toda movimentação. E eu, aqui presa em mim mesma e nessa inquietação que não consigo identificar muito menos eliminar. Veja bem meu querido, não estou infeliz, contudo, também não me encontro em paz. O que será? Estarei com problemas psíquicos? Não desejo falar com ninguém. Lembrei  de quando pequena, às vezes tinha a sensação de que diminua, diminua até virar um nano grão no universo. Era uma sensação – ao mesmo tempo curiosa, mas que me dava temor de ir até o fim.

Ah! Voltei a reler seu livro Os dragões não conhecem o paraíso. Não canso de ler esse livro cara. Até baixei ele em meu note. Pela enésima vez me emociono diante da beleza do conto A beira do mar aberto. Cara! O que é esse conto? Mexe com minhas entranhas. Puta que o pariu! Falando nesse livro, sabia que fui apresentada à sua obra através de meu amigo R.P. (ele novamente), que me brindou com seu conto Os sapatinhos vermelhos. Diz ele que sentiu que esse conto bateria fundo em mim. E acertou!

Tinha muito mais a falar para você, mas, vou parando por aqui para não me tornar excessivamente carente e chata. Sabia que sou espírita? Pois é, sou. Muitas pessoas se admiram quando ficam sabendo desse meu lado espiritual uma vez que – escritor que se prese – deve ser ateu/atoa/existencialista. Só posso adiantar que sou tudo isso e muito mais. Você bem sabe que somos uma somatória de facetas. Para escrever temos de ser muitos, vários, jamais rasos. E sem medo de mergulhar. Mesmo que não se saiba nadar. Feito eu.

C., perdoe-me se fui extensa nessas linhas. Tenho uma coleção Britânica de assuntos que gostaria de trocar com você. Veja bem: sei que a vida continua desse outro lado. Sei também que tudo é infinito mesmo que a finitude seja nossa estação final. Um dia, se o Todo Poderoso permitir, quero sentar de frente a você e, sorrindo e abaixando o olhar de timidez inicial, começar nosso papo dizendo:

-Oi C., finalmente estamos tête-a-tête para oficializar aquilo que já estava decretado  por um Ser Superior Maior. Obrigada por me esperar. Trago muitas notícias da Terra. Tem um tempinho para me ouvir?

Olhando-me com seus olhos graúdos e devoradores me responderá:

-Guria, tenho todo o tempo do universo. Desembucha!

E juntos cairemos numa risada sem fim.

Anoitece em Sampa e a realidade grita por minha atenção.  Paro desejando esticar mais um bocado.

Tenha um resto de eternidade de muita paz e – faz um favor – , quando cruzar com Cazuza diz que também aguardo um dedo de prosa com ele . Ah! Favor nº2: caso trombe com meu Menino Maluquinho circulando de longboard por aí, diga-lhe que tia Lilica o ama eternamente e pra ele se comportar enquanto não chego. E que sinto saudades de suas aventuras na cozinha me preparando una pasta al pesto.

Com amor e carinho,

Roseli

 

Imagem: Google