Cacilda, desperta. Seis horas da manhã de terça-feira. Dezoito de janeiro de 2021. Com certa dificuldade, senta-se na cama. Alonga seu esqueleto que range feito seus móveis velhos. Levanta, dá dois passos sentindo dores na sola de seu pé esquerdo. É a tal da fascite plantar.
Pragueja em voz alta pigarreando:
-Envelhecer é uma merda! Ai!
Vai para o banheiro urinar litros desse líquido morno.
-É o que mais tenho feito ultimamente. Mijar, cagar, peidar e sentir dores por todo o corpo. Arrê!
Entrando em seu cubículo chamado cozinha, acende o fogão e põe água para esquentar. Acende seu primeiro cigarro do dia. Puxa a fumaça para dentro de seus pulmões já carcomidos pela nicotina e, solta uma baforada que lhe enche os embaçados olhos de um brilho de prazer…
Ao deitar a água quente sobre o pó de café, o aroma que tanto gosta inunda o pequeno cômodo em que vive. Enche até a borda, uma xícara vermelha com logo Nescafé, que roubou da padaria que frequentava, quando ainda trabalhava. Cacilda sempre foi dada a essa fraqueza: pequenos furtos. Puxa uma cadeira próxima de sua janela do 16 andar. Um dos poucos prazeres é sentar-se pela manhã, acompanhada de sua xícara de café fresco e seu cigarro e observar o movimento de pessoas que pouco a pouco, tomam conta da rua em que mora. Aprecia olhar as janelas do prédio em frente e ver a rotina de seus moradores que – na pressa em se aprontarem para o trabalho -, nem imaginam serem alvo da curiosidade de uma velha moradora. Enquanto beberica sua dose de cafeína, entre uma tragada e outra, fala em voz alta:
– Ando mais ácida que limão siciliano. Sempre procurei ver o lado bom de tudo. Confesso que esse ano não estou tendo olhos para isso. Devo estar sofrendo de opacidade da retina da alma. Por onde passeio meus cansados olhos, só vejo merda. Peguei ranço da humanidade. Inclusive da minha que desandou em pensamentos impuros sobre tudo e todos. Mandei Pollyana pra puta que a pariu faz é tempo e ando tomando minhas doses com Bukowski e Hank Moody. A vida tomou um rumo sem me pedir permissão. Estou até agora pensando: Onde foi que errei? Nunca ferrei com ninguém. E olha que tive muitas chances e criaturas que mereciam minha rasteira. Contudo, meus valores jamais permitiram que assim agisse. Sempre procurei ser correta e muitas vezes sofri tropeços por conta de alguns pés em meu caminho colocados de forma mal intencionadas. Caía, levantava, chacoalhava o esqueleto dolorido e seguia em frente. Vingança? Deixava pra lá. O Universo que se encarregue disso lá na frente.
Desconfio que Deus se vingou de mim por ser tão otária. Chego a ouvi-lo rosnando : Deixa de ser besta mulher! Acorda pra vida que ela não é rosa não. Muito menos roteiro de novela global.
Completo hoje 69 anos e acordo para uma dura realidade. O que tenho presenciado e ouvido não me agrada em nada. Por conta dessa contrariedade, refugiei-me na criança pura que fui um dia e me recuso a sair de dentro dela. Só que está penoso mantê-la presa a essa velha amarga que me tornei. Não é justo com alguém que sempre me confortou, causar tamanho sofrimento. Por isso choro. O sal que escorre por minha derme repleta de manchas senis, não arde mais que o sal que escorre dentro, me corroendo a alma. Perdi a virgindade dela. Transforme-me num ser humano comum. Olho-me no espelho e o que vejo não me agrada. Não são as rugas e marcas de expressão que me atormentam. Não são as pálpebras flácidas e caídas que incomodam. Não é o vinco fino e fechado de minha boca – que outrora soube sorrir -, e que agora se lacra diante de tanta feiura mundana. É o que enxergo além do espelho. Transformei-me num monstro horrível!
O mergulho nesse lodaçal interior é doloroso. Fede. Anseio retornar à superfície e respirar um ar menos denso mas não dá. Sinto-me presa no fundo de mim mesma. Como fugir de nós mesmo? Como ignorar o que se é de fato? Lembro de minha terapeuta que cuidou de mim por quinze anos. Tento gritar por seu nome mas nenhum som sai dessa boca lacrada e garganta paralisada. Meu peito estufa ansiando por oxigênio porém, somente os gases emitidos pelo enxofre que me rodeia alimentam meus pulmões. Que pesadelo meu Deus!
A campainha toca trazendo Cacilda para a realidade. Bebe o restante do café- agora frio -, fazendo uma careta, finaliza o cigarro que já se encontra no toco apagando no chão. Gira a chave e abre a porta visualizando a figura detestável de seu vizinho Germano.
-Bom dia dona Cacilda. Falando sozinha de novo? Deve ser o “Alemão” rondando hein? Precisa se cuidar
-Vá se foder viado do caralho! – despeja com acidez, batendo a porta na cara do vizinho que apenas desejava ser atencioso com uma velhinha tão solitária quanto ele.
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