De que eu me lembro?

Numa vivência de mais de meio século, coleciono centenas de lembranças. Encontram-se dispostas em pastas denominadas: muita relevância, média relevância, nenhuma relevância e lixeira.

Em sua grande maioria, encontram-se recordações ligadas à família. Muitas, de amigos, escola, faculdade. Outras marcantes da vida profissional. Apesar de – em geral ser um ambiente tóxico – com inveja, competitividade e puxadas de tapete, consegui fazer poucos e fiéis amigos. Deles, possuo momentos carinhosos.

Tenho em minhas pastas, lembranças de momentos tensos de nossa vida em sociedade. O Brasil, celeiro de tantas desigualdades e injustiças é também, território que gera muitos talentos e riquezas. Oscilo entre amar e odiar ter nascido nesse solo que ultimamente, arde sob nossos cansados pés. A nação encontra-se fatigada de lutar, trabalhar e jamais sair do lugar: pobreza.

Enquanto uma minoria branca detém a riqueza muito bem protegida em paraísos fiscais, o grosso da população pena em empregos informacionais ou permanecendo invisíveis, em meio ao desemprego. O aumento de brasileiros com morada fixa debaixo de viadutos e em praças públicas é visível e não dá mais para fingir que não existem.

O número cada vez maior de jovem negros e pobres mortos pela polícia é gritante. Então, por alguns instantes paro, penso e de que me lembro?

De casos que se perderam em meio a tantos que se repetem diariamente em várias cidades e estados. Recordo de alguns jovens com os quais convivi bem próximo e que perderam suas vidas por serem negros, pobres, sem escolaridade. Só precisavam de um olhar mais atento e oportunidades para crescerem e passarem a fazer parte de uma estatística menos sombria.

Nasci pobre mas branca. Isso, fez um diferencial em minha trajetória. Obtive melhores chances de estudo e empregos. Muitas portas se abriram devido a minha cor. Tenho plena consciência de que, se fosse negra, talvez não tivesse alcançado o cargo que ocupei antes de me aposentar. Colegas que estudaram comigo na infância e adolescência, hoje vivem em condições precárias. Isso se ainda vivem. Muitos, infelizmente partiram. Viveram sem qualidade de vida, sem perspectivas de crescimento. Muitos aceitam isso como algo normal afinal, sempre foi assim.

E esse “sempre foi assim” é que me mata!

Chegamos a um ponto em que não dá mais para compactuar com esse pensamento. Simplesmente não dá mais para ser assim. Chances de nascer, crescer, estudar, trabalhar tem de ser igual para todos. Somente assim, teremos uma sociedade justa.

O que estamos fazendo para mudar o panorama da população negra que é maioria em nosso país? Desejo um país mais justo, com menos desigualdade, menos discriminação. Não trago respostas para essa situação, apenas muita inquietação em meu íntimo. O dia nacional da consciência negra foi ontem mas, a preocupação e reflexão devem ser constantes, um exercício diário. Então lanço a pergunta: o que podemos fazer de concreto?

Participam dessa blogagem coletiva:

Lunna GuedesMariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega

Imagem licenciada: Shutterstock

Agridoce

Vigésimo dia de isolamento social. Sentada de frente à janela, o sol é uma carícia que envolve e aquece meu rosto nessa tarde já outonal. Beberico uma xícara de café que acabei de passar. Vem à lembrança, você.

A saudade bate forte. Um soco, não no estômago mas sim, no coração. Por segundos, sofro uma parada cardíaca. Seca a boca, derrubo a xícara, apago o agora, sofro tremores. Uma lágrima brota em meus olhos ressecados. Uma vontade incontrolável de te reencontrar, te abraçar, te beijar.

Impossível. Você se encontra léguas de distância. Não existe transporte que me leve até você nesse momento. Por acaso se lembra do motivo de nosso distanciamento? Foi alguma discussão boba? Traição? Não consigo recordar o motivo…

Gostaria de sentar e escrever uma longa carta mas, para onde encaminhar se perdi seu contato. Não sei mais onde mora. Por onde anda minha amiga? O que fez de sua vida? Desde nossa separação, muitas coisas aconteceram na minha. Segui com os estudos, trabalhei em muitas funções até chegar onde cheguei, fazendo algo que realmente gosto. Não me casei, nem tive filhos. Isso não foi problema. Também não tenho cão, nem gato, muito menos periquito. Com o passar dos anos, fui me desapegando de tudo e de todos mantendo apenas os vínculos necessários para sobreviver. Viajei muito. Conheci muitos lugares. Estava certa de que era o melhor caminho a seguir.

Envelhecer significa você constatar que só cometeu erros no decorrer de sua juventude. Cometi muitos e um deles foi deixar você partir. Deveria ter lutado com unhas e dentes para te segurar pelo menos mais próxima de mim. Simplesmente abri mão de sua necessária presença.

Pago agora um preço alto pela sua ausência. Através de seu olhar desprovido de qualquer maldade, conseguia enxergar um mundo mais bonito, colorido e alegre. Sua pureza me contagiava. Desaprendi até mesmo de assoviar como fazíamos juntas. Lembra? Aprendemos isso com a vovó que administrava aquela casa imensa de nossa infância, cantando e assoviando o tempo inteiro. Nossa, bateu saudades dela também. De seu cheiro, de seus carinhos e de sua risada espontânea.

Sento no chão, de olhos embaçados. Pego o pote de mel, abro e começo a comer em colheradas cada vez mais rápidas. Salgado misturado ao doce transformando-se numa iguaria única e um pensamento se expressa em minha voz embargada pela pasta de mel, saliva e lágrimas:

Como e onde te encontrar menina que fui um dia? Volta pra mim. Volta!

Voltar

porta macica

Voltar àquela casa…

De frente ao portão. O mesmo portão de uma vida inteira. Sólido, retorcido em curvas e linhas. Tal qual nossas vidas. Pintado num azul envelhecido feito casco de velhos navios. Apesar da idade avançada, não continha nenhum ponto de ferrugem. “Coisa boa, de primeira” – diria seu velho avô Pierre, nascido na região Sudoeste da França. Berço da agricultura e do bom vinho.

…Vô Pierre…Quantas lembranças passaram pela mente de Marjorie.

Passando o pesado portão, percorreu o corredor que dava acesso a um novo lance de escadas. Cinco degraus. Quando pequena, gostava de pular um a um sentindo-se vitoriosa quando superando o medo, saltava os cinco de uma vez, aterrizando feito ave no solo de lajotas hidráulicas.

Lembrou de uma queda e do corte profundo no queixo. Mais que a dor física, ela sentiu o peso do olhar de sua mãe, sempre severa em não admitir desobediência. Seu pai, ao contrário. Homem com alma de criança, cairia na gargalhada vendo-a se esborrachar. Sempre gostou de coisa mal feita. Essa era a famosa frase de dona Dulce, mãe de seu pai. Outra mulher aristocrática que não admitia intimidades nem falta de etiquetas.

…Vó Dulce, uma chata e mal amada isso sim! Nunca gostei dela.

Do alto da escada, pôde vislumbrar a porta maciça de jacarandá sempre lustrosa. Visualizou o corredor ao lado que percorria toda a extensão da casa e desembocava na enorme cozinha. Um dos seus lugares favoritos da casa. Aspirou o aroma do forte café que sua avó materna Elisa sempre passava no coador de pano preso a um suporte de ferro fundido. Seu perfume se espalhava por toda casa!

Sentiu ímpeto de correr pelo corredor e cair direto na cozinha, como fazia de pequena. Conteve-se e, respirando fundo para controlar suas emoções, entrou pela porta da sala.

Nada havia mudado! À sua direita, o enorme sofá carmim. No centro, a mesa com sua base talhada cheirando a óleo de peroba repousando no tapete Aubusson. As cadeiras de espaldar alto lhe trouxe lembranças da infância quando tentava com dificuldades, escalar essas maravilhas. Os retratos pintados a óleo de seus avós ainda jovens lhe causou frisson no peito.

Percorreu o corredor que levava aos quartos. O primeiro, de sua tia Aneli. Decoração espartana. Árido feito seu coração. Frio como sua alma. Nem entrou. Recuou e prosseguiu entrando no próximo. O de seus avós. Pôde sentir o perfume do talco de rosas que sua vó usava. Viu sobre a cômoda antiga, a escova de ossos que penteava suas longas madeixas. Gostava de apreciar esse ritual. Viu os enormes grampos de cabelo, pousados ao lado da escova. Percebeu do lado oposto à cômoda, um mancebo de madeira que trazia no alto, o chapéu de feltro de seu avô Pierre. Cinza chumbo.Uma de suas inúmeras camisas xadrez de flanela, encontrava-se displicentemente jogada aos pés da cama. Caminhou pelo quarto fazendo ruídos ao mudar seus passos miúdos na velha tábua do assoalho gasto pelo tempo. Parou. Ouviu vozes abafadas. Abaixou-se no chão e grudou os ouvidos tentando reconhecer as vozes que falavam sem parar. Lembrou-se de que embaixo dos quartos, ficavam os porões da casa. Doces recordações se elevaram no ar, feito fumaça produzida no fogão à lenha. Decidiu parar de explorar as dependências principais da casa . Saindo pelo corredor, desceu ao subsolo onde ficavam os tais porões. Resquícios de suas fantasias de menina. Local mágico, com personagens criados por ela naqueles anos difíceis de sua infância.

Ao ultrapassar a soleira da porta do primeiro porão – o maior dos três, sentiu-se arremessada a Storybrook. Respirou magia por toda parte. Cheiro de coisas eternamente guardadas por gerações. Potes, garrafas, brinquedos, bolas coloridas. Estranhamente repousavam nas prateleiras sem fim como que, esperando o momento de serem úteis na vida de alguém. Remexendo com certo zelo nas caixas, encontrou uma antiga pasta onde guardava seus desenhos. Quanta emoção ao abrir e vê-los intactos. Na adolescência, fora uma desenhista espetacular. Depois, com as cobranças da vida adulta, deixou de lado essa atividade que tanto prazer lhe proporcionava. Abrindo um sorriso “Monalisa”, pensou: Preciso voltar a fazer alguns rabiscos. Acho que não perdi a mão.

Por segundos pensou em levar consigo a pasta. No entanto, sua consciência acusou que deveria deixar lá afinal, ali, era seu lugar. Com certo pesar, repôs na prateleira e seguiu para o segundo porão.

Lá, encontrou diversas ferramentas do seu avô. Algo chamou sua atenção. O velho e querido pilão onde, nas tardes mornas de sua infância, vó Elisa convocava a todos para participar da festa que era moer amendoim até virar paçoca. Formava-se fila de crianças e adultos para a deliciosa farra de socar o amendoim e o açúcar enquanto sua avó puxava a cantoria batendo palmas e arrastando os velhos chinelos. Seus olhos, do brilho intenso da alegria, recebeu um descortinar sombrio ao desviar-se para o objeto ao lado pendurado na parede. O reio de cavalo trançado que servira um dia para surrá-la por uma traquinagem de criança. Nunca se esqueceu da dor que sentiu. Dor física e moral pois sabia em seu íntimo que o que fez, não era para tamanho castigo. Sentiu-se uma escrava castigada no tronco da senzala.

Tantas vivências naquela casa, tantos acontecimentos que foram responsáveis pelo que era agora. Voltar àquele universo, era quase como voltar os ponteiros do relógio do tempo e retroceder à infância.

..Oi, tudo bem? Já faz um tempo que observamos a senhora parada, olhando para o prédio. Por acaso está interessada em entrar e conhecer nosso belo e arrojado condomínio? Não se acanhe, será um prazer mostrar as dependências.

Retorno à realidade, Marjorie sorri.

-Obrigada. Não preciso entrar. Conheço cada pedacinho desse terreno e tudo o que existe debaixo desse emaranhado de concreto e vidro. Não se preocupe comigo, já estou de saída. Só parei aqui para resgatar algo valioso que um dia deixei aqui.

-Valioso? O que? Esqueceu alguma joia no condomínio?

-Joia? É. Posso chamá-la assim também. Agora que reencontrei minha essência de criança, posso seguir com minha vida longe daqui. Desculpa o incômodo.

O segurança do condomínio não entendendo nada acompanhou a figura delicada da jovem senhora que sumiu na esquina da rua. Coçando a cabeça e realinhando seu boné, voltou à sua guarita pensando em voz alta:

-É cada doido que aparece por aqui que vou te contar. Dona mais esquisita!

Imagem: Pinterest

Aquarela borrada

aquarela-bolognesi

Sabe aquela inquietação, misto de ansiedade, medo e vazio, que toma conta da alma? Pois é, amanheci assim.

No desjejum da manhã chuvosa e fria, me alimentei de saudade acompanhado de ovos estralados. Mastiguei por um longo tempo relembrando nosso lindo encontro que jamais aconteceu.

Insisto em fantasiar. Uma maneira que encontrei de manter-te real ao meu lado nessa solidão que mergulhei.

Não reclamo. A solidão – que para muitos é o fim da rota, para mim, é boa companhia. Gosto de minha rotina, de meus silêncios pontilhados por trilha musical de Chet Baker e Cesar Camargo Mariano. Aprecio minha voz não pronunciada que permanece dentro de mim. Sou boa companhia. Converso bastante com meu eu e, através de nossas conversas, filosofamos noite adentro.

Relembrei a viagem a Paris que tanto sonhei ao teu lado. Você, como sempre, amarelou no último instante. Jamais assumiu o medo de avião. Medo esse, que te impediu de ser feliz e realizar seus sonhos diversas vezes na vida. Segui sozinha imaginando-te sempre ao meu lado. Descobrindo os becos da cidade luz, sorvendo o beau vin que as bodegas ofertam. Desvendei a cidade de metrô e em poucos dias, já me sentia uma legítima parisiense.Acho que nasci pra isso! Fui ficando. Em pouco tempo consegui emprego de garçonete num restaurante três estrelas frequentado por pseudos escritores e artistas de todos os gêneros. Pessoas incríveis que me acolheram com carinho legítimo. Me senti em casa! Os anos passaram muito rápido. Virei artista incentivada por todos. Primeiro, comecei a desenhar, depois pintar. Virei excelente retratista. Passei a vender meus quadros na Place du Tertre. Em pouco tempo fiquei conhecida. Fui apresentada à  Jean-Paul, músico, instrumentista e com ele, me aventurei. Descobri ao seu lado que cantava bem. Uma voz pequena como a de Nara Leão e fiz  sucesso cantando Bossa Nova misturada com Techno. Gravei dois CDs que ainda hoje fazem sucesso nas discotecas locais. Hoje, amadurecida, descobri a escrita. Escrevo memórias. Minhas e dos outros. Não alcancei o hall da fama muito menos virei Nobel da literatura. Não é meu objetivo. Escrevo mais pra mim do que para os outros. É a forma que encontrei de deixar minha marca nesse mundo.

Continua chovendo. A janela embaçada pelos respingos d’água mostram uma cidade mais cinzenta do que de costume. Gosto do que vejo!

Reponho mais café em minha caneca, aspiro seu aroma inconfundível e tento lembrar com mais nitidez seu rosto e contornos. Já passaram tantos anos e ainda não te esqueci. No entanto, sua imagem ganha tons esmaecidos. Assim como a paisagem na janela. Tento escrever sobre você como forma de te fixar a minha realidade. A memória que ainda guardo escorre feito tinta fresca em excesso se transformando num grande borrão do passado.

Imagem: Marion Bolognesi

 

Conselhos de Fada Madrinha

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“Ai amor! Tu não tem idade pra vestir a roupagem de idosa! Fofaa!!  Tu não tem idade pra isso. Tem muita lenha pra queimar. Santa Maria da Periquita Sossegada! Acordaaa!!”

“Mapoa, não se faça de sonsa. Tô falando com vocezinha darling! Fazfavordemedaratenção. A Biba aqui não suporrta ser ignorada!”

Aii!! Tá maluco? Estou invisível por acaso? Ai que não se pode mais almoçar sossegada nesse refeitório senhor!…Tá doendo viu? Por que me cutucou?

Pra ver se desperta desse sono de princesa bela adormecida. Hellow!! Onde anda essa mente hein?

Cássio, por acaso bebeu, cheirou, aspirou muito pó de arroz vagabundo  foi? Não entendo absolutamente nada do que está falando homem! Aff! Me deixa almoçar que ainda tenho de correr até o supermercado para comprar algumas coisas pra casa e só tenho uma hora pra fazer tudo.

Homem? Por acaso, está vendo aqui algum homem conversando com você criatura? Quer dizer então que, além de deixar essas madeixas esbranquiçadas – que aliás, acho UÓ, você ainda sofre de miopia? Hellow again! Sou EU! Cassinha que fala contigo mocréia dos infernos. Não insulta não que o que disse é pro seu bem! Sai dessa vida de senhorinha antes do tempo! Você sempre foi linda, elegante, sexy e acima de tudo, GOSTOSA! Não te aceito por menos! Vamos marcar pra hoje a noite você ir até meu cafofo para eu realizar a grande transformação de te resgatar do limbo dos idosos e te transformar na rainha que sempre foi. Miga, tá sabendo que agora sou uma consultora legítima e sacramentada  da Mary Kay? Que fiz uns cursos de maquiagem que transforma em poucos minutos dragão em miss universo? Então…te quero arrasando a avenida novamente. Que depressão foi essa que te pegou hein? Homem nenhum merece esse desleixo todo amore.

Cássio querido, agradeço sua preocupação mas não me encontro deprimida. Pelo contrário, estou super de bem com a vida. Nunca estive tão bem como agora. E quanto aos meus cabelos, esquece que cansei de ser escrava da moda e dos salões de cabeleireiros. Pra mim já deu. Me dei alforria total dessa ditadura. Serei o que quiser daqui pra frente e se, meu desejo é assumir meus grisalhos, que assim o seja. Entendeu miguinha?

Jesuis é caso de obsessão mesmo! Terei de fazer reza brava no terreiro essa semana. Rogar aos exús que espantem esse espírito de sinhá polvorosa pra bem longe de minha rainha. Vou pedir de volta a Pomba Gira que te acompanhava nos áureos tempos. Ela sim te fazia brilhar nas passarelas da Dama Xoc e da Madame Satã. Lembra? Foi lá, na Dama Xoc, que te vi pela primeira vez e se fosse homem ou lésbica, teria me apaixonado! Tão linda arrasando naquele macacão de lurex, cabelos cacheados, cheio de brilho…Natural e de gumex pra manter aquela onda na texta. Uau!!! Usava um batom ultravermelho na boca, ostentava um sorriso rodeado de covinhas e seu olhar emoldurado por sombra azul e rosa cintilantes e cílios postiços devastadores. Uau!Uau! Não tinha pra ninguém. A mulherada se mordia de inveja e os homens… Bom, os homens se banhavam de tesão por você. Otávia, amiga, volte a ser o que foi um dia. Essa estrela de eterno brilho. Estrelas não devem jamais envelhecer! Prontofalei!

Cássio, amigo querido, só você pra resgatar esse passado que ficou lá no túnel do tempo e me fazer rir tanto. Fala sério, a gente se divertiu muito naquele tempo não? Arrasamos quarteirão com nosso estilo de vida. Quanta gente boa conhecemos nessa época não?  Caio F. Abreu, os meninos da banda Titãs, a turma mais metidinha que andava nos Jardins e frequentavam a boite do Ricardo Amaral…A turma maluca do Marquinho que, infelizmente morreram todos de AIDS nos anos noventa. Marquinhos…Ainda sinto falta do seu astral contagiante e de sua beleza máscula e ao mesmo tempo andrógina. Lembra quando ele se montava de Streisand? Ficava irreconhecível! Uma diva! Ai, esquece tudo isso que relembrar doí muito. Foi uma época maravilhosa mas ficou lá atrás.

Cassío visivelmente comovido abraça Otávia deixando os demais no refeitório especulando o que acontecia com os dois.

Lindinha, passamos por muitas nessa vida não é mesmo? Seremos assim tão ruins que nem o inferno nos quis? Tanta gente boa, se foi tão jovem e nós dois aqui, firmes feito bambu que se enverga mas não quebra. Eu sei que estamos envelhecendo. É fato. Não tem como negar mas, olha, pode parecer piti de bicha véia, de tiona aposentada, enfim, chame do que quiser. Quero que nós dois envelheçamos com dignidade e beleza. E acima de tudo, que nossa amizade permaneça pra eternidade.

Passa lá em casa essa noite Tavinha. Vamos celebrar nossa amizade.

E…pelamordedeus deixa eu dar um jeito nesse cabelo! Fui!

Imagem: Eaiconteudo

Estações

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Acordo primavera,

Alma florida, terra remexida

cheiro de novidade

Passo o dia exalando verão

Mãos quentes, sorriso luminoso,

olhos de tentação

A tarde baixa trazendo aroma de

café;

aspiro seu perfume que me leva à você

Forma-se tempestade

Fenômeno El Niño, viro geleira

enrigece meu coração;

Noite baixa com temperatura fria

encolhida na cama, aos poucos,

passa a tormenta; madrugada chega,

uma voz interna sopra na alma:

Alice, enfrenta!

Adormeço. Mais uma vez, despeço-me

da tua ausente presença. Amanhece.

Volto a ser jardim;

Floresço!

Imagem: Pexels

 

 

Aquela puta amizade que foi sem nunca ter sido

Afinidade pura! Certa vez, um grande amigo meu – daqueles que são alma gêmea -, iniciou um gesto que achei divino: escrever cartas para seus amigos utilizando textos de escritores famosos (ou não) que tivessem tudo a ver com o destinatário. Estava prestes a fazer aniversário quando recebi sua carta. Linda, num envelope carmim, selado com ex-libris em cera derretida. Achei um luxo!

Mas, o que mais me encantou e sensibilizou, foi o conteúdo da carta: um texto de Caio Fernando Abreu: Os sapatinhos vermelhos presente na coletânea Os dragões não conhecem o paraíso. Desculpem minha ignorância, mas ainda não conhecia esse escritor. Logo eu, uma devoradora de livros e conhecedora de autores do mundo todo. Li, reli várias vezes. Emocionei em todas as leituras. Guardo até hoje essa correspondência. Assim como as demais que recebi do mesmo amigo. São verdadeiros tesouros que nenhum valor monetário cobre.

A partir daquela carta, busquei livros de Caio como alguém perdido num deserto que busca por água. Quanta identificação com seus pensamentos, suas palavras!

Hoje, passado alguns anos, voltei a pegar um livro de Caio, A vida gritando nos cantos.

Fui almoçar e levei-o comigo para uma breve leitura após a refeição. Sentei-me ao sol, abri o livro e mergulhei em suas crônicas. Quase perdi a hora de passar o crachá e retornar ao trabalho.  Atenta na leitura, nem percebi o quanto o sol estava quente e agressivo.

Fui ao banheiro e vi que estava um pimentão de tão vermelha. Não liguei. Meu coração encontrava-se aquecido pelas suas palavras. E cheguei a seguinte conclusão: se tivesse tido oportunidade de conhecê-lo em vida, tenho certeza que teríamos sido grandes amigos! Amigos de uma vida inteira. Amigos de se sentar, abrir uma garrafa de vinho, botar uma música de Marina Lima na vitrola (coisa mais antiga, mas se encaixa perfeitamente no texto), e passaríamos a noite trocando figurinhas sobre a vida.

Nem veríamos a manhã chegar e nem perceberíamos os pássaros cantando anunciando um novo dia.

Sinto não tê-lo conhecido. Choro internamente essa chance perdida. No entanto, consolo-me através das leituras de seus contos, crônicas e cartas. Registros que ficaram para a eternidade e para corações sensíveis. Feito o nosso.

Resgate

bau velho

Foi com alegria e certa curiosidade que encontrei no fundo do porão da antiga casa de minha avó, um velho baú. A peça foi do meu avô e encontrava-se coberto de pó e teia de aranha. Tossindo um pouco devido a minha alergia, precisei levantar do chão, me afastar e acalmar os pulmões agredidos pelo excesso de pó e lembranças.

Voltei para perto do baú e, respirando fundo, abri. Uma profusão de fotos, correspondências, bottons, pulseiras, apito e muitas outras coisas antigas guardadas de forma desorganizada dentro da peça.

Meus olhos se encheram d’água. Em parte pelo tanto de lembrança que retornaram de tão profundas gavetas da memória. Em parte, pelo tanto de cheiro de velharia, mofo e umidade que exalava do baú.

Com esforço, empurrei o baú para perto da única janela que existia no porão, que dava para o jardim. para melhor respirar e remexer aquilo tudo. A curiosidade falando mais alto. Sentei feito índio e comecei a jogar tudo pra fora e selecionar as inúmeras fotos P&B, binóculos, álbuns com suas capas rotas e amarelecidas pelo tempo.

Iniciei a investigação pegando foto por foto e tentando identificar ano, pessoas, lugares.

Numa foto quase apagada, reconheci a antiga estação de trem da minha cidade. Digo reconheci, porque já vi outras fotos da mesma época, num enorme painel em eterna exposição no museu da cidade. Na minúscula plataforma, está um grupo de pelo menos dez pessoas. Homens de terno, gravata e chapéu de feltro. Mulheres de vestido rodado, salto agulha ou sapatilha, cabelos presos num coque ou num rabo de cavalo ou com presilhas. Reconheço minha mãe entre as mulheres. Garota de seus quinze anos, cabelos cacheados na altura dos ombros, saia rodada e plissada, blusa de ban-lon, sapatilha e meia soquete. Parei ali, naquela figura que se perdeu no tempo. Naquela menina que não cheguei a conhecer mas que me era tão familiar apesar da distância. Todos sisudos na fotografia. Típica pose da década de 50.

Reconheci a irmã mais nova de minha mãe que se vestia de forma semelhante mas, com a diferença de usar salto alto.

Tão lindas! Tão jovens! Tão cheia de sonhos!

Sonhos…Essa ideia ficou martelando e questionei quais seriam os sonhos que elas acalentavam naquele momento vivido? Sei por palavras de minha própria mãe que ela não tinha tempo para sonhar. A vida sempre foi dura para ela e não foi dado a chance nem o direito a sonhos. Segundo ela, aceitava o que a vida lhe ofertava.

Sempre que ela dizia isso, me causava mal estar. Para mim, eterna e assumida sonhadora, a vida sem eles era praticamente impossível. O que veio depois eu soube, acompanhei de perto a luta das duas para enfrentar tantos reveses que a vida apresentou. Sei que, apesar das diferenças existentes entre elas, sempre foram amigas e companheiras. Com o passar dos anos, minha mãe se anestesiou. Minha tia, amargou e envelheceu barbaramente.

Olhando novamente as fotos – sim, fotos pois encontrei outras do mesmo passeio, um piquenique no Pico do Jaraguá, reconheci duas amigas de minha mãe e tia que até hoje frequentam minha casa. Nas fotos, duas moçoilas irradiando juventude. Hoje, uma está quase cega e paralítica. A outra, ácida e revoltada com o que a vida lhe presenteou. Desquitada, mãe de um único filho que herdou sua revolta, tornou-se uma religiosa da pior espécie não vendo a hora de morrer para ganhar o céu. Coitada! Ainda crê nisso! A outra, mesmo cega e sem poder andar, manteve a chama da alegria e serenidade acesas dentro de si, sendo uma presença amorosa que dá prazer em reencontrar.

Daquelas fotos, a maioria das pessoas ali presente no piquenique já estão mortas ou a beira de. Por instantes, bateu uma fina dor em meu peito ao ver o quanto a vida é efêmera. Passamos por ela numa velocidade atroz. Nos binóculos, reconheci a criança que fui ao lado de minha irmã mais velha e duas primas. No meio delas, em frente ao portão da minha antiga casa, estava registrada para a eternidade, uma criança de seus três anos, ridícula num vestidinho curto deixando à mostra uma fralda avantajada deixando-me parecida com uma saúva branca. Comecei a rir da comparação. Cabelinho tigela, liso e ralo, olhar distante de quem não estava entendendo nada e o eterno dedo na boca. Sempre tive essa mania. Até hoje gosto de ficar assim. Minha irmã, também de cabelinho tigela, saia xadrez de lãzinha – lembro dela vermelha e azul-marinho pois também a usei mais tarde. Blusinha com laçarote, sandália verlon. Minha prima, um vestido tubinho com laçarote fino, botinha branca de verniz curta e uma boina de lado na cabeça. Minha outra prima, irmã mais nova, vestia uma calça cigarrete xadrez, sapatilha branca de verniz (pelo jeito era moda) e uma blusinha marinheiro.

Tão bonitinhas, tão meninas e tão sisudas nas fotos. Sempre achei graça na seriedade das fotos antigas. Hoje, ao contrário, todos gostamos de fazer caras e bocas, caretas espalhando sorrisos para registrar uma alegria muitas vezes falsa.

Revirando um pouco mais, encontrei um convite de casamento de um casal de tios, um santinho de alguém que se foi e não conheci, um álbum de figurinha que pertenceu ao irmão caçula de minha mãe…Um Bat Beg lilás que me acompanhou por um bom tempo deixando meus braços com hematomas semelhantes ao brinquedo! Então ele estava aqui o tempo todo! De uma hora pra outro meu brinquedo favorito sumiu não deixando rastro de seu paradeiro. Cheguei a achar que tinham roubado ele na escola. Só pode ter sido minha mãe quem o escondeu. Ela odiava seu barulho e temia que me machucasse feio. Peguei nas mãos e tentei brincar como nos velhos tempos. Era um ás nesse brinquedo! O máximo que consegui foi fazer reaparecer os hematomas que colecionava no passado e constatei o quanto isso dói. Encontrei o boneco Mickey de minha irmã caçula com a orelha mordida. Lembrei o quanto eu gostava de assustar a pobre criança no berço com esse boneco. Eu era terrível!

-Tia, finalmente te achei! Está todo mundo te procurando. O caixão já foi fechado e está todo mundo indo pro cemitério. Infelizmente, você perdeu o bonito discurso do tio Lázaro. Ele é bom nisso hein? Podia ter sido político ou padre. O que você está vendo?

-Vidas. Após uma que se foi, precisei resgatar outras para aplacar a dor que estava sentindo. Não dizem que recordar é viver?

-Ah tia, pára com isso. Ficar remexendo velharias não faz bem a ninguém. Vem, sobe comigo que quase todo mundo já se foi. Você vai comigo em meu carro.

-Tá. Só me faz um favor

-Sim?

-Ajude-me a levar esse baú pois a partir de hoje ele é meu.

-Tia, mas isso é velho demais e está muito empoeirado. Deixa isso aí vai.

-Não. Ele vai comigo pois faz parte da minha vida. Sem ele, não saio daqui.

-Ai,ai,ai porque que todo mundo que envelhece se apega tanto as coisas antigas hein? Meus pais são iguaizinhos. Tá bom, eu levo pra você.

Saímos do porão em silêncio. O sobrinho, já homem feito. Alto, musculoso, bonito em seus vinte e quatro anos carregando o pesado baú e eu, cinquentona, já sentindo o peso de muitas experiências mas com a chama da alegria em viver acesa. Chegamos à rua e, ao entrarmos no carro, já distanciando da velha casa tive a certeza de que, se meu sobrinho conseguir envelhecer, saberá da importância de se resgatar memórias. Sorrio melancólica enquanto que pela janela, paisagens familiares vão ficando para trás. A vida segue.

Imagem: Google

Traço inacabado

traço inacabado

 

Já nasci saudosa. Essa é minha marca maior além do coração sem fundo, olhar curioso de eterna infante e uma vontade infinda de ser feliz. É claro que nem sempre isso é possível e aprendi, no decorrer de minha existência, a aceitar a vida como ela se apresenta.

Da mesma forma, busco olhar meu próximo com lentes e filtros da tolerância. Não sou religiosa. Já fui, e muito, no entanto, afastei-me por questionar tudo e tornar-me figura “non grata” diante da gleba hipócrita.

Guardo em minhas gavetas da memória, momentos que gravei para a eternidade. Lembranças da infância, são muitas, são felizes, são puras. Época em que não sabia contabilizar muito menos separar o certo do errado, o bonito do feio, simplesmente vivenciava cada dia sem me questionar sobre nada. Deixava-me levar pela vida. E era feliz!

Não me importava em ter apenas um sapatinho verlon, uma meia rota, um vestido que já havia passado por diversas crianças até chegar a mim.

Brinquedos? Somente o que minha avó Maria confeccionava. Havia as almofadinhas das Cinco Marias recheadas de arroz, as bonecas feitas de papel machê e retalhos de tecido. Na realidade, não tive muitos brinquedos mas brinquei exaustivamente! Sou de uma geração em que se ia para as ruas, formava-se turmas e brincávamos o dia inteiro. Era pique, pega-pega, passa anel, estátua, queimada… Tantas eram as brincadeiras na rua, que até então, era território das crianças e não dos automóveis.

Ao final da tarde, minha avó e outras mães chamavam as crianças para o banho e depois o lanche que sempre tinha bolos, biscoitos, broas de milho, geleias acompanhadas do tradicional café com leite ou chá preto.

Como era bom! Anos mais tarde conheci o pão de queijo que uma prima de minha mãe aprendeu a fazer e vez ou outra, fazia de baciada e chamava a criançada para saborear.

Sim, isso era felicidade! Comilanças alimentando o bucho (termo de minha avó) e muita conversa alimentando a alma.

Tive uma infância pobre, contudo nunca faltou alimento em minha casa. Podíamos não ter uma mesa farta em supérfluos que hoje compramos no supermercado, mas sempre tivemos o pão, o leite, a manteiga, o café e o feijão com arroz.

A carne para acompanhar, recebíamos de uma prima minha que era casada com um português dono de churrascaria. A sobra, ele trazia para sua casa e dividia com as famílias menos favorecidas. Graças a Deus estávamos na lista dos desfavorecidos e jamais faltou um naco de carne e linguiça em nossos pratos. Assim como também nunca faltou as frutas e uns doces que recebíamos de uma tia, irmã caçula de minha mãe que aparecia uma vez ao mês e nos brindava com Dan top.

Um para cada criança. Comia devagarinho para prolongar o prazer de comer chocolate. Adorava me lambuzar toda e depois lamber os dedos, a mão, a embalagem.

Sou canceriana nascida em pleno dia 24 de junho, dia de São João. Por conta dessa data, muitos aniversários foram celebrados de frente a uma fogueira comendo batata doce assada, pé de moleque, pipoca, bolo de milho e quentão – no caso só para os adultos. Para a criançada, ki-Suco de uva. Tomava como se fosse iguaria dos Deuses!

E havia também a paçoca de roça da vó Maria. Ah… Que festa se fazia cada vez que vó Maria convocava a família toda para socar o amendoim e o açúcar no pilão centenário até se transformar em paçoca. Era uma farra só. Fazíamos fila indiana para socar o pilão e a cantoria corria solta acompanhada de muitas risadas. O brilho de prazer nos olhares ficou registrado na minha memória. Coisa gostosa lembrar a barriga da minha avó balançando de cima pra baixo enquanto cantava, assoviava e ria. Tudo ao mesmo tempo e dizendo: Soca direito canaiada! Soca com gosto, pra valer! – e dizendo isso caía na risada banguela que me encantava.

Sua lembrança é tão nítida em minha mente: baixinha, gordinha, sempre de vestido florido e avental. E jamais se separava de seu lenço na cabeça feito camponesa que foi de fato. Mesmo morando na cidade, não abriu mão de seus hábitos. Cozinhava assobiando canções de Cascatinha e Inhana:

Índia seus cabelos nos ombros caídos
Negros como a noite que não tem luar
Seus lábios de rosa para mim sorrindo
E a doce meiguice desse seu olhar
Índia da pele morena
Sua boca pequena eu quero beijar”

E o que dizer do vô Dito, índio de nascença, criado por família branca, músico nato que tocava um bandolim como poucos. Cozinheiro exímio, desenhista talentoso que instigou e deu-me a mão nos primeiros passos de meus riscados. Adorava me desafiar e assim, de linhas em linhas fui aprendendo e aperfeiçoando meu traço nos desenhos. Como ele, virei retratista e passei a andar sempre com um bloco de papel e lápis olhando, observando e desenhando todos que me chamavam a atenção.

Sua morte, atropelado numa avenida movimentada serviu de divisor de águas em minha vida – até então, inocente e longe de qualquer fantasma.

Sofri muito. Sentia sua falta e cheguei a ficar doente. Anos mais tarde, já adulta, soube pela minha mãe que minha professora chegou a avisá-la de ter me visto várias vezes no local de sua morte olhando para o solo de piche.

Confesso que até hoje não me lembro desses dias.

Segui os outros anos até chegar a adolescência desenhando cada vez mais e melhor. Cheguei a ganhar uma maleta com várias bisnagas de tinta a óleo e pinceis de todos os tipos e tamanhos além de telas. Ganhei esse precioso presente de um pintor naif, hoje conhecido mundialmente por Madalena. Foi uma alegria tão grande que passei a pintar sem parar.

Até que a vida me chamou para a dura realidade e passei a trabalhar longe de casa para ganhar um salário melhor. Não tive mais tempo para desenhos, pinturas e sonhos.

A vida me embruteceu. Por mais de trinta anos, nunca mais peguei num grafite muito menos em pincéis. Houve um bloqueio no desenho, ocorreu uma atrofia no músculo principal – meu coração, transformando-me num autômato. Passei anos a fio somente executando tarefas materiais e necessárias. A rotina me engoliu fazendo-me refém da acidez. Deixei de enxergar beleza, leveza. Tornei-me rude comigo mesma e com as pessoas.

No entanto, essa tal vida que tanto falei até agora, essa mesma aprontou comigo no sentido de trazer-me à razão. Ela, a vida, é ladina, safada, malandra e deu uma rasteira para que eu num voo solo pudesse enxergar novamente quem eu era de fato. Não esse estereótipo que abracei e finjo diariamente que sou.

Sou uma junção de sangue, carne, nervos e sentimentos que percorrem toda a carcaça física e transcende a matéria se expandindo para todo o universo. Sou dotada de pura emoção e represando tanto tempo isso, é claro que não iria fazer bem. A rasteira que a danada da vida me deu não vem ao caso mas a reação que ocorreu em mim, ah isso sim, vale a pena comentar.

Ela me deu um looping dos bons me fazendo da noite pro dia, uma atleta de seu time. Era isso ou minguava. Preferi viver e retornar à minha antiga e sempre presente pessoa que fui e ainda sou. Só me encontrava anestesiada pela rotina.

Hoje, voltei a valorizar o belo, a poesia, a música e até voltei a traçar. Não é que continuo com meu traçado firme?

Compreendi que meu traço não tem fim, assim como a vida, é inacabado e digo isso porque tenho a certeza que nada termina por aqui. Caso contrário, seria muita sacanagem dela, a vida.

E ela, de tão boa ainda me ensinou outros traçados como esses, que acabo de escrever.

Imagem: Marcos Andolphatto

Lembranças…

Para quem ainda não sabe, tenho participado com alguns contos na revista literária Plural que está sob o comando de Lunna Guedes. Na última edição, o tema foi Lembranças e eu mergulhei com tudo nas minhas e transformei-a num belo conto. Convido a todos para conhecer a revista e os demais autores que nela se encontram. A revista está ótima pessoal!

Para ler

rubem plural