BEDA – Resiliência

Bocas invisíveis

reverberam

pernas que não se movem

rodas que traçam destinos

pinos esperança

fisioterapia da alma!

Esse texto faz parte da blogagem coletiva BEDA (Blog Everyday April).

Participam comigo:

Alê Helga – Claudia Leonardi– Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins

Imagem gratuita: Pexels

BEDA – Futuro?

Sentada, com os pés descansando em outra cadeira, procuro me projetar  num futuro. Próximo? Médio? Longe? Missão impossível. Cancerianos são expert em passado. Nostálgicos por natureza, é forçar demais a barra tentando mirar a vida lá na frente.

Penso. Tento refletir o porquê dessa dificuldade. Talvez, um dos motivos que me impeça vislumbrar o amanhã, seja reconhecer que a cada dia morremos um pouco e se projetar assim, é ousadia demais. Nunca fui de voos cegos. Sempre tive horror a altura. Respiro fundo. Procuro trabalhar minha criatividade vasculhando possibilidades. Como estarei daqui a cinco, dez anos?

Paúra…de causar taquicardia. Não, não quero ter uma parada cardíaca expondo meus neurônios nessa experiência. Se é para sofrer antes da hora, mirando a decadência física e mental, opto por uma crise de esquecimento.

Caio num riso sem fim pensando o quanto sou cagona. Girando na cadeira, em voz alta, começo uma explanação: Sabe o que é? Explico. Nosso passado não é digno de orgulho. Nosso presente…ah, esquece, melhor nem comentar. É tudo uma questão matemática. Soma-se o passado mais o presente. A somatória qual pode ser? Você é adivinho? Nem precisa ter uma vidência extrapolada é pura equação matemática: CAOS TOTAL. Sendo assim, melhor deixar para lá e aguardar ser pega de surpresa para não dar nem tempo de se salvar. Morte certeira e rápida. Não, não sou pessimista. Quer saber? Mexer com o futuro é meter a mão em vespeiro. Você se recorda de ter assistido ou lido ficção científica mostrando um planeta em ordem, sem guerras, sem miséria, com tudo funcionando a pleno vapor, com uma população feliz? Cara, isso não existe!

A cadeira, de tanto girar, avisa que uma crise de labirintite se aproxima.

Esse texto faz parte da blogagem coletiva BEDA (Blog Everyday April).

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BEDA – Ano crônico

Descortinei 2020 antevendo um ano de muitas turbulências e tempestades que exigiria muito de mim. Minhas antenas intuitivas de bruxa canceriana, balançavam insanas dando sinais de alerta. Recordo meus dias carnavalescos, passados numa cidade do interior de São Paulo, ao lado de irmão e cunhada. Pulei carnaval três dias, como há muitos anos não pulava. Dancei, pulei, cantei até quase arrebentar as cordas vocais. Provei para mim mesma, que meus pulmões estavam pra lá de saudáveis. Liberei toda emoção represada e retornei para minha rotina, renovada. Os dias seguintes foram estranhos. Minha intuição gritava que algo estava fora de ordem. Captava uma energia estranha, sorrateira.

Março chegou trazendo mau agouro. Ordem de voltar para casa e aguardar orientações, contudo, a máxima foi: Não saiam. Não recebam ninguém. Os primeiros dias foram férias antecipadas. Dormir até tarde, comer o que dava vontade, passar o dia de pijama, maratonar séries.

Abril escancarou a gravidade da situação. O mundo tratando a pandemia com seriedade e responsabilidade. Já o Brasil — moleque brejeiro — inflou o peito e adotou uma postura negacionista e burra.

Maio trouxe-nos o amargo sabor do café da manhã ao sabor dos noticiários, atirando em nossas caras, a marca das quase mil e duzentas mortes por COVID-19.

Diante de minha janela, no décimo andar, observava diariamente a rua vazia, pássaros anunciando o amanhecer, o silêncio por companhia.

Trabalhando em casa, estabeleci uma rotina saudável. Acordava cedo, fazia meu dejejum sem pressa. Passei a fazer atividade física em meus parcos quarenta e dois metros quadrados. Pilates de solo, yoga, caminhada e corrida monitorados por aplicativo. Não vou negar dizendo: Oh como sofri! Pelo contrário, essa nova rotina foi prazerosa.

Vinha de anos sofridos e desgastante na empresa, que passava por muitas mudanças. Essa parada foi uma brisa em meio a tormenta que enfrentava. Solidão? Nem pensar! Sou ótima companhia para mim mesma. Mantive contato com familiares e amigos pelas redes sociais e vídeo chamada. Tive tempo para refletir sobre o que queria, ter a certeza daquilo que não mais me servia. Mergulhei sem medo, num processo de autoconhecimento e saí mais confiante, descansada e certa do que esperava do futuro.

Em quatro anos, minha vida mudou drasticamente. Para melhor, sem dúvida. Ela tornou-se mais pé no chão, mais cercada de carinho genuíno, mais humana. Tenho consciência de que muitos até hoje não se recuperaram dessa crise mundial que afetou a todos. Só posso responder por mim e um dos acontecimentos positivos foi a imersão na escrita que trouxe como frutos, a alegria e a certeza de que escrevo bem sim e que ela me proporciona terapia gratuita no qual chego quando quero, sento no divã ou no chão ou mesmo na poltrona ergométrica que adquiri em suaves prestações e, nessa sessão, me desnudo sem censuras. Vou reclamar de quê?

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Imagens: Acervo pessoal

BEDA – Surto coletivo

Depois de adulta, dificilmente convivi com crianças e, sempre que possível, evitava. Imaginava-as seres estranhos, complexas, incompreensíveis.

Até que por uma necessidade de sobrevivência, me vi cercada diariamente por centenas de crianças e adolescentes das mais variadas faixas etárias.

A princípio, tratava-as bem mas, com certo distanciamento. Pouco a pouco, fui me desarmando e deixando-me seduzir pela energia em alta, alegria e sinceridade de todas elas.

Hoje, estranhei o comportamento delas desde cedo. Logo no primeiro intervalo, uma avalanche de crianças invadiram o espaço silencioso da biblioteca. Até aí, nenhuma novidade afinal, todo intervalo elas comparecem.

Mas especialmente hoje, notei uma euforia anormal. Uma inquietação. Amanheceram todas hiperativas.

Ao longo do dia foi minando minha tolerância. Ao término da tarde, final do intervalo, comecei a afugentar os que não queriam sossegar, impedindo os que chegavam e queriam entrar. Ansiava por meu silêncio e paz instaurados. Desejei ter uma varinha de condão para emitir qualquer palavra mágica e colocar todos os livros jogados, abandonados fora das estantes, no seu devido lugar. E o que dizer dos pufs, castigados pelos corpinhos inquietos e sem cuidados desses seres humanuzinhos, cópias mal feitas de futuros cidadãos de bem…Ou não!

Amo-os e tenho passado momentos bem alegres e interessantes, mas hoje, ao fechar a biblioteca e girar a chave na porta, desejei um planeta repleto de vegetação verdinha, uma fauna diversificada e rica e…E mais nada. Se Deus tivesse parado por aqui, sua obra seria realmente perfeita. E tenho dito! Pelo menos por hoje.

Até agora me pergunto: o que será que colocaram no suco da merenda escolar?

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Imagem licenciada: Shutterstock

BEDA – Não nasci Marie Kondo

Seis e quarenta da manhã. Quinta-feira nublada e meu corpo se nega a despertar. Respiro fundo e levanto.

Ao abrir a janela para me conectar com o mundo, distraio diante da cena: três travestis conversam animadamente sobre a noitada que rendeu. Sorrio perante o diálogo.

A TV ligada avisa que estou muito atrasada.

“Hum, não terei tempo para o banho”

Recordo que tenho uma reunião importante com alguns fornecedores.

“Preciso me arrumar”.

A cafeteira trabalha rápido perfumando o ambiente. Abro a porta do guarda-roupa e o que vejo me paralisa: um caos que minhas retinas registram.

Não tenho uma única peça de roupa passada. Camisas misturadas com jeans, que sufocam meu cashmere que trouxe de Buenos Aires, na última viagem de férias.

Abro outra porta e despencam vários calçados que – cansados de aguardar um olhar de organização -, cometem harakiri.

As gavetas de lingeries não ficam atrás. Soutiens velhos, laceados, misturados com modelitos “mamãe quero dar”. Calçolas furadas se reuniram num tour de force às meias soquetes, faixa de gaze (o que isso faz aqui?) e variados cintos coloridos.

Bocardi grita da “telinha” que já passa das 7h30.

Entro desajeitada num vestido agarrado que pede para continuar no limbo do armário. Subo num scarpim de verniz e em seguida, opto pelo tênis, afinal, não vale a pena sofrer logo cedo.

Suando, entro no elevador e, ao girar a chave no portão, o silêncio da rua sem carros me traz a lembrança de que a quarentena transformou nossa ida ao trabalho em Home Office.

“Caralho! A reunião é on-line!”

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BEDA – Gula

Abocanho carnudo caqui

recordo-te

Deixo escorrer o líquido

por entre os dedos

Sinto o doce que desprega dos gomos

Desejo… mais

Não importa a hora avançada

Vou passar mal?

Ossos do ofício..

Um só não basta…

Não me basta

Escolho atenta, qual pegar?

Quero outro igual

repetir o prazer

quase sensual

abrir com as mãos

observar seu interior

levar à boca, revirar

em meu interior

Manter suas fibras presas

entre o céu da boca

e a língua faminta

ansiosa por mais

Quero-me fartar dessa

doce acidez

tal qual me fartei de você

com você

por você…

engulo

mais

um

gomo

rubro caqui

te queria

novamente

aqui.

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BEDA – Minha vida entre livros

Na década de 80, uma pessoa se ofereceu para fazer minha numerologia. Duvidei, tentei desviar, me fingir de morta mas, não teve jeito. Ela, de posse de meus dados do nascimento e hora, em poucos dias me apresentou o resultado.

Após meus olhos passearem por várias informações tipo: nome do meu anjo protetor, blábláblá… Eis que me deparo com as possíveis carreiras nas áreas a seguir: arquivos, bibliotecas, museus e educação.

Soltei meu riso de escárnio e ao chegar em casa, meu primeiro impulso foi jogar fora aquele monte de papel, mas, como boa canceriana, guardei numa caixa de documentos e ali permaneceu por muitos anos.

Naquela década, fui uma total sem noção. Ora assumia a fantasia de perua no salto Czarina 15, vestida de mini vestido e blazer com ombreiras gigantescas, ora me transformava em gótica e saía desbundada pela city.

Trabalhava numa semiescravidão não percebida, na rua da Consolação. Após horário, circulava pela rua Augusta até tarde, descendo para o centro de São Paulo, onde tomava o ônibus para regressar para casa. Cruzava com várias tribos urbanas da época: punks eram os que mais encontrava, emos, góticos e outros tresloucados que habitavam as ruas. Nunca tive problemas com nenhum deles.

A década deu pulos de atleta e chegamos ao ano de 1995. Muitas águas rolaram por debaixo dos rios canalizados de Sampa. De artista plástica, a professora de língua portuguesa, arquiteta, design de interiores, minha vida profissional desaguou em águas biblioteconômicas na área educacional.

De lá pra cá, nunca mais me separei desse companheiro constante: o livro. Ou devo dizer que fui infiel e travei contato e vivi cercada por inúmeros, centenas, milhares de livros? Acredito que fui e permaneço a infiel mais fiel a alguém pois jamais, em hipótese alguma, troquei o(s) livro(s) por nenhum outro objeto ou ferramenta ou sei lá o quê. Ao lado dele(s), vivi experiências únicas, amei intensamente, conheci lugares, pessoas, filosofias. Tornei-me mais humana, mais experiente, mais sábia.

Hoje, 23 de março, data em que se celebra, homenageia, difunde a importância dele, deixo aqui meu depoimento do quanto sou grata pelo convívio com ele(s) e o quanto sou feliz em também poder escrever e transformar meus pensamentos e textos em livros. Ah, ainda sou grata pela possibilidade de ter conhecido e feito amizades duradouras através dos livros e da escrita.

Perceberam que a moça que fez meu mapa astral acertou na mosca? Sem querer, querendo, direcionei minha vida para a área educacional e trabalho em uma biblioteca até hoje. Cercada carinhosamente por livros e crianças e adolescentes incríveis.

Sou ou não sou feliz?

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BEDA – Remexer o passado

Entra ano, sai ano e eu, mais uma vez, remexendo caixas, gavetas, álbuns da família. Adentrar quartos na casa de minha mãe, é girar a maçaneta da porta de um plano atemporal que traz de volta pessoas e objetos que fizeram parte de meu passado.

Os dias se transformam em meses, depois em anos e somente eu e minha mãe, temos curiosidade em rever tais velharias. Hoje, após o almoço, o ritual aconteceu novamente. E eu nem tinha intenção de fazê-lo. Meu único objetivo era faxinar o ultimo quarto da casa que se encontra desabitado e se perdia em meio a quilos de pó acumulado e incontáveis teias de aranha.

Devo ser louca mesmo. Ao invés de aproveitar o feriado prolongado para descanso e lazer, resolvo me entregar de corpo e alma à faxina de um cômodo de uma casa que nem é a minha. Freud deve ter alguma explicação…

Mudança de posição de alguns móveis, aspirador trabalhando insanamente, pega pano, molha pano, torce pano, passa pano. Desejo doentio de sentir cheiro de limpeza no ar. Hora de organizar as gavetas da velha cômoda…Por que fui fazer isso?

Ideia inicial era jogar tudo sem olhar, num enorme saco de lixo vazio, louquinho para ser útil. Separava umas inutilidades como: calendário de 199 e múltiplas bolinhas, uma revista espírita de fevereiro de 1971. Ao passar os olhos pelas suas páginas amareladas pensei: esses desencarnados já devem estar no plano terreno novamente e esses irmãos responsáveis pelo periódico já devem estar praticando o jornalismo etéreo no Nosso Lar ou em outras estâncias faz é tempo.

Senti que minhas orelhas queimaram nessa hora. Okay!Okay! Desculpa pensar assim de algo que acredito e sei ser tão sério. Perdi pontinhos preciosos com a espiritualidade. Foi maus.

Minha mãe chega e estaciona na porta do quarto, sorrindo como sempre. Observo seus olhos brilhando diante de tesouros tão preciosos. Esfrega as pequeninas mãos e senta na beira da cama pedindo que eu passe para ela ver cada item da gaveta. E lá fomos nós para a Terra do Bebeléu rever jogos de agulhas de crochê, de tricô, tear, caixa com linhas para bordar, espelhos minúsculos, caixa jurássica de lâminas Gilette, de mil e transdontes do século vinte, correspondências de meu tio com amigos de Brasília, canivete estiloso que ele sempre mantinha em seus bolsos, três molhos pesados de chaves. Vá saber de onde são. O que dizer dos cadernos de receitas de minha saudosa tia? Uma Mão de Fátima linda, perdida entre bijuterias baratas que titia insistia em manter numa caixinha azul.

Fomos arremessadas para a realidade quando minha irmã entrou no quarto avisando que o lanche do final de tarde estava pronto. Cansadas de mais uma viagem ao passado, mamãe e eu tratamos de lavar nossas mãos nos livrando temporariamente da nostalgia que se apossava de nossas retinas e corações. O aroma do café e do bolo de milho, nos cataputou para as tardes tingidas em sépia, dos lanches na casa de vó Maria. Ah…isso é covardia!

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BEDA – Questão de escolha

Aos olhos dos que não me conhecem, sou árida, incapaz de amar e procriar. Nada deixarei nessa vida. Não terei herdeiros. Talvez, o que fique e se perca no tempo, serão meus escritos e nenhum prêmio que valide minhas letras.

Tenho plena consciência de que nunca amei ninguém e jamais fui amada também. O que tive foram pequenas doses de flertes, muita paixão desmedida, algumas atrações físicas que se diluíram ao toque das primeiras linhas de pensamentos expressas em palavras e atitudes. Como tão bem descreveu o filósofo Sigmund Bauman, nunca fui afeita aos amores líquidos. Não basta beleza física, tem de haver algo mais: inteligência, cultura, conteúdo. Não tolero a burrice e a preguiça alheia. Por conta desse traço, inúmeras vezes fui julgada como antipática.

Nunca gostei de brigar. Não entro em discussões mas caso acredite naquilo que defendo, apresento argumentos e mostro os dentes sem vergonha. Em outros momentos, me recolho ao silêncio e me distancio. Prefiro águas mornas e calmas ao turbilhão dos maremotos.

O meu amor, não é Amor Capricho nem folhetim global. Aprendi a amar sem as pieguices do gênero romântico. nem uso como panfleto para redes sociais. Ele se manifesta de forma tímida, longe dos holofotes.

Não me sinto lesada nem incompleta. Adotei a humanidade como família. Jamais sofrerei de solidão!

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BEDA – Reacender minha ancestralidade

Retornar às origens, renova as energias, traz de volta nossos antepassados queridos, através das lembranças e, fortalece os laços afetivos entre os que participam do ritual.

Recordo com carinho, os momentos em que a família se reunia — em torno do pilão de madeira de meus avós — no quintal. A união de todos para o feitio da paçoca de amendoim, se transformava em festa. Dos mais velhos às crianças, todos aguardavam sua vez de socar o amendoim, a farinha de mandioca e o açúcar, contribuindo para garantir sua porção.

Uma fila animada se formava para que, cada um, tivesse sua vez de socar com prazer, observando a transformação.

Risadas, piadas e lembranças, se misturavam dando liga ao doce. Esses eram os ingredientes que faziam de um simples e antigo alimento, uma iguaria abençoada pelos deuses.

Ainda criança, recordo a expectativa que aquecia e fazia disparar meu coração. Na fila, aguardando, minha vez, pulava sem parar, rindo feito hiena.

Nem me preocupava em levar bronca. Nesses momentos, os adultos também viravam crianças e se comportavam da mesma forma.

Enquanto socavam, uma cantoria surgia e — fixou em minhas retinas da memória — o brilho de felicidade nos olhos da vó Maria. Sem dúvida, a maior das crianças ali presente.

Naqueles encontros, a união familiar emanava uma energia que trazia ao presente, a ancestralidade indígena e africana que todos nós trazemos em nosso DNA. Cantar, bater o pé no solo de terra batida e as mãos, em sintonia com as vozes, despertavam todos que adormeciam em outras esferas.

A festa seguia iluminando a todos. Paçoca pronta, cada um pegava uma colher para prová-la, ainda dentro do pilão. Sem cadeiras para todos, os mais novos sentavam-se no chão. Por alguns minutos, um silêncio imperava enquanto sentíamos o doce envolver nosso sistema digestório.

O pilão ainda existe. Foi restaurado após anos de abandono no porão. Se transformou num item de decoração, na casa de um dos tios.

Minha ancestralidade anda esmurrando a porta do coração. Deseja sair e se manifestar. Vontade absurda de bater os atabaques, soltar a voz e chamar de volta, todos que adormecem.

Texto faz parte do livro Quinta das Especiarias, publicado pela Scenarium Livros Artesanais

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