Hoje amanheci com o coração aos pulos de alegria e uma felicidade que há muito não sentia. Acordei sentindo seu cheiro amadeirado, seu hálito quente, sua língua exploratória, seu toque inconfundível. Demorei a abrir os olhos pois não desejava retornar à realidade. Ali, na penumbra do quarto, mantive-me quietinha, inerte, quase sem respirar só para não quebrar o encantamento daquele momento.
Resgatar os instantes que passamos juntos é talvez, a melhor coisa que a memória faz por nós. Lembrei de uma frase sua:
‘É bom sentir saudade. É sinal que vivemos algo, construímos algo. Esses momentos são pedras preciosas que carregamos até o fim de nossas vidas. Guarde-as com carinho meu amor.”
Lembra disso? Eu gravei essa e muitas outras coisas suas. Nossas.
Não tivemos a chance de construir muitas coisas. Muito pelo contrário, o tempo foi algoz, o destino atroz no entanto, o pouco que conseguimos, ficou.
E passado tantos anos…Pra falar a verdade, décadas, parece que tudo aconteceu ontem.
Hoje, vivo sozinha numa bela casa de repouso. Não quis saber de morar com minha filha. Ela tem sua vida, sua família, seu trabalho. Seria um fardo pesado demais em suas costas. Como no decorrer dos anos soube investir meu dinheiro, hoje posso me dar o luxo de pagar por esse “depósito” de idosos. Aqui tenho tudo o que preciso: quarto individual com banheiro adaptado, refeições bem feitas e diversificadas, uma TV no quarto que dificilmente assisto. Somente quando perco o sono pela madrugada e busco esquecer a realidade é que ligo a fábrica de sonhos. Só que, pra falar a verdade quase nunca presto atenção. É mais pelo som, pela imagem que me faz sentir menos sozinha. Continuo a ler muito só que agora seleciono minhas leituras garimpando livros que tenha uma fonte maior para poder enxergar bem. Sabe como é, coisa da idade. Ah! Outra coisa que adquiri com o tempo: escrever.
Coleciono uma dezena de cadernos com manuscritos meus. São coisas bobas, do cotidiano. Um filtro que passo em tudo o que vivencio, vejo e transformo em narrativas. Não tenho e nunca tive pretensões literárias. Sei que não levo jeito pra competir com tanta gente talentosa mas, tornou-se um bom passatempo enquanto ela, a morte, não se lembra de vir me buscar.
O que? Você acha que tenho medo dela? Nem um pouco! No passado, quando jovem e com uma vida inteira pela frente, sentia sim. Mas hoje, no alto de meus oitenta e oito anos, penso nela como uma companheira atenciosa, prestativa, certeira. Talvez a única que tenha um real olhar para mim. Sim porque, velhos costumam ser invisíveis e recebem olhar que atravessam e não permanecem. Entende a diferença? Não? Pode ser porque você ainda é jovem. Quando chegar a minha idade saberá do que falo.
Osório, a única queixa que tenho sobre o tempo e a memória, é que aos poucos, todos os nossos arquivos de vida vão desbotando. Você, por exemplo, não consigo mais fixar os detalhes de sua figura que era tão bonita. Meu cérebro já não funciona tão bem como antes. Outro dia até caí na risa sozinha quando vi que estava trocando seu nome. Logo seu nome que foi tão importante pra mim. Escrevia sobre você em meu caderno e, quando parei para ler, vi que tinha te chamado de Tenório. Imagina só.
Que pena, a consciência vai dominando meu corpo enrugado e aos poucos, por mais que lute contra, sua imagem, seu cheiro e tudo o que te compõe vai sumindo. Ficando apenas uma vaga sensação delirante. Sinto que estou despregando memórias. Ao final, acho que nada se manterá, apenas um vazio de vida.
Envelhecer tem disso. Deve ser também a reação aos remédios. São tantos que nos fazem engolir!
“Acorda dona Tereza! O dia está lindo lá fora. Vamos tomar o café da manhã e depois, um pouco de sol” – dito isso, a cuidadora abriu as cortinas inundando o quarto de luz e de realidade.
Querer nem sempre é poder. Sempre soube disso pois na infância, cheia das vontades de ter brinquedos, o máximo que consegui foi ter uma boneca com os dedos decepados e metade da cabeça careca e muitos brinquedos confeccionados por minha avó. Me contentava com o que tinha. Nunca fui criança de muitas querências.
A vida me dava, eu sorria e agradecia.
Sempre tive uma relação íntima com a lua e as estrelas. Sentava à noite na calçada e enquanto os mais velhos ficavam de prosa contando muitos causos, eu, sozinha na companhia de minha imaginação, subia ao céu e permanecia na companhia delas. De lá, pulávamos nuvem por nuvem em busca de aventuras. Quando nos cansávamos e sentíamos frio, o Sol majestoso, nos dava um abraço aquecido e lá íamos novamente brincando, se escondendo, saltando, dando cambalhotas no espaço. Minha voz se perdia por entre diversos buracos negros – que de negros não têm nada.
A Lua certa vez me confidenciou o quanto gosta do Sol. Disse que adoraria ter uma noite caliente ao lado do todo poderoso. Achei graça e perguntei o que ela esperava para fazer isso.
Pensativa, olhou a sua volta, pigarreou, colocou suas mãos gorduchas na cintura e sorrindo me disse:
– Oras! Oras! Menina, isso não é assunto para discutir com você. Ainda é uma infante! Venha, vamos brincar de brilhar com as estrelas.
Soube por Vega e Rigel, que novas estrelas nasceram e que o céu se encontra em festa. Pedi que me levassem para conhecer as estrelinhas no que foi negado imediatamente. Vega, impostando sua voz e ampliando sua luz como forma de se parecer mais respeitável, disse que ainda não tenho maturidade para entrar na maternidade estelar.
Não insisti pois sei que elas são mais experientes que eu e sabem das coisas. Como disse a sábia e iluminada Sirius, tudo a seu tempo! E tempo é o que tenho de sobra e dá-lhe brincadeiras nas nuvens.
–Roseliii!! Oh menina que vive ni mundo da Lua. Nunca vi coisa igual. Anda, levanta desse chão que começou a garoar. Não vê que o céu fechou, nublou e já começa a trovejar? Anda! Vem pra dentro que já é tarde e amanhã tem aula logo cedo.
…- Já vou mãe! Tô me despedindo de minhas amiguinhas!
Cresci, perdi contato com minhas companheiras de infância. Tempo, que achava que tinha de sobra, hoje faço das tripas coração para tê-lo com economia. Hoje em dia é iguaria rara, pouquíssimas pessoas tem em abundância.
As incumbências adultas, a responsabilidade em excesso, a brutalidade da realidade apagaram pouco a pouco a fantasia que habitava meu ser. Adulta, apenas executo, cumpro. Ligada no automático, acordo, trabalho, como, durmo. Minha vida tornou-se uma sucessão de liga/desliga.
Até ontem quando, voltando para casa, cansada, com sono, com fome, ela se manifestou para mim de forma esplendorosa. Mágica. Única. Como há muito tempo não via.
No topo de minha rua que é descida, deparei-me com ela imensa, radiante, espaçosa. Teve o topete de afastar todas as nuvens, prédios, poluição para se manifestar para mim.
Em meio a rua, fiquei paralisada diante de tamanha beleza. Um reencontro mágico, especial entre duas companheiras que há muito não se viam.
Seu cumprimento foi se iluminar intensamente como forma de me dizer:
– Ei companheira, lembra-se de mim? Estou aqui! Aliás, sempre estive aqui
Eu entendia sua mensagem e emocionada, sorri por entre lágrimas que embaçavam minha visão tornando sua imagem etérea feito aparição.
– Sua louca! Está com a cabeça nas nuvens! Não vê que está no meio da rua? Quer morrer quer? Ei! Tá no mundo da Lua? Tá? Qualquer hora vai ser atropelada hein dona!
E dizendo isso, um motorista irritado acelerou seu carro e quase tirou uma fina de mim, que ainda tomada por essa letargia, enluarada me assumia e caindo numa gostosa gargalhada como há muito não tinha, terminei de atravessar a rua descendo a ladeira de olhos pregados nela. Minha amiga de tantas noites, de tantas infâncias, de tantas aventuras. Ao chegar no portão de casa, num ato de resistente despedida, olhei para o alto e vi que agora, ela não se encontrava mais sozinha. Estava rodeada de minúsculas luzes, minhas outras companheiras de traquinagem.
Abri o portão, entrei e sensibilizadas com minha comoção, as roseiras se viraram em minha direção exalando um perfume que me intoxicou de alegria. A magia havia voltado a habitar minha alma. Sentindo uma tremedeira nas pernas, sentei-me no degrau na área e chorei. Mas não foi um choro de tristeza não. Foi um choro de redenção, de compreensão da realidade fantástica que nunca havia se esgotado em mim. Apenas havia adormecido por um tempo. Estava salva da mediocridade.
Da casa vizinha, um som maravilhoso de trompete rasgou o espaço físico instalando-se em meu coração que por hora, batia num ritmo jazzístico de melancólica felicidade.
Em meio a tantas conversas paralelas que se cruzam e me transpassam, encontro-me isolada num mutismo.
Não consigo fazer parte dessa massa que fala incessantemente. Verborrageiam assuntos pueris, desnecessários – pelo menos para mim e assim, vou ficando pelas beiras fugindo através de minha mente poética.
Aspirando novos ares, novas paisagens, renovando meus sonhos, imaginando novos mundos e personagens.
A realidade me nauseia.
Procuro a cura através da ficção, da quimera, da palavra trabalhada.
Talhada na madeira macia e maciça da ideia.
Paideia, nova roupagem, já imagino uma nova imagem.
De um mundo mais redondo, de arestas aparadas, seres humanos mais centrados, iluminados.
Natureza em equilíbrio com monumentos erguidos. O homem, fazendo parte mínima num mundo mais justo.
Um luxo! Sem paetês, nem pedrarias falsas, sem dinheiro fácil para poucos.
Os porcos? Longe. Bem longe chafurdando na lama merecida de suas bostas expostas.
Cenário idílico no qual desconhece-se a fome, a miséria,a falta de oportunidades.
Haverá chances para todas as idades. Crianças terão a alegria de vivenciarem sua infância em sua plenitude, os jovens iniciarão suas vidas sem pressa de ingressarem ávidamente nas universidades correndo atrás de nada, sentando-se em bancos escolares assimilando o nada.
Para que pressa em ser infeliz? Visualizo seres mais leves, de gestos não ensaiados, sem serem programados. Sorrisos fáceis, olhares diretos, discretos.
Livres de qualquer tirania seja da moda, conduta, escolhas.
Amores verdadeiros, presenciais – nunca mais virtuais, banais. Retorno ao olho no olho. Cortejos verdadeiros, suspiros profundos, acasalam___________________
ROSELIIIIIIII
Aii!!!
Volta de Nárnia Roseli, o povo tá perguntando o que vai querer pro lanche da tarde!
Risada geral, retorno brusco à realidade e as conversas paralelas permanecem deixando-me com um gosto ácido da bile por algo mal digerido: alimentos, pensamentos, movimentos soporíferos que me inundam o interior.
Levanto-me numa atitude de afastar toda essa agitação que me rodeia fora e me aprisiona dentro e sigo rumo a ampla janela que dá para o Parque Trianon. Apreciar a vegetação em seus movimentos peculiares me amansa a alma embriagada de sonhos e carente de doces realidades.
E então Roseli? Roseliê!!!! Acorda mulher! O que vai querer pro lanche? Tô indo na padoca da rua de baixo.
Desde pequena ouvia tais adjetivos. Era da mãe, das tias, do pai, dos vizinhos. E ao contrário da maioria das pessoas, para seus ouvidos eram puros elogios!
Com sua mente infantil, achava que a loucura era natural. Via seres alados, bichos que dialogavam, fadinhas que a acompanhava em suas aventuras pelo bairro.
Seus inúmeros amiguinhos invisíveis eram muito queridos. Livres de qualquer preconceito aceitavam aquela menina exatamente como ela era.
Certa noite, sentada no fundo de seu quintal, olhando as estrelas, a fada Piradinha Celestial observando seu ar perdido no céu confidenciou:
– Magali, você é uma menina muito, muito especial. Por isso consegue nos ver. Diferente dos adultos e demais crianças, você manteve o poder de sonhar. E os sonhadores são considerados loucos, visionários. Mas graças a vocês, continuamos vivos, ativos e trazendo um pouco de beleza a esse mundo tão endurecido por guerras e interesses materiais.
Mantenha-se assim! Mesmo que amadureça não perca esse dom de fantasiar, sonhar. O mundo precisa disso.
Os anos passaram, a menina cresceu.
Sempre incompreendida. A família já dava como caso perdido. Essa? Coitada! Não será nada na vida. Vive no mundo da Lua! Jamais será alguém.
Na faculdade a chamavam de Meg Squizy. As garotas adoravam reparar em sua forma peculiar de se vestir e os rapazes a viam como um E.T.
Somente o Gustavo, outro Squizy se aproximou e demonstrou um certo interesse sexual na jovem. Saíram algumas vezes e, juntos, perderam a virgindade. Depois dessa noite que tornou-se um divisor de águas na vida de ambos, nunca mais se encontraram.
Magali sentiu por um tempo mas depois mergulhou em suas fantasias e logo esse episódio já era página virada.
Gustavo, após essa experiência, tornou-se o galinha da faculdade e passou o rodo em muitas outras calouras que chegavam no centro acadêmico.
Adulta, Magali conheceu mais alguns homens que só tiveram com ela a intenção clara de levá-la para a cama. No que ela ia de boa. Afinal, que mal pode haver? E sempre ao término, ficava sabendo por terceiros que eles a achavam esquisita demais. Louca demais. Surtada demais. Enluarada demais. Sempre esboçando um sorriso Monalisa dizia em pensamento: E sou mesmo!
Leitora voraz, leu de um tudo na vida. De Shakespeare a Bukowsky. De Alencar a Montello. De Camões a Miguel Sousa Tavares.
Com o passar dos anos conseguiu o cargo de roteirista e hoje, após tantas gozações, descrenças e falta de estímulo por toda parte, sobe ao palco de um importante prêmio internacional para receber a estatueta de melhor roteirista. O brilho intenso de seus olhos perpassa toda a plateia presente. Agradece a todos que reconheceram seu talento e profissionalismo. Inúmeros flashes recaem sobre a vencedora que após uns minutos em total silêncio, vira-se para outra câmera e diz:
– E pra vocês que a vida inteira se divertiram às minhas custas, me achando uma louca desvairada, pra vocês que sempre tiveram uma palavra de derrota para mim, pra vocês que sempre falavam às minhas costas que era uma coitada que jamais seria alguém na vida, agradeço de forma especial. Sua descrença foi meu maior alimento e alavanca para o sucesso. CHUPA ESSA CAMBADA!!
E fazendo uma careta e um gesto obsceno com a mão, desce debaixo de uma plateia que se levanta para aplaudir não só a roteirista talentosa que se tornara mas também a mulher corajosa e resiliente que superou a tudo e todos.
– Santa tragédia Batman! Por que aconteceu isso com ela? – disse um estupefato menino prodígio
– Não tenho respostas para isso Robin – comentou de olhos baixos um Homem Morcego que parecia trazer todo o peso e sofrimento da Terra sobre si.
Olhavam tristemente o corpo de uma jovem que jazia inerte na rodovia mais movimentada da cidade de Gotham City. Aos poucos, foram se reunindo aos nossos super herois pessoas que paravam levados pela curiosidade em vê-los ali, no meio da rua e ao perceberem o ocorrido, se lamentavam.
– Pobre mocinha! Tão jovem!
– Pois é meu senhor. E sua família quando souber! Que tragédia meu Deus!
– Agh! Que horror!
– Tsc! Tsc! Jesus amado que cena horrível!
…mas que tanto esse povo fala, e fala, e fala! Não se pode mais nem dormir em paz? Ei! Que tumulto é esse em volta da minha cama?
…o que ac…aconteceu? Morreu? Quem morreu? O que dona? Ah! Olhar para o chão?
…nossa! É mesmo! Pobre garot…garot…Ei! Eu conheço essa garota! Sou eu!!? Mas…espera aí! Espera A-Í! Gente não pode ser! Eu tô aqui! Como posso estar aí no chão estatelada? Alguém pode me explicar isso? Batman? Robin? Alguém me explicaaaaaaaaaaaa?
– Venha Robin, vamos sair daqui. Não temos mais nada a fazer por essa pobre menina a não ser orar por ela. Vamos embora que o mundo do crime nos espera. As coisas não param por conta disso.
– Tem razão Batman! Santa tragédia! – e assim, nossos super herois se retiram de cena, entrando no batmóvel e sumindo na rodovia deixando para trás, uma garota confusa.
Plaft!!!!!
– Puta merda Ludy! Não sabe entrar no quarto dos outros sem bater a porra da porta? Não viu que estava dormindo?
– Credo Juliana! Que boca suja você tem logo cedo heim? Coisa feia menina falando palavrão. Se o papai ouve, você leva um tapa na boca! Desculpa, não fiz por mal. A porta escapou.
– Lu, só te desculpo porque você me arrancou de um baita pesadelo. Que sonho horrível eu tive! Sonhei que estava mortinha da Silva numa rodovia e que o Batman e o Robin estavam lá.
– Batman? Robin? Ai Ju você não tem jeito mesmo! Até em sonho é piradinha, piradinha! Vai! Levanta logo dessa cama e vem tomar o café da manhã. Vamos aproveitar esse dia lindo de sol e pegar um bronze. Vem! Tô te esperando!
Batman, Robin! Santo sonho senhor! – e rindo saiu do quarto deixando uma Juliana assonada entre o riso fácil e a estranheza de se lembrar morta no chão de uma rodovia de Gotham City.