Aos cuidados do meio-dia…

Banho tomado, óleo distribuído pelo corpo, por hora, uma seda. Ajeita os cabelos num penteado despenteado, para ele desarrumar. Gosta de observar o prazer surgir na dilatação da íris do olhar amado. Verdes com pinceladas de marrom. Olhos de gato. Tem por hábito, felinamente, se aproximar, subir nela, dominando a cena e sua atenção. Em resposta, ronrona e suspira quando o hálito quente se aproxima de sua nuca, causando arrepios ininterruptos. A música deles impera no recinto, enquanto a coreografia se inicia, tornando-se mais rápida. Urros roucos de ambos se misturam à sedutora rouquidão de Seal

Na cama corpos ardentes, sobre o aparador, velas aromáticas de cereja e avelã se consomem, espalhando um perfume sensual. Quando se encontram, é como se fosse a primeira vez. O tempo não arrefeceu a atração de ambos.

Há dezoito anos, encontro marcado. Sempre no meio do dia, dois ponteiros se superpõem. Lá fora, barulho de buzinas, gritaria das crianças na saída da escola, conversas das babás e mães, do pipoqueiro estourando o ouro que paga as contas do mês.

Na penumbra do quarto, esparramados no leito, ressonam suave. Ele, nu em pelo, ela, coberta apenas pelo lençol de rendas do prazer, jorro do homem que ama.

Esse texto faz parte da blogagem coletiva Blogvember. Participam comigo: Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins Imagem gratuita: Pexels

As memórias ficam suspensas dentro de mim

(Mariana Gouveia – As estações)

Sentada na penumbra do quarto, se entrega a um choro sem rédeas. Deixa fluir toda dor que por tanto tempo represou. Se fazer de forte para ganhar likes nas redes sociais não foi a melhor escolha para curar suas dores: a física e a emocional. A ira que se apoderou dela ao ser descartada feito um saco de batatas apodrecidas, lhe cegou. Sair insana dirigindo pela rodovia molhada. A chuva torrencial desabou, assim que ele fez as malas e partiu. Foi a coroação da sua dor.

Meses depois do acidente, está aprendendo a conviver com as sequelas que a acompanhará para sempre, segundo os médicos. Por mais que tente não pensar, turbilhões de questionamentos invadem sua mente: Por que não enxerguei seu afastamento? Por que ele deixou chegar a esse ponto? Por que ele foi tão agressivo chamando-me de balofa carentona? Por que foi cruel, se foi exatamente assim, que me conheceu? Por que disse ter vergonha de sair em público ao meu lado? Por que fui tão cega? Por quê, Por quê, por queee…

Mesmo após ter queimado o baú de fotos e todos os presentes que ganhou dele, os momentos que foram felizes ainda se mantém vivos. Fantasmas a lhe atormentar a alma. Gostaria de ter batido a cabeça e perdido a memória. Sofreria bem menos. Agora, as horas escoam lentamente. Nem amigos restaram. Ninguém gosta de tristeza, nem de doença, muito menos de aleijados. E ela, agora, é a somatória de tudo isso.

Uma sonolência a envolve. É a medicação fazendo efeito. Chama o enfermeiro de plantão e pede que a coloque na cama. Após tanta fisioterapia, ainda não adquiriu firmeza para se transferir da cadeira de rodas para a cama sozinha. Agradece o profissionalismo e o carinho discreto do enfermeiro. Sorri de olhos fechados, ao lembrar que pediu para ele ficar atento para quando sair alguma droga nova que alivie a dor física e apague as memórias que ainda insistem em viver de forma líquida dentro dela.

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Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins

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A carta foi escrita com os espinhos que ninguém plantou

(Mariana Gouveia – As estações)

Janelas cerradas transforma o ambiente do escritório em uma câmara abafada. Somente a luz fraca de uma luminária sobre o papel de carta decorado, ainda em branco. Mãos nervosas se mexem, limpando um pó inexistente do tampo da mesa. Inquieta, se levanta, ajeita o excesso de tecido que forma a saia de seu vestido. Percorre a sala olhando para todos aqueles volumes de livros que compõe o ambiente mais querido de sua casa. Sua cela de luxo, refúgio das frustrações, das frases não ditas, dos olhares não mais trocados, dos silêncios gritantes.

Volta a sentar, se apruma mantendo a postura ereta . Com delicadeza que lhe é peculiar, pega a caneta tinteiro e tenta iniciar o texto tanto tempo ensaiado. Para no meio do caminho e uma dor fina se espalha por seu peito preso. Arfa por liberdade. Cada célula de seu corpo clama por ela. Não nasceu para ser dama da sociedade, representar o tempo inteiro uma falsa felicidade, imagem e reflexo da hipocrisia que todos vivem. Ela deseja mais que aquilo. A rotina doméstica, a solidão de uma dona de casa não lhe cabe.

Abaixa o olhar e percebe que a caneta vasou tinta por sobre o papel formando uma poça escura. Perfeita abertura representando o desconhecido. Sorri diante da ideia recém-nascida. Abandona a caneta e a sala. Horas depois, retorna. Cabelos soltos, calça comprida de seu marido, camisa solta que realça os seios libertos. Nós pés, um par de botas. Nas mãos, duas maletas pequenas que são temporariamente repousadas no chão enquanto rabisca apressada, no mesmo papel manchado a frase:

Prezados, cansei! Favor não me procurar pois não mais encontrarão quem um dia fui..

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Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins

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BEDA – Brasa

Coração descompassado, olhos escapam mais uma vez para o relógio. Amaldiçoo os ponteiros que nunca chegam ao horário marcado. Anseio. Verifico se está tudo como planejado: mesa posta para dois, vinho na temperatura certa, assado pronto no forno, a salada com o molho especial, sua sobremesa preferida.

Retorno ao quarto. Observo de perto se a maquiagem está correta. Movo a boca vermelha sexy e mando um beijo para o reflexo no espelho. Analiso se o vestido valoriza minhas curvas. A cor escolhida me cai bem. Perfeito!

Ergo uma das pernas e pouso-a na beira da cama alisando para ver se a costura da meia está no lugar. Tenho belas pernas! Você se excita quando a giro no ar. Antevejo seus olhos brilhando de tesão, pronto para me pegar pelos cabelos do jeito que só você sabe fazer. Aliso a colcha de cetim. Sorrio pois sei que breve iremos desfazer.

Já ia me esquecendo! O perfume que você tanto gosta. Corro até o armário, pego o pequeno invólucro em formato de diamante, borrifo atrás das orelhas, entre os seios, atrás dos joelhos.

Coloco para tocar nosso CD, respiro fundo, sento no sofá. Chet Baker inunda o apartamento com seu solo de trompete. Logo mais a campainha tocará como sempre: dois toques rápidos. Transbordo de excitação.

Você é minha droga contra tudo o que esse mundo me causa de dor. Ao seu lado consigo esquecer a rotina desgastante, cotidiano sem graça. Sua presença amortece a dura realidade. No dia a dia, tenho de ser implacável, sem demonstrar emoção nem fraquezas. Ser delegada não é fácil. Só você para despir a vestimenta da mulher assexuada e deixar à mostra, a fêmea plena que sou. Em seus braços, torno-me moldável. Sigo seus instintos e transformo-me no que desejar. Saio renovada! Desvio mais uma vez meus olhos impacientes para os ponteiros do relógio. Você é sempre pontual. Um arrepio por todo corpo anuncia que sobe os andares que nos separa. Não vejo a hora de passar a noite inteira no seu corpo. O melhor asfalto para eu percorrer milhas de prazer. A campainha toca duas vezes. Levanto ajeitando o vestido, respiro fundo e abro.

A porta. A primeira coisa a visualizar são seus olhos felinos que percorrem meu corpo. Numa piscada de aprovação, me agarra ali mesmo empurra a porta com um dos pés e apoia meu corpo na parede fria — que em pouco tempo — irá esquentar.

– Amor, o jantar. Está tudo pronto…

Shuuuuh! O assado pode esperar. Quero primeiro saciar essa fome. Mais tarde saboreamos o assado. Agora, quero degustar você!

Esse texto faz parte da blogagem coletiva BEDA Blog Every Day August

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Claudia Leonardi – Darlene Regina – Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Ortega Nuñes – Suzana Martins

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Ritual

Xícara devidamente posta, cookies de especiarias, descansam num pote de vidro.Toalha alisada, aroma cafeinado envolvendo o ambiente ao som de Sarah Vaughan. Cortinas cerradas, impedem a bruta realidade de entrar e estragar a energia trabalhada: paz.

No aparador, uma vela de jasmim acesa, complementa e perfuma a cenografia montada. Na solidão do apartamento, a mulher se veste sem pressa, mirando o espelho. Sorri ao ver o reflexo que a agrada.

Pega os apetrechos e segue para a sala. Liga seu All in one branco, acessa a aula pelo Youtube, desdobra o tapete de yoga, posiciona em lótus, fecha os olhos e agora – com trilha sonora de Kitaro – inicia a meditação diária.

Dentro de uma hora, “ele” estará online para mais uma relação virtual. Suspira profundamente esboçando tímido sorriso.

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Fado moderno

Ao som do fado, na voz de Mariza, Maria da Soledad passeia os olhos pela vegetação ao redor da Fonte dos Amores. Após ouvir as inúmeras lendas a respeito do amor de D.Pedro e Inês de Castro, não poderia partir de Coimbra sem visitar o local.

A professora de educação infantil de férias em terras lusitanas, pensativa, absorve a atmosfera medieval da fonte.

No dia seguinte, seguiria com as amigas, para a cidade de Porto, depois Guimarães e Braga, retornando por fim, à Lisboa para embarcarem de volta a São Paulo.

Romântica, fora capturada por essa linda e triste história de amor que ganhou o mundo. Desconfiava que jamais seria amada dessa forma. Hoje, os relacionamentos são tão voláteis. Se Pedro e Inês tivessem vivido em nossos tempos, curtiriam apenas um amor de verão. Ao término da estação, cada um seguiria seus destinos guardando por breve tempo, lembranças que se esmaeceriam até sumir e nem lembrarem da fisionomia um do outro.

Ela mesma quase não lembrava detalhes do rosto de Gustavo, seu último grande amor, que partiu para a Austrália, no inverno passado. Chorou, teve insônia, perdeu o apetite por algumas semanas. Envolvida pela correria do término do semestre e os inúmeros relatórios a entregar para sua supervisora, foi esquecendo até quase não pensar mais nele.

Posicionou-se ao lado da fonte, tirou umas selfies esboçando falsa alegria. Aproveitou para registrar mais outras fotos, na escadaria da Quinta das Lágrimas, hoje um luxuoso hotel. Partiu para encontrar suas companheiras de viagem, que haviam disparado mensagens cobrando sua presença.

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No silêncio da casa

Duas e trinta da manhã. É domingo, ouço o silêncio que impera na casa. Olhos abertos na escuridão, espero paciente a vinda do sono. Enquanto aguardo, relembro momentos íntimos que ficaram no passado.

Recordo o primeiro encontro, após dois anos de conversas que adentraram a madrugada. Preparo gostoso, onde pudemos nos conhecer, nos desenhar, nos imaginar. A distância que nos separava, foi ingrediente importante para apimentar o desejo de unir corpos e saciar a fome um do outro.

Enquanto não o realizávamos, costurávamos a relação com muito bate-papo sobre literatura, cinema, teatro e música. Ah… de repente, bateu uma saudade de minha ingenuidade. Éramos tão jovens, tão cheios de sonhos, esperanças…tesão.

A lembrança de sua implicância por eu ser fã do Oswaldo Montenegro e do Jorge Vercillo… Lembrar, me fez rir alto.

E quando você me apresentou a canção Redondo Vocábulo, na voz da cantora portuguesa Cristina Branco? Fiquei seduzida por essa música por um bom tempo. Até hoje ouço seus fados.

A expectativa de nosso encontro foi cercado por ansiedade, frio no estômago, noites insones. Até que te vi – pela primeira vez – no saguão de desembarque. Saindo com olhos de menino assustado, me procurando, e eu ao longe, te observava roubando momentos que queria registrar somente para mim.

De lá pra cá, tantas aventuras, encontros, risos, brigas, reconciliações, novos encontros, mais desencontros…

Hiatos, onde cada um foi em busca de suas aspirações, separados pelo espaço geográfico e dificuldades em expressar os próprios sentimentos.

É… somos animais complicados não é mesmo? Te disse tantas imprecações, você devolveu arrancando lágrimas. Quantas vezes cansei os ouvidos de minha psicanalista, praguejando sua pessoa. Coitada, talvez seja por isso que me deu alta. Com certeza achou que era um caso perdido.

A casa hoje me parece tão grande e vazia. Ouço ao longe, a buzina estridente do segurança que faz a ronda noturna em sua velha moto.

O ronco e gemido assustadores do motor da geladeira são minha companhia.

Escuridão e silêncio a me envolver. Três e vinte e sete da manhã, o cursor do smartphone clareia o breu do quarto. Reluto em olhar, afinal, quem manda mensagem a essa hora da madrugada? Novamente o clarão e a curiosidade tomam conta de mim. Abro os olhos, que embaçados, enxergam a mensagem vinda de longe

Oi, está acordada também? Faz tempo…

Vamos conversar?

Me finjo de morta. Adormeço, jogando a pergunta à você, Destino Safado: o que apronta para mim a essa altura da vida hein?

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Depósito EH

Uma vida inteira de realizações para acabar aqui, nesse depósito de entulho humano.

Está vendo aquele lá, próximo à janela? É o Josué. Deve ter toda idade do mundo e, segundo dona Marcelina, está aqui há mais de vinte anos. Dizem que já enterrou muitos! Percebe como ele fica? O tempo todo olhando pela janela com os olhos embaçados pelo tempo, mas, ainda carrega uma fagulha de esperança de que venham visitá-lo. Mascando o tempo todo com sua boca murcha, algo imaginário. Ou talvez seja apenas um tique nervoso. Quase não fala.

Olha só dona Leopoldina, aquela ali, sentada na poltrona verde. Senhora que ainda mantém certa áurea de dignidade e sofisticação que teve no passado. Cabelos arrumados imaculadamente num coque preso aos seus seculares grampos de osso. Pele fina, de um branco quase translúcido. Olhos azuis, pequeninos e dóceis. Mãos finas de quem nunca trabalhou no pesado. Trêmulas, devido ao Parkinson, há muito deixou de lado seu hobby favorito: bordar e pintar. Já não consegue dominar o pincel nem a agulha com firmeza. Da mesma forma que seu pescoço, que não para de mexer também. Há momentos em que ela inicia um canto lamurioso em sua língua de origem. Me disseram que ela é polonesa. Não sei dizer se é verdade, afinal, todos aqui falam de um passado muitas vezes inventado por falta da memória. Então, simplesmente cria-se uma nova história. Melhor que nada!

Aquele ali sentado à mesa lendo… o que mesmo? Peraí, vou chegar mais perto. Meus olhos já não são mais os mesmos… Ah! Lendo Olavo Bilac, Alma inquieta – expremendo os olhos consigo ler por cima dos seus ombros:

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
– Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava…

E, inquieta ando eu, que sei que meu filho jamais aparecerá com meu neto para uma visita. Simples assim, uma vida entregue na labuta diária para criar sozinha um filho e, ao chegar à velhice, tomaram minha casa, apossaram de minha aposentadoria e, numa simulação de viagem, desovaram esse monte de carne flácida e ossos fragilizados, nesse depósito. Só aguardando minha vez de receber o saco – roupa luxo/lixo – para a última viagem de ida, sem volta.

Não posso reclamar. Não é ruim de todo mas, perder o contato com tudo o que fez parte de um cotidiano de anos, não conversar mais com amigos nem saber sobre suas vidas, isso sim, entristece. Vive-se num vácuo, esperando a hora de sermos despachados para o universo.

O trecho do poema de Bilac ficou em minha retina cansada e opaca. Depois vou ver se o…Como é mesmo o nome desse velhinho? Ih, esqueci! Bom, se não esquecer também, depois pego para ler o resto do poema.

Por hora, sento meu quadril pesado e cansado na poltrona, de frente para a janela – elo com o exterior -, chove suavemente. Embalada por essa paisagem outonal, capricho no chachecol que faço, o inverno parece que virá forte esse ano. Minhas juntas dão o recado do que virá. Isso, se eu sobreviver até a próxima estação.

Esse texto faz parte do b.e.d.a — blog every day august.

Participam Adriana Aneli — Claudia Leonardi — Darlene Regina – Lunna Guedes – Mariana Gouveia — Obdulio Nuñes Ortega

Imagem: Pixabay

Beda 9 – Queijos e beijos

Saboreando o queijo de minas, lambendo os lábios, lembrei-me de você.

Recordei o sabor de seus beijos. Parecidos: o queijo e seus beijos. Ambos, salgados na medida certa, rigidez perfeita que se moldava aos meus lábios, se perdiam e se misturavam à saliva. Ambos, proporcionavam prazer, acalmando minha insaciável fome. 

Mastigo, estalo a boca, engulo. Termino esse pequeno prazer, saboreando uma xícara de café. Exatamente como fazíamos ao término do gozo mútuo. Após o descanso, seguíamos para a cozinha e lá, entre conversas, troca de mais beijos e afagos, saboreávamos nosso cafezinho. Complemento de nossos prazeres.

Você partiu. Parte do prazer, se esvaiu. O amargo de sua dispensa foi mais ácido que o pó extra-forte do café que bebíamos. Restou o velho ritual. Sobrevivo, comendo lascas do queijo mineiro, acompanhado de café amargo. 

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Imagens: acervo pessoal

Beda 5 – A sina de ser personagem Almodóvar

A vida de Carmen Maura iniciou conturbada. Sua jovem existência carregava na bagagem, muitas experiências negativas.

Conviveu com a acidez de uma vida avinagrada, pelo porre de vinho barato – ao lado de um Don Juan da periferia -, que amava filmes de Almodóvar e declamava poemas de Neruda. Apesar de boêmio, assumiu a paternidade. Daí, seu nome, que carregava como fardo. Voz aveludada e poemas não pagavam contas. A vida familiar perdeu o ritmo e a métrica.

Aturar o amargor de sua mãe, dia após dia, não foi fácil. Desenvolveu dispositivos para sobreviver. Em pouco tempo, fugiu dos maus tratos e mudou sua identidade.Trabalhou de babá, faxineira, lavou muita louça em botecos de beira de estrada até que conheceu Bartô, numa esquina duvidosa.

Bartô – misto de Dietrisch com Dercy Gonçalves – um travesti gasto pelo tempo, que mantinha o coração fortalecido pela crença no ser humano. Ajudava os mais necessitados. Uma verdadeira alma materna.

Vivendo sob o  mesmo teto, foi rebatizada como Josefina Beiker. Teve seus estudos financiados pela fada madrinha. Se formou em administração, passando a cuidar dos negócios da “Família”, ampliando a área de atuação e distribuindo cestas básicas para a população carente, que não para de crescer. 

Madrugada fria. Dominada por insônia, Josefina ligou a TV. Enquanto passava pelos canais, se deparou com o filme Tudo sobre minha mãe. Mais uma vez, Almodóvar regressou do passado, insistindo em libertar fantasmas. Meneando a cabeça, Josefina desligou a televisão, levantou dirigindo-se à cozinha. Afogou seus espectros, numa cachaça trazida de Paraty.

 

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