Acordei com você em meu pensamento. Pensei: Será que sonhei contigo? Será que estive em espírito ao seu lado?
Não sei. Só sei que retornei a essa minha realidade, impregnada de você.
Levantei, fui para a cozinha fazer meu café para despertar de vez minhas células e você continuou a me seguir. Não coloquei resistência. Deixei você chegar, se aproximar, sentar ao meu lado à mesa e fazer o desjejum comigo.
Faz tempo não é mesmo? Sorrindo, lembrei das inúmeras vezes em que te provoquei. De pequena, confesso, era minha distração preferida. Nutria um prazer indescritível ao te tirar do sério comigo. Ao final das contas, apanhava. Mas apanhava de gosto. Será que sou masoquista?
Nada disso. No fundo, em minha mente infantil, sabia que mesmo numa atitude mais agressiva, estava lá, o toque de seu amor. Não guardei mágoas de você.
Do outro lado da mesa, observo seus olhos embaçarem. Desviam de mim mirando os prédios através da janela.
Bebericando mais um pouco do café, recordo da vez em que – solitário tomando conta de três crianças pequenas -, preocupado com a esposa hospitalizada, levou-nos ao parque de diversões. Fiquei tão feliz! Tão feliz, que essa lembrança ganhou matiz mais colorido e sempre se destaca quando abro as gavetas da memória. Não conseguia compreender porque minha irmã mais velha só chorava e meu irmãozinho mais novo, quase um bebê, chamava por minha mãe.
Também sentia falta dela mas, aquele momento era único para mim afinal, era tão raro você sair conosco para se divertir. Trabalhar para trazer o pão de cada dia para casa, impedia de você ter mais contato com a gente.
Recordei do dia em que te fiz chorar. Te provoquei o dia todo. Estava com a “macaca” e de alguma forma, precisava chamar sua atenção. Você quis me pegar, bater. Corri para a casa da vovó, você foi atrás. Vovó ponderou, orientou você a ter paciência comigo e eu, por trás dela, fazia caretas e micagens para você. É, eu sei. Fui cruel. Admito.
De noitinha, após o jantar, mandou todos se deitarem. Menos eu. Até mamãe saiu de perto. Olhando profundamente para mim, perguntou se estava contente com tudo o que havia aprontado durante o dia. Mantive o olhar firme em você. Não respondi. Apenas continuei a olhar. Sem piscar.
Apanhei. Uma. Duas. Três…Perdi a conta. mantive o olhar fixo e não derramei uma única lágrima. Em compensação, você saiu. Somente vinte e tantos anos depois de sua partida, soube por mamãe que você chorou a noite toda por ter me batido. Saber disso me doeu mais que as cintadas que levei nas pernas. Sangrou meu coração.
Na adolescência, tornei-me mais rebelde. Entrava e saía de casa e mal te olhava. Gótica que fui, vesti meu corpo, meus olhos e minha alma de preto.
Diante dessas lembranças, você levanta e vai para junto da janela não permitindo que veja sua expressão. Mas sei qual é.
Ironia das ironias, somente em sua doença, me aproximei desarmada e por um tempo, nos tornamos grandes amigos compartilhando piadas, risos, lágrimas, cerceadas por silêncios que diziam muito.
Você partiu muito cedo. E por muito tempo, ao final da tarde ainda ouvia seu assovio alegre de quando voltava para casa.
O que mais sinto, é não ter fotos ao seu lado, tipo um selfie, de nós dois rindo de algo. Que pena afinal, hoje, gostaria demais de estar ao seu lado rindo de todas as besteiras e palhaçadas que fiz em criança. Ah, fuçando por aqui, encontrei algumas fotos que “roubei” da caixa da mamãe. Ela que me perdoe mas queria ter você aqui comigo, de alguma forma.
Distraída que fiquei com as lembranças e esse texto e as lágrimas que me embaçam enquanto digito, dou conta que me encontro novamente só.
Você se foi sorrateiro, silencioso, da mesma maneira que chegou.
Um esboço de sorriso melancólico se desenha em meu rosto, hoje maduro, repleto de manchas senis e rugas. Obrigada pai, pela visita, por esse encontro como forma de reatar, aparar as arestas do passado e reforçar nossos laços de amor incondicional. Volto a dizer: você foi muito cedo.
Vê se da próxima vez fica para o almoço.