B.E.D.A. – Quero esse tempo de volta

O notíciário da TV informa que numa UPA no bairro Pampulha, em Minas Gerais, acumulou corpos, vítimas da Covid-19, por falta de espaço. Cenas tristes de se ver. Estamos em guerra.

Os cemitérios abrindo covas em linha de produção, famílias impossibilitadas de uma despedida de seus entes queridos.

Como se não bastasse tanta desgraça, precisamos lidar com o número de pessoas em condições de miséria total sem emprego, sem um teto, sem um prato de comida, sem proteção, sem dignidade.

Nos hospitais, médicos, enfermeiros e demais profissionais que fazem essa instituição funcionar, encontram-se exaustos, famintos por um plantão mais ameno. Saudades das madrugadas onde no máximo, surgia um caso de coma alcoólico ou vítimas de atropelamento.

Vida chata! Esqueceram o que é simplicidade.

Bons tempos em que as coisas que me preocupavam era matar pulgas, evitar pegar piolhos e rezar para que minha mãe não visse que novamente arranquei o tampão do dedão do pé, brincando de rolimã.

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Adriana AneliAlê HelgaClaudia Leonardi Darlene ReginaLunna GuedesObdulio Ortega

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B.E.D.A. – Enquanto a escrita não flui

Acordei e optei por ficar reclusa. Não por estar depressiva mas, por necessidade de ficar comigo mesma. Gosto de  minha companhia, gosto de pensar. Sobre tudo e todos. Sobre mim.

A rotina, muitas vezes, nos engole e seguimos ligados no piloto automático. Agimos, seguindo com nossos compromissos terrenos, deixando para depois refletir sobre nosso eu interior e o que fazemos com ele. Sou adepta de alguns momentos de solidão. Apesar de necessitar de silêncio, nesse exato momento enquanto tento escrever, ouço Paul McCartney, num show ao vivo.

Let it be… Essa canção tem tudo a ver com esse meu momento. Olho pela janela e observo uma cidade aparentemente adormecida. Em tons azulados mesclado de algodão, num flash único, capto uma ilusão: uma metrópole calma, silenciosa, segura. Sento para escrever e continuo olhando para o nada. Ou talvez, para tudo ao mesmo tempo. Trago uma mente inquieta. Sou péssima em focar. As horas escoam…

Levanto para preparar um café. A inquietação pede um “pretinho cheiroso”. Aproveito para ligar o forno e assar uns pães de queijo. Adoro! Mais cedo, logo após o almoço, aproveitei umas bananas maduras e fiz doce. Enquanto mexia a colher de pau na panela borbulhante, lembrei da cozinha de minha avó Maria que estava sempre em movimentação. Amava aquela usina de coisas boas! Creio que herdei esse prazer dela.

Sempre que preciso analisar e resolver algum problema, é para lá que me dirijo. Entre panelas, ingredientes e fogão aquecido, vou preparando algo gostoso, enquanto a mente trabalha aquilo que devo resolver. Quando me sinto triste, também é lá, na cozinha que encontro conforto.

Meus pensamentos são interrompidos pelo som ensurdecedor de um porta batendo. O infeliz do vizinho sempre faz isso! Praguejo mas, logo cai no esquecimento.

Retorno para a tela vazia que desejo preencher com uma história mas, ainda não sei qual. Tenho um desejo estranho que me habita. Uma vontade de publicar algo de valor. Ao mesmo tempo, sei que nada do que escrevo será valorizado pelos “entendidos”. Afinal, escrevo sobre mim, minhas aspirações, minhas neuras e, vamos combinar, não sou ninguém nesse oceano de anônimos. Mesmo assim, escrevo.

O pão de queijo se manifesta num aroma que me faz parar de escrever.

Desvio meus pensamentos e desembarco em Paris. A Paris que tanto anseio um dia conhecer . Passeio por suas ruas,  através do livro que estou quase no final: A livraria mágica de Paris, da escritora alemã Nina George, traduzido magnificamente pelo competente e querido Petê Rissatti. Bela e comovente história!

Olho mais uma vez pela janela e observo a noite caindo feito manto. Amo essa cidade! Aqui de dentro do meu apartamento, aquecida pelo café e pão de queijo, ouço agora, uma cantora de jazz que descobri por acaso: Inger Marie Gundersen. Bela voz, linda interpretação. Sinto-me envolvida por um abraço aquecido e invisível nesse meu momento de reflexão e escrita.

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Ser Bibliotecária

No silêncio da biblioteca, um par de olhos percorre estantes, passeia por títulos e, busca algo que nem sabe o que é…

Tarde preguiçosa de outono, um jovem senhor caminha pelos corredores, observa sinalizações, móveis, estantes, iluminação. Toca as capas de livros, esboça um sorriso no olhar.

Sai, da mesma forma que entrou: em silêncio. Porém, algo aconteceu pois sorri abertamente e – pela primeira vez -, enxerga a bibliotecária que o tempo todo esteve atenta. Diz um quase inaudível e tímido “Boa tarde”.

Satisfeita, a bibliotecária olha para o acervo, seus companheiros de trabalho e pensa:

“Mais um usuário feliz com o que encontrou. Esse, tenho certeza que voltará muitas e muitas vezes! Acompanhei de perto sua transformação.”

A matéria prima de um profissional de biblioteca não é apenas emprestar e devolver livros. Vai além. Como as sacerdotisas celtas, temos a missão de transformar leitores em seres humanos melhores. E isso, fazemos através da escolha dos livros para exposição e sugestão de leituras, pelo nosso olhar sempre atento, conciliador, sedutor e claro, no sorriso constante. Não aquele sorriso Colgate de propaganda de TV e sim, o sorriso que vem da alma e se espelha no rosto da(o) profissional que abraça a profissão como sacerdócio e que acredita piamente que sua profissão é muito mais que seguir as tabelas PHAs, CDD e CDUs.

Quem segue esse caminho torna-se apenas um tecnólogo competente mas frio. Nada contra afinal, precisamos também desse perfil profissional. Contudo, o usuário de uma biblioteca carece de alguém mais humanizado à frente do atendimento.

Numa biblioteca somos vários profissionais reunidos num só: padre, psicólogo, professor, médico da alma, orientador. Ouvimos muitas vezes, o que ninguém ouve e guardamos segredo pois sabemos o quanto nossa atenção e confiança é importante para o leitor que muitas vezes, sentindo-se desorientado, nos procura.

E com essa confiança adquirida, ganhamos o carinho, o respeito e o amor do usuário para o resto da vida. Sei disso por experiência própria. Ganhei usuários pequeninos, os vi crescer, orientei-os em várias questões. Hoje, formados, adultos e com família constituída, encontro-os e sou sempre recebida com um sorriso e um brilho nos olhos de reconhecimento e respeito pela “tia da biblioteca” que tanto os ajudou.

É quando me certifico que escolhi a profissão certa!

Marulho

Navegar é preciso

viver não é preciso, dizia Pessoa

O que ele não soube, é o quanto amei navegar em seu mar

Corpo rígido a me levar em ondas intensas

A derramar em meu porto, seu prazer

Levando-me a esquecer a náusea de viver

em terra firme

Mergulho no silêncio

O silêncio é tão bom. No mundo  de hoje tomado por vasta poluição sonora, notar que em alguns raríssimos momentos, a cidade silencia, é prazeroso demais! E claro, te leva a reflexão.

Sou dessas. Prefiro ouvir do que falar. Observar do que atuar. Talvez porque meu mundo interior seja muito rico e perceba que a realidade anda cada dia mais pobre e sem graça. Observo as pessoas. Ah… as pessoas!

Cada dia mais perdidas. Cada dia mais inseguras. Cada dia mais imaturas.

Ninguém deseja amadurecer nessa nossa contemporaneidade. Todos sofrem da síndrome de Peter Pan. Viralizou mais que a COVID 19.

E eu aqui, da minha poltrona, bocejando de tédio em constatar que nada, absolutamente nada, vai mudar.

E falando em bocejo, que vontade de tomar uma taça de vinho. Meu estoque acabou e a preguiça em sair para comprar é infinitamente maior que o desejo de sentir o aroma das uvas fermentadas em minhas mucosas da boca. Dominada por tamanha vontade em não sair de casa, pesquisei adegas que entregam a domicílio. Animada, aos poucos minha indignação se avolumou a ponto de quase atiçar longe meu note. Que absurdo!

As pessoas exploram demais aqueles que desejam comodidade. Fico sem meu vinho. Caso amanhã desperte mais animada para sair, desço e compro uma garrafa aqui mesmo no supermercado da rua. Essa história de Sommelier é muita viadagem. Para mim, o que importa é o vinho agradar meu paladar e ponto. Sem essa de rituais, acompanhado de água para purificar o paladar para uma próxima taça. Aff!

Mas por que vim parar no vinho minha gente? Comecei a falar sobre o silêncio da cidade e…

Esquece. O vizinho do andar de cima voltou a usar a furadeira, o semáforo abriu e ônibus, motos e outros motores envenenados descem a rua e a britadeira que trabalha vinte e quatro horas sem parar arrebentando o calçamento de toda vizinhança voltou com força total. Acabou o horário de descanso dos trabalhadores. Com licença que vou colocar de volta meu protetor auricular.

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O divã não é confortável mas, fundamental

Desde que nascemos, somos colocados em “formas”, através de convenções que moldam a família e a comunidade ao qual pertencemos. É nosso primeiro grilhão.

Ao longo de nossa existência, muitas outras surgirão. Na maioria das vezes, nem percebemos elas a nos prender e impedir que alcemos voos.

O conforto que representam nos cegam diante da verdadeira razão. Tais grilhões utilizam do ilusionismo para nos manter cativos. E assim a vida passa e chegamos num ponto em que sentimos sufocar e nem sabemos o porquê. É onde esse “sufocar” se manifesta no físico através de diversas fobias ou, através de AVCs e infarto.

Pode parecer exagero de minha parte mas tudo tem relação.

Na maioria das vezes, precisamos recorrer à terapia para descobrir o que causa sofrimento e paralisia diante das situações.

Tive uma passagem em minha vida: passei a tropeçar e cair a todo momento. Era constrangedor além de dolorido. Passava por situações incômodas e sentia carregar o planeta nas costas. Em uma semana, cai dez vezes. Pode isso? Foi quando uma conhecida, terapeuta corporal, me procurou e esclareceu que algumas emoções negativas refletem em nossa saúde física. Essa conversa abriu meus olhos para resolver as inquietações que trazia sufocadas em meu inconsciente.

Já frequentei divã e essa experiência me ajudou a reconhecer e resolver algumas questões que incomodavam mas não sabia como resolver. Já de antemão, digo que não é fácil. Algumas vezes quis sumir e nunca mais aparecer no consultório. No entanto, valeu a persistência em encarar meus demônios. Ainda não eliminei todos. Sobrou alguns mais difíceis de abandonar a moradia.

Penso que assim que der, retorne à ele afinal, como seres em constante evolução, nada mais natural que se busque ajuda quando não conseguimos resolver sozinhos. E nunca, nunca é tarde para tentar melhorar. O ser humano não nasceu para sofrer.

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Programação alterada

Tarde de sábado. Sinto como se estivesse estirada em uma grelha de churrasco. A carne a tostar – no caso, sou eu. Esse calor anormal que invadiu a cidade de São Paulo em pleno final de inverno está me prostrando.

Programei minha manhã para dar umas voltas pelas ruas em torno de minha residência. Sair um pouco do casulo que se transformou meu apartamento. Planos: ir até a farmácia de produtos naturais comprar geleia real e conhecer a feira livre, na rua paralela a minha.

Envelhecer é isso! Outras coisas passam a ser prioridades e aguçar nossa curiosidade. Quando que em minha juventude, conhecer novas feiras dos bairros seria programa matutino do sábado?

E a tal da geleia real? De nova pensaria em correr atrás e consumir essa gororoba das abelhas, em jejum pela manhã para fortalecer o sistema imunológico? E esse palavrão então? Na mocidade (hum, isso também é frase dos mais velhos), minha preocupação era tomar coca-cola, posar de fumante e paquerar. Muito!! Era tão bom paquerar! Nem sei mais como se faz. Esqueci.

Esquecimento também faz parte dessa nova fase. Para quem se gabava em ter uma memória de elefante, ultimamente esqueço até mesmo de escovar os cabelos. Depilar então, ficou no passado de mulher que está com tudo em dia. Meu empoderamento hoje é manter a saúde. E olha que a cada dia que passa, essa tarefa é das mais difíceis. Diria, hercúlea!

Agitação, aglomeração, faziam minha alegria na adolescência. Ver gente, estar com gente, encostar em gente! Era tudo de bom! Hoje, quero mais é distanciamento de gente. Reunião, só se for pelo Google meet, Zoom e afins. Encostar em mim, só se for álcool em gel. Bafo no cangote, somente do ventilador me refrescando as ondas de calor da menopausa.

E a essa altura da vida, passei a gostar até mesmo de caldo de pés de galinha. Uma iguaria dos Deuses! Além de saboroso, ajuda nas dores das tais “juntas” que enferrujam com o passar do tempo. Ah…Maldito tempo, que passa numa velocidade….ZÁS!!! Passou e esqueci o que ia complementar. Esquece.

Resumo da ópera ( que antigamente dizia ser programa de veio): envelhecer é simplesmente alterar a programação. Mas quer saber? Bendito seja os que conseguem chegar à terceira idade pois viver, mesmo que de forma limitada, ainda é o melhor programa!

Rota improvisada

Saí. Fugi do metro quadrado que me ilude fazendo crer que é seguro. Percorri ruas que há muito não via. Contabilizei inúmeros imóveis fechados, comércios que vibravam de movimentação, hoje, com suas portas cerradas e letreiros apagados.

Fui abusada. Sentei numa mesa na calçada e me permiti almoçar culinária japonesa. Um luxo em tempos pandemônicos.

Não contente, percorri a avenida mais icônica da cidade de São Paulo e – mais uma vez abusada, brindei a mim mesma com uma bela xícara de café que saboreei sem pressa, sentada numa confortável poltrona, apreciando a movimentação de máscaras anônimas a serpentear pela calçada.

Uma vez na rua, resgatei o prazer de caminhar sem roteiro, nem planejamento. Desci a Frei Caneca, desviando de pedintes, trabalhadores, jovens sarados percorrendo a rua numa caminhada forçada, bebericando seus isotônicos.

O clima ajudou fazendo surgir um sol que de tão claro, chegava a cegar os mais sensíveis. De mãos em riste protegendo os olhos, desci devagar, registrando sons de buzina, motor, vozes, britadeiras.

Registrei a vida seguindo em frente, desviando e dando uma banana para essa praga que assolou o mundo no ano de 2020.

Caminhei até chegar à Praça Roosevelt e me deixei misturar aos jovens de skate, bike, aos inúmeros casais ou aos que – solitários pelos cantos, puxavam fumo com suas máscaras abaixo do queixo, pouco se importando se estão colocando em risco suas vidas.

Quase chegando em meu endereço, decidi dar mais uma volta numa tentativa talvez inconsciente, protelando o retorno ao casulo. Percorri a Praça da República onde uma multidão mantém a normalidade de sempre na região.

Entrei numa quitanda e observando frutas e legumes frescos, não resisti e fiz uma pequena feira. Escolhi abobrinhas que reluzem num verde claro mesclado. Já antevejo a iguaria que farei com ela. Separei também um cacho de bananas nanica. Uma das frutas preferidas desde criança. Escolhi quatro laranjas Bahia importada. Lindas, enormes, caras. Contudo, mereço esse agrado. Quase finalizando minha pequena compra, eis que vejo uma bandeja com cachos de uva Vitória, sem sementes.

De posse de minhas sacolas, cheguei ao meu destino. Sufocada pela máscara já úmida, suando pois saí de casa pela manhã com casaco e blusa de gola rolê não imaginando que a temperatura chegaria aos 30 graus no meia da tarde.

Após um banho longo, um creme hidratante espalhado por todo o corpo que me proporcionou um gostoso relaxamento, desabei no sofá que já registrou meu formato e me envolve como se fosse abraço de vó.

Adormeci sentindo que ainda podemos ser felizes com muito pouco.

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Visita dominical

Acordei com você em meu pensamento. Pensei: Será que sonhei contigo? Será que estive em espírito ao seu lado?

Não sei. Só sei que retornei a essa minha realidade, impregnada de você.

Levantei, fui para a cozinha fazer meu café para despertar de vez minhas células e você continuou a me seguir. Não coloquei resistência. Deixei você chegar, se aproximar, sentar ao meu lado à mesa e fazer o desjejum comigo.

Faz tempo não é mesmo? Sorrindo, lembrei das inúmeras vezes em que te provoquei. De pequena, confesso, era minha distração preferida. Nutria um prazer indescritível ao te tirar do sério comigo. Ao final das contas, apanhava. Mas apanhava de gosto. Será que sou masoquista?

Nada disso. No fundo, em minha mente infantil, sabia que mesmo numa atitude mais agressiva, estava lá, o toque de seu amor. Não guardei mágoas de você.

Do outro lado da mesa, observo seus olhos embaçarem. Desviam de mim mirando os prédios através da janela.

Bebericando mais um pouco do café, recordo da vez em que – solitário tomando conta de três crianças pequenas -, preocupado com a esposa hospitalizada, levou-nos ao parque de diversões. Fiquei tão feliz! Tão feliz, que essa lembrança ganhou matiz mais colorido e sempre se destaca quando abro as gavetas da memória. Não conseguia compreender porque minha irmã mais velha só chorava e meu irmãozinho mais novo, quase um bebê, chamava por minha mãe.

Também sentia falta dela mas, aquele momento era único para mim afinal, era tão raro você sair conosco para se divertir. Trabalhar para trazer o pão de cada dia para casa, impedia de você ter mais contato com a gente.

Recordei do dia em que te fiz chorar. Te provoquei o dia todo. Estava com a “macaca” e de alguma forma, precisava chamar sua atenção. Você quis me pegar, bater. Corri para a casa da vovó, você foi atrás. Vovó ponderou, orientou você a ter paciência comigo e eu, por trás dela, fazia caretas e micagens para você. É, eu sei. Fui cruel. Admito.

De noitinha, após o jantar, mandou todos se deitarem. Menos eu. Até mamãe saiu de perto. Olhando profundamente para mim, perguntou se estava contente com tudo o que havia aprontado durante o dia. Mantive o olhar firme em você. Não respondi. Apenas continuei a olhar. Sem piscar.

Apanhei. Uma. Duas. Três…Perdi a conta. mantive o olhar fixo e não derramei uma única lágrima. Em compensação, você saiu. Somente vinte e tantos anos depois de sua partida, soube por mamãe que você chorou a noite toda por ter me batido. Saber disso me doeu mais que as cintadas que levei nas pernas. Sangrou meu coração.

Na adolescência, tornei-me mais rebelde. Entrava e saía de casa e mal te olhava. Gótica que fui, vesti meu corpo, meus olhos e minha alma de preto.

Diante dessas lembranças, você levanta e vai para junto da janela não permitindo que veja sua expressão. Mas sei qual é.

Ironia das ironias, somente em sua doença, me aproximei desarmada e por um tempo, nos tornamos grandes amigos compartilhando piadas, risos, lágrimas, cerceadas por silêncios que diziam muito.

Você partiu muito cedo. E por muito tempo, ao final da tarde ainda ouvia seu assovio alegre de quando voltava para casa.

O que mais sinto, é não ter fotos ao seu lado, tipo um selfie, de nós dois rindo de algo. Que pena afinal, hoje, gostaria demais de estar ao seu lado rindo de todas as besteiras e palhaçadas que fiz em criança. Ah, fuçando por aqui, encontrei algumas fotos que “roubei” da caixa da mamãe. Ela que me perdoe mas queria ter você aqui comigo, de alguma forma.

Distraída que fiquei com as lembranças e esse texto e as lágrimas que me embaçam enquanto digito, dou conta que me encontro novamente só.

Você se foi sorrateiro, silencioso, da mesma maneira que chegou.

Um esboço de sorriso melancólico se desenha em meu rosto, hoje maduro, repleto de manchas senis e rugas. Obrigada pai, pela visita, por esse encontro como forma de reatar, aparar as arestas do passado e reforçar nossos laços de amor incondicional. Volto a dizer: você foi muito cedo.

Vê se da próxima vez fica para o almoço.

O “barato” de se viver

Ao me deparar com a possibilidade da finitude ao qual todos estamos fadados, passei algumas noites refletindo: se souber que tenho apenas alguns dias de vida ou apenas umas horas, o que vou procurar fazer?

Perguntei a mim mesma: está com medo?

É claro que o medo existe afinal, humana que sou, trago inseguranças de todo tipo. Mas, o que gostaria de fazer para servir de legado à minha partida ou que sirva de desfecho grandioso antes de pegar o trem para a eternidade?

Talvez, devido ao momento que vivemos – onde nos encontramos resguardados da possível contaminação pelo vírus -, falta-me imaginação para pensar em algo diferente.

Vasculhando meu interior através dessa reflexão, cheguei a uma conclusão:

se vou morrer hoje, amanhã ou daqui a vinte anos, não pensaria em fazer nada de extraordinário. Apenas viver. Vivenciar meu dia-a-dia de forma intensa. Enxergar beleza em todo lugar e em todo ser vivo. Continuar apreciando as notas musicais de meus compositores preferidos: Mozart, Vivaldi, Albion. Cantar mesmo que desafinadamente minhas canções da Bossa Nova, afinal, mestre João Gilberto abençoou os desafinados. Sorte a minha!

Sambar de cadeiras endurecidas as canções de Martinho da Vila, deixando-se contagiar por sua deliciosa malemolência. Permitir-se em alguns momentos a melancolia e o desespero da mulher abandonada tão bem retratada na potente voz de nossa eterna “Pimentinha”. Amo derramar litros de lágrimas ouvindo sua voz. Verdadeira terapia musical: vou ao fundo, do fundo, do fundo do poço e retorno de alma lavada.

Seguirei com minhas leituras apreciando anos de solidão de Gabriel García Márquez, passando pela narrativa afiada de Rubem Fonseca em Secreções, excreções e desatinos. Perceber inclusive que as 100 escovadas antes de ir para a cama, é muito mais que uma história sobre certa “Lolita”.

Continuarei meus rituais de bebericar meus cafés e minhas xícaras de chá nos horários que meu relógio biológico reclamar, mantendo o prazer sempre à frente no comando dessa vida que a qualquer hora pode cessar.

E a poesia? Ah, essa permanecerá sempre tatuada em minhas retinas e em minha alma pois ela, é o tempero especial que eleva e torna tudo mais bonito. Acompanhada de Pessoa, Leminsky, Drummond, Quintana e tantos que não li mas, que ainda terei tempo de conhecer. Caso não me seja permitido, já estarei em ótimas companhias. Nada a reclamar!

Quer saber? Tudo isso já faço portanto, não mudaria minha rotina em absolutamente nada a não ser, viver. Até o último suspiro. Viver!