Alimento afetivo: o que me fortalece

Carrego comigo lembranças adoçicadas e outras tantas salgadas. Crescer ao lado de mulheres que dominavam uma cozinha — com conhecimento e amor — despertou em mim o interesse nos conhecimentos culinários. Se hoje cozinho bem, devo muito à essas personas incríveis que povoam minhas memórias.

Aprender sobre as especiarias e seus usos, ter ciência sobre seus benefícios à saúde, através da oralidade de quem dominava, fez de minha caminhada terrena, um belo passeio em meio à natureza.

Um dos meus maiores prazeres, é preparar um prato para familiares e amigos. A escolha do que fazer, a seguir selecionar os ingredientes, o manuseio e a mistura de todos eles, provar sabendo de antemão, que acertei. A felicidade se instala aqui nessa caixa pulsante.

Tenho me dedicado nos últimos meses à união de dois de meus muitos prazeres : escrita e gastronomia. É uma dupla que dá muito certo. É prazer garantido. Por conta disso, jogo para vocês leitores a seguinte pergunta que desejo muito obter resposta:

Conte para mim alguma lembrança de um alimento afetivo. Quais receitas marcaram sua infância? Quero muito saber.

Imagem licenciada: Shutterstock

Memória: universo intocável

fogueira1-590x4421

A manhã inicia envolta numa densa neblina. Ao abrir a porta que dá para o quintal, recebe uma lufada de vento gelado. Sorri! O galo da vizinha da rua debaixo canta animado. Alguns bem-te-vis e beija-flores voam ao redor do jardim e da horta que seu pai cuida tão bem. Há uma fina camada de gelo na plantação.

Com seus pezinhos envoltos numa alpargata gasta e uma meia listrada e rota, dá alguns passos no frio piso de cimento queimado. Quase escorrega, porém, consegue se equilibrar. Respira fundo e solta o ar pela boca. Diverte-se com a fumaça de ar quente que sai. Isso é inverno para ela! Corre para o balanço que seu pai instalou no fundo do quintal. Passa as pequenas mãozinhas na tábua molhada, esfrega-as na calça de flanela xadrez e senta balançando feliz. O dia promete!

Sua mãe grita da cozinha chamando todos para tomar o café da manhã. O aroma do café coado tira a pequena de seus devaneios infantis. Pula do balanço e entra pela cozinha para ocupar seu lugar a mesa. Todos reunidos, dá gosto ver seu pai – homem robusto, saudável, fartos bigodes negros – de olhos brilhantes feito os das crianças. Assobia de alegria ao ver as broas de milho quentinhas, o café aromático, o leite espumoso na jarra, a manteiga, o pão francês quentinho que sua mãe trouxe da padaria da esquina.

Sua mãe…

Figura ímpar. Mulher batalhadora que madruga para oferecer o pouco de conforto material aos seus. Mesmo com a renda escassa, prima por manter a família bem alimentada. É sua maneira de expressar seu amor.

Apesar de magricela, a menina é boa de garfo. Trata de comer sua broa, sua fatia de pão com manteiga, sua xícara de café com leite e a seguir, um pouco de achocolatado. Coisa rara que só acontece nessa época quando esfria. A criança estremece de contentamento ao sentir a quentura e o doce do chocolate. O dia promete!

O resto da manhã foi de muita tarefa na cozinha. Sua avó materna e mais duas tias chegam para reforçar as atividades. Forno aquecido, mais broas assando, um bolo com cobertura de pasta americana sendo confeccionado pelas mãos hábeis de sua tia, quituteira de fama no bairro. Do outro lado da cozinha, sua outra tia manipula a massa da bala de coco. A guria ama ficar sentada quieta olhando a destreza dela a esticar – com velocidade  – a tira de massa para não açucarar.

Sempre pensa: Minha família só tem artista!

A transformação da tira termina com as balas já cortadas descansando no frio mármore da pia, prontas para degustar.

Pura magia! A tia sempre oferece uma bala fresquinha à ela que, salivando, chupa bem devagarinho para que a bala não acabe nunca. Do lado de fora, no quintal, seu pai cozinha os pinhões. Outra iguaria que somente nesse mês do ano surge. Ela gosta de ver o pai mexendo no caldeirão com uma colher de pau e depois – com eles já cozidos e escorridos – descascar deixando-os peladinhos prontos para o banquete de logo mais. Sua avó, como sempre, se encarrega do feitio da paçoca. Posiciona o pilão centenário no meio do quintal e, munida de açúcar, amendoim torrado, farinha de mandioca e sal, deita o bastão para transformá-los em paçoca. Enquanto soca os ingredientes, dona Maria entoa uma cantoria que alegra o ambiente fazendo todos relembrar: Hoje é dia de festa!

De olhinhos vidrados na figura da avó com seu vestido florido azul marinho, avental e lenço prendendo os cabelos, chinelos nos pés – mesmo no inverno – balançando sua barriga cantando e rindo ao mesmo tempo. A garota sorri ao se aproximar da avó e pede o enorme bastão para socar um pouco. Arrisca cantar e ambas caem na risada com o desafino e a voz diminuta da menina. Quando terminam, comem a paçoca às colheradas. Coisa boa vó! – diz a garota com a boca cheia de doce.

Às dezesseis horas, a mãe surge à porta da cozinha chamando as crianças para o banho.

Está frio pra tomar banho mãe! – responde o irmão que não se dá muito bem com a água.

Não quero saber se está frio ou quente. Já pro banho moleque! Até as cinco quero todos de banho tomado e vestidos.

Quando a mãe fala nesse tom de voz não tem discussão. Gostando ou não, todos obedecem. Enquanto a gurizada está no banho, alguns homens da família – tios e primos – chegam trazendo lenha para montar a fogueira. Seu Pedro, o avó materno, passeia pelo quintal verificando tudo de mãos para trás pensativo. É seu jeito mineiro de ser. Confere tudo, afinal, também tem interesse que tudo saia perfeito.

Dezoito horas. Frio intenso, contudo, a temperatura entre todos os presentes encontra-se bem alto. No portão principal, seu Pedro recebe familiares que chegam abraçando-o. Ele é um dos aniversariantes do mês. A enorme mesa montada no quintal – na parte coberta – tem uma toalha estampada e uma vasta seleção de gostosuras juninas: bolo de fubá, de milho, broinhas, pé de moleque, paçoca, balas de coco, pinhão. Tudo distribuído ao redor do enorme bolo de aniversário coberto de massa americana colorido. Do outro lado, uma mesa menor com jarras de quentão, K-suco de uva e morango, garrafas térmicas com achocolatado e café. Na fogueira já ardendo em todo seu potencial, espetos com batata doce assando. Na vitrola, um disco entoa canções…

Capelinha de melão
é de São João.
É de cravo, é de rosa, é de manjericão.
São João está dormindo,
não me ouve não.
Acordai, acordai, acordai, João.
Atirei rosas pelo caminho.
A ventania veio e levou.
Tu me fizeste com seus espinhos uma coroa de flor.
Em pouco tempo a casa está lotada de familiares e amigos celebrando. O mês de junho é repleto de aniversariantes. A começar pelos avós, seu Pedro, seu Benedito, terminando pela neta, a menina magricela que hoje, resplandece de alegria por ver tantas guloseimas. Em frente ao bolo, seis pessoas felizes fazem seus pedidos antes de assoprarem as velinhas. O pedido da menina – talvez pela pureza infantil ainda não corrompida pelas mazelas de adulto – só deseja que o resto da vida seja uma grande e ininterrupta festa de aniversário.
Papai do céu, deixa eu ser eternamente criança!
Enquanto faz o pedido, uma estrela cadente atravessa a noite escura sacramentando sua solicitação.
Gente, lembrando dessas passagens de minha infância percebo que Papai do Céu atendeu meu pedido naquela noite fria: não perdi de vista minha menina magricela, sardenta e sonhadora. Não cresci muito no tamanho, continuo sonhadora e transformei meus sonhos em narrativas. E continuo amando festas juninas! Os balões, hoje solto na minha imaginação, afinal, consciência é necessário. E por aqui, eles continuam coloridos e belos a subir pelo céu de junho.

Janela aberta para o mundo (meu mundo)

DIGITAL IMAGE

Pela janela observo a suave garoa que cai e toma conta da paisagem.

Vidraça embaçada que transforma a vida lá fora num filme mudo. Pessoas encolhidas correm de um lado a outro da rua procurando abrigo. Verdadeiras formigas que circulam formando um mosaico interessante ao lados dos inúmeros carros e motos. Meus olhos são capturados por um movimento a esquerda da janela.

Sorrio ao ver que é uma rolinha que também me observa com olhos atentos e curiosos.

Parece pensar: O que será que essa humana faz aí dentro dessa caixa de vidro?

Caio na gargalhada ao ver que minha mente viaja numa conversa com a rolinha:

Ah pequena ave, se soubesse o quanto gostaria de trocar de lugar com você por um dia…

Fico a imaginar o que faria se ganhasse asas e tivesse a liberdade de sair por aí percorrendo essa imensidão do céu. Desvendando vidas humanas em seus “quadradinhos”, capturando recortes de seus cotidianos.

Veria um cara sarado saindo do banho e recebendo um carinho afável e sensual de seu companheiro tão belo quanto ele. Mais a frente, observaria uma mulher de meia idade com sua xícara de chá quente sentando-se ao lado de seu marido em frente a TV.

Voaria um pouco mais e localizaria num parque público várias crianças brincando no playground. Risos, gritinhos, conversas animadas de seres ainda intocados pela dureza da vida adulta.

No mesmo parque – só que do outro lado – acompanharia um jovem casal aproveitando um momento de doce intimidade beijando- se de forma sôfrega como se dependessem disso para sobreviverem.

Interessante. No mesmo parque em outra extremidade, dois jovens fumam crack totalmente alienados do mundo que os cercam. Olhos sem viço, miram o nada, largados detrás de uma moita que os acobertam.

Sigo minha viagem.

Aterrizo num parapeito de onde posso ver que dentro é uma classe de crianças.

Uma jovem professora escreve no quadro negro enquanto alunos brincam entre si jogando bolinhas de papel. Alguns se mantém focados na matéria escrita na lousa. Uma aluna ao fundo abre sua valise e pega um espelho.  Mostra-se precocemente vaidosa.

Numa outra janela, vejo uma senhora idosa pendendo sua cabeça para trás envolta num agradável cochilo. Luta intermitente entre manter-se acordada assistindo sua novela e render-se ao sono.

Impera o segundo.

Voo mais alguns quilômetros até cansar e pousar numa janela onde olhando, vejo a mim mesma sentada de frente a uma escrivaninha teclando. Pareço concentrada.

Aperto meus pequenos olhos de ave e vejo que na tela do computador já está desenvolvida uma história comprida! Nossa! Ela escreve muito! Olha só seus dedinhos como teclam nervosamente.

Algo chama sua atenção e num virar de pescoço, vejo-a olhando para mim. Fica um tempo me admirando e em seguida abre um sorriso.

Olho no olho. Mulher e rolinha. Não piscam. Uma adentra o universo particular da outra.

Uma ansiando – por um minuto – trocar de vida. Rolinha desejando ser humana. Humana desejando ser uma ave. Uma vida inteira passa por esses olhos que travam um embate num tempo infinito.

Ao longe, ouço um apito que me chama à realidade. Demoro para sair desse torpor e perceber que é a panela no fogo cozendo meu caldo verde gritando para eu correr logo à cozinha antes que ele seque. Deixo de lado a mente criativa da escritora e faço com que assuma o comando a mente de cozinheira. Abro a panela, experimento a carne, permito que todos os meus sentidos se aflorem para degustar minha pequena obra prima. Fecho os olhos e tenho um pequeno gozo:

– Hummmmmm!!! Que isso está tinindo de gostoso!

Você leitor, consegue sentir daí o aroma do meu caldo verde com mandioquinha? Use você sua imaginação, sinta. Está bom demais!

Com sua licença, vou preparar a mesa e chamar meu povo para degustar essa maravilha.

– Pessoal, o caldo já está à mesa. Venham!

 

Imagem: Momento de reflexão de Edilene Pedroso

 

Cozinha: laboratório de lembranças e magia

PICT0005
Cozinhar…Desde a mais remota lembrança trago a imagem da cozinha entre minhas lembranças mais gostosas. Lembro com nitidez de minha avó materna feliz da vida entre panelas, tigelas, inúmeros potes de temperos transformando pouco a pouco alimentos crus em iguarias de dar água na boca. E a alegria dela entre um fazer e outro! Era contagiante! Lembro-me bem de sua voz cantando ou assoviando uma de suas canções prediletas. E eu, sempre atenta e já me deixando seduzir pela arte de cozinhar. Achava a cozinha um lugar mágico! Achava minha avó uma verdadeira bruxa, no melhor sentido da palavra. Sempre de avental, seu uniforme de vida, com uma colher de pau numa das mãos e as panelas a cozer diversas coisas no fogão: cozidos de legumes, doces de abóbora, banana, preparando o feijão sempre tão cheiroso!

Mas na realidade, quem me ensinou a fazer o primeiro arroz na vida não foi minha avó muito menos minha mãe. Foi uma vizinha muito querida que me iniciou na arte de fazer o trivial.

Dona Renê! Puxa que saudades dessa bela senhora!
Foi cuidando do seu filho Alexandre que tive o prazer da sua companhia e das primeiras aulas de como se preparar uma boa e deliciosa comida. E aos poucos fui me interessando mais e mais pela arte de se cozinhar. Agora uma das lições que aprendi e que assimilei profundamente: Cozinhar não é apenas juntar os alimentos numa panela, botar sal, temperos e pronto. Nãoo!!! Isso chega a ser uma heresia!
Cozinhar além de ser uma arte, é também o aprendizado de todos os temperos e alimentos, suas funções alimentícias e medicinais. Mas acima de tudo cozinhar é uma entrega da alma. É doar-se por completo no momento em que se estabelece essa conexão com os alimentos.
Por isso a comida desanda se você está com raiva, triste ou com mágoas no peito. Experimenta cozinhar com a alma leve, ouvindo música, cantando junto ou simplesmente conversando com alguém que ama e verá que sua receita sairá um espetáculo!
Sou chata quando abro a geladeira e encontro verduras e legumes passados e machucados. Sou exigente com relação a sua qualidade justamente por dar valor, não só proteico,mas valor de vida à eles. Infelizmente a vida moderna não nos deixa com tempo suficiente para se dedicar com mais afinco às gostosuras. Portanto, só tenho os finais de semana para ficar mais tempo nesse laboratório e me dedicar as experiências gastronômicas.
Também não é tudo que posso fazer pois nem todos gostam dos mesmos pratos que eu. Nem todos se permitiram aguçar seu paladar e a arriscar temperos e gostos exóticos e diferenciados daquilo ao qual fomos acostumados. Paciência!

Quando chego à cozinha, coloco meu avental e decido qual prato fazer, é como se uma entidade se apossasse de mim. Torno-me outra pessoa. Adentro um outro universo. Sinto-me poderosa! E de posse de minhas armas de batalha, corto, desfio, raspo, bato e transformo algo   sem vida em preciosos tesouros gastronômicos. Saio sempre vencedora e depois recolho os louros pela bela atuação. Não tem preço!
Sei que muitas mulheres ditas “moderninhas” acharão esse meu texto um monte de bobagens ultrapassadas mas,rebato dizendo: Meninas, aprendam primeiro a cozinhar, sintam-se poderosas e donas de uma ciência que poucos têm. Isso não fará de vocês em absoluto pessoas menores e sem prestígios diante da sociedade. Muito pelo contrário. Isso significa pontos na sua formação. Verá que cozinhar não é um ato que diminui e te torna apenas mais uma mulherzinha do lar. Significa que você é uma deusa poderosa e detém poderes que outros não conseguem ter. É magia mesmo! Da mais pura, antiga e poderosa magia do universo. Transformar simples alimentos crus em iguarias de fazer estalar a boca de prazer!