De bode

Hoje não acordei bem. Desde cedo, uma vontade absurda de apertar a tecla reset e encerrar de vez com toda essa realidade. Desde ontem sinto-me um grão minúsculo à esmo no universo. A paralisia ao qual estamos atrelados, o não poder se despedir dos que partem coletivamente, as desigualdades sociais cada vez mais acirradas, o retorno à escuridão da caverna. A luta incansável do exército da Saúde que esmorece pouco a pouco não conseguindo dar conta do inimigo invisível. A ignorância.

Essa senhora mais antiga que o mundo, tem dado as cartas e ganhado todas as jogadas. Com ela não há diálogos possíveis, não há argumentos. Sua espada é mais afiada e sua língua, ferina.

É. Decididamente hoje, especialmente hoje, não acordei bem. Talvez por varar a noite quietinha em minha cama quente, em meu pijama macio, com minhas meias felpudas, com a cabeça suavemente pousada num travesseiro ergonômico. Não dormi. No silêncio da noite, num raro horário em que nenhum carro passou espalhando seu ronco, pude ouvir a conversa de dois sem teto na calçada de frente ao prédio. Um deles tossia muito. Mas não foi a tosse ininterrupta do pobre coitado que me tirou o sono dos justos. Foi a injustiça da situação. Mais uma vez ela, a realidade brutal que me incomodava, tirando meu sossego. Duas, três, quatro horas. Finalmente o cansaço cerrou meus olhos vítreos diante de tudo.

Às oito horas acordei. E não acordei bem. Não mesmo. Não quero sair da cama mas algumas preocupações precisam ser sanadas. Tenho de sair à rua e isso tem me tirado a segurança. De momento prazeroso, sair do meu casulo pretensamente protegido e ganhar as ruas que tanto gostava, passou a ser algo protelado ao máximo. Preciso sair. Acabou pão francês, pão de queijo, café chegando ao final, verduras findaram. Levanto arrastando grilhões invisíveis que tem servidos de peso para a ginástica boa para manter os músculos firmes para a grande queda. Um, dois. Um, dois. Um dois. Feijão com arroz.

Feliz daquele que ainda tem um prato com essa iguaria. Na rua, me afastando dos pedestres, evitando inclusive o olhar, sigo. Compra feita, conto com ajuda de um jovem funcionário do mercado que me acompanha com carrinho até meu endereço. Pergunto sobre sua rotina de trabalho, jovem responde. Silêncio até chegar ao prédio. Em outros tempos, ele subiria com a compra até meu apartamento. Hoje, peço para descarregar tudo na portaria enquanto um funcionário do condomínio surge. Outro anjo protetor que me ajuda a carregar as compras.

-Obrigada. Tchau. Se cuida meu jovem.

-Dona Roseli, entre no elevador social. Eu já subo com o restante das compras. Vou no elevador de serviço. Segregação necessária. Será? Meus olhos na solidão do elevador se embaçam. Minha boca de contorce para baixo feito emoji entristecido.

-Dona Roseli, vou deixar sua compra aqui do lado de fora. Não me leve a mal tá.

-Que isso. Agradeço sua ajuda. Tchau. Se cuida. Fique bem.

Maratona de limpeza, lavo ovo por ovo acariciando cada um como se fossem recém nascidos a me brindar com a vida. Fome. Lembrei que não comi mas preciso dar terminar essa tarefa toda antes de correr para o banheiro e tomar um banho que dê cabo de toda impureza que tenha trazido cá para dentro. Queria limpar a alma também. Arrê! Hoje está puxado.

É. Hoje não acordei bem mesmo. Prova disso é esse textão imenso que – até desejo escrever mais -, vomitar toda revolta e tristeza que trago cá no peito. Mas preciso colocar um ponto final. Pelo menos aqui.

Tomara que amanhã acorde melhor. Porque hoje, dia 13, quarta-feira, acordei bem não.

Cabra duro na queda!

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Definitivamente eles não me entendem! E definitivamente, não faço parte dessa turma. Por mais que me esforce, não consigo ser como eles. Tudo parece tão fácil. No entanto, para mim, soa como algo inatingível. Falo pouco, sou de poucos movimentos e mesmo esses poucos, desenvolvo bem devagar. Que posso fazer? É meu ritmo. Já disse, sou diferente. Caí do disco voador num passeio despretensioso pela via Láctea. Bem feito! Quem mandou viajar por aí. Deveria ter ficado no meu canto, em minha poeira espacial bem escondido.

Agora, peno diariamente sendo obrigado a conviver com essa raça humana, primitiva, rancorosa, grosseira e feia. Nesse exato momento, encontro-me num P.S. horroroso, que aqui, chamam de UPA. Horroroso até no nome. Onde já se viu um nome desse para designar centro de atendimento? Só perde para a falta de profissionalismo da equipe. Se tivesse lágrimas, acreditem, choraria diante do que vejo e ouço. Toda essa situação me faz lembrar dos anos lindos e felizes que passei lá nos Emirados do Satélite 9, dois sóis após a Nebulosa 3. Lá, é local de seres evoluídos, limpos, éticos e generosos. Bem diferente do que se vê aqui nesse planetinha de merda! Estão vendo só? Até meu linguajar refinado perdi convivendo com essa gentalha. Ah que saudades ( isso aprendi aqui também) de minha juventude brincando nas nuvens lilás que percorre o Planeta Ruffus 72A. Cercada por seres de luz, inteligência elevada, padrão indescritível que não cabe no vocabulário paupérrimo dos terrestres. Pouco a pouco estou perdendo a lucidez de minha mente brilhante. Estou me nivelando à eles. Triste destino o meu.

Ando sentindo o que aqui  denominam depressão, melancolia, tristeza. Sinto falta dos sons equilibrados do espaço. Aqui, tudo muito barulhento. Meus sensíveis ouvidos já se encontram afetados por tamanha poluição sonora. São incapazes de apreciar o verdadeiro som da alma: o silêncio. Não sabem que é através dele que alcançamos outros níveis da alma e apaziguamos a mente tornando-a mais produtiva. Por conta disso, todos se encontram sempre cansados, sem energia para nada. Burros! Sim, todos por aqui são burros! Onde já se viu, estão acabando com a beleza natural desse planeta de terceira. O que de melhor tinham aqui, estão conseguindo liquidar. E enchem a boca de um imbecil orgulho autodenominando-se Raça Inteligente! Oh God! Quanta baboseira!

Pior de tudo é que, se pudesse, colocaria um ponto final na minha infeliz existência. Não posso. E acreditem, não é por covardia. Tenho coragem suficiente para fazer isso e muito mais. No entanto, fui confeccionado num material que não se destrói. Não finda. Viverei eternamente. O que para os humanos é algo sonhado em alcançar, para mim – confinado a esse bloco de terra e água superpopuloso de criaturas tacanhas e hostis – transformou-se no pior castigo.

Acompanho a saga desse povo há um bom tempo para saber que jamais se modificarão. Evolução aqui passa batido e reto. Logo, encontro-me totalmente desesperançado.

Tentei de tudo para definhar e colocar um ponto final em meu sofrimento. Nada adiantou. Alistei-me em grupos extremistas, fui homem bomba, estive em todas as guerras no século XX e nada. Nem um arranhão sequer. Experimentei drogas pesadas que arrasariam qualquer um. Comigo, o máximo que ganhei foi uma suave diarréia. LSD, cocaína, crack, drogas da felicidade, nada faz efeito em mim. Durante as campanhas espaciais, fiz de tudo para conseguir uma vaga num desses satélites e foguetes espaciais. Como dizem por aqui: a esperança é a última que morre e, movido por essa esperança, tinha intenção de conseguir uma vaga e me lançar no espaço. Rever um pouco da paisagem em que fui criado. Devo ter vindo com defeito de fabricação: azar em todos o meu material genético. Só pode. Tanto espaço me aguardando para explorar e rever, onde fui cair? Onde? Onde?

No deserto de Tarakum. Mais conhecido como A Porta do Inferno. Tinha que ser eu o agraciado dessa brincadeira de mal gosto do destino! Caí em pleno buraco de fogo que os cientistas russos tão graciosamente criaram sem querer querendo e que persiste pegando fogo até hoje. Saí da cratera literalmente pegando fogo. No corpo e na alma de tanta raiva pelo meu intento mal sucedido. E ainda por cima, com uma platéia a se espantar e me achar o máximo! Até hoje devem achar que fui um ator contratado para entreter os turistas imbecis que por lá aparecem.

Não pensem vocês que não tentei outras vezes sair daqui. Tentei. Juro. Muitas. Inúmeras vezes. Pelo teor de minha voz já sacaram que nenhuma deu certo – caso contrário -não estaria perdendo meu tempo aqui, desabafando com vocês.

Chego a seguinte conclusão: Meu confinamento foi decretado pelo Senhor do Universo. Talvez tenha sido apagado de meu chip o passado e atitudes contrárias às Leis Universais. Tenho pedido perdão diariamente na esperança (ela novamente) de que um dia, encontre uma boa alma que me tire dessa sentença tão amarga que é viver no planeta Terra

– Senhor Z, o senhor é um sortudo. Apesar do quadro, o senhor se safou do chikungunya. Entre tantas pessoas vítimas dessa febre que mata, o senhor saiu ileso. Caso de estudo hein? Homem sortudo! Vá para casa!

Go home

Imagem: Hypescience

 

Fim de contrato

Um tropeço, um baque.

Como a vida é efêmera. Como é rápida e, mais rápida ainda se esvai deixando apenas rastros de incompreensão e…Saudades.

Como uma vida que mal começou, pode terminar sem aviso prévio, sem mensagens de despedida, sem um até breve num e-mail ou no WhatsApp?

Sendo ela uma senhora regida por regras que sempre existiram, por que insistimos em nos espantar diante de suas atitudes?

Qual o motivo de sofrermos e desistirmos dela se, desde nosso nascimento, já sabemos a que viemos?

E não adianta choro, nem promessas, muito menos barganha. O fim é inexorável para tudo. Para todos.

 

Queijo suiço

queijoCoisa mais doida que perder um grande amor, é junto ir embora um grande amigo. Perde-se o canal para o tesão, perde-se o porto seguro. Desencontra-se a emoção.

Amores? Sei que é difícil mas com esforço, abrindo o coração encontra-se outro para chamar de “Amorzão!”

Já o amigo…

Aquela sintonia para bater papo até raiar o dia, aquele olho no olho e transmissão de pensamentos, aquele compartilhar das coisas cotidianas e sem valor mas que só quando se perde percebe seu real valor.

Aquela vontade que bate de simplesmente passar a mão no telefone e ligar iniciando a conversa de onde parou no dia anterior.

Acabou.

Restou apenas o nó na garganta de seu nome querendo sair. A vontade encalacrada de saber se está bem, se está sofrendo. De ligar, ouvir sua familiar voz e perguntar: “Está tudo bem contigo?”

E bem baixinho te ouvir dizer:

“Tô não. Larga tudo e vem ficar comigo. Preciso do teu abrigo!”

Amigo perdido deixa um buraco na alma. Até conquistamos outros mas nenhum substitui aquele que se foi. E com o passar do tempo, nossa alma vai se transformando num verdadeiro queijo suíço.

Hoje perdi um amor. Mas o que mais sinto foi a perda do grande amigo.

Fiquei aqui sozinha. Sem rumo. Sem lágrimas.

Vendo baixar à sepultura do esquecimento nossa amizade.

Em luto, reluto. Mas sei que é em vão.

Vá em paz amoramigo! Ser feliz ao lado de outras.

Eu aqui me encarrego de velar por sua felicidade.

Imagem: Google

50 calendários rodados. Ou a danada está chegando. Ou simplesmente: virei a esquina da vida

mulher-sofrendo

Fui adaptando meus sentidos aos barulhos matutinos. Primeiro ouvi o motor de um caminhão que subia a rua de forma ruidosa. Parecia que perdia o fôlego naquela subida íngreme. Depois, ouvi vozes de dois homens que desciam a rua numa conversa animada sobre o que fizeram no final de semana. Aos poucos as vozes foram se afastando até se transformarem num ruído incompreensível. Continuei de olhos fechados. Ainda não queria ter contato com a realidade de mais um dia.
Após leve soneca, voltei à realidade ouvindo o assobio de alguém que parecia feliz por mais um dia de vida.
Não era o meu caso.
Irritada, virei para o outro lado da cama e cobri a cabeça com o lençol. A claridade matutina já invadia meu território.

Por mais que cobrisse a cabeça e cerrasse meus olhos, não conseguia ficar protegida na escuridão.
Teimava em não retornar à vida cotidiana. Não queria abrir os olhos e ver que tudo continuava como ontem, anteontem, transdontem…
Queria ter o poder de evaporar naquele quarto. Desejava ardentemente que um buraco se abrisse e me engolisse levando-me para a Terra do Nunca. E que lá, fosse levada para a masmorra da solidão eterna. Talvez só assim conseguisse a paz tão sonhada.
A serenidade tão almejada.
O não ser.
O nada.
Gostaria imensamente de sofrer um súbito Mal de Alzheimer galopante que apagasse de vez toda a memória que guardo em meu íntimo.
Cabeça pensante sofre muito, não esquece nada. Isso é tortura!
Já pensou? Limpar completamente os espaços de nossa memória. Deixando os arquivos vazios, leves, onde soprasse uma suave brisa o tempo todo! Seria tão…Tão aliviante! Não sentir dor de espécie alguma. Nem física muito menos emocional.
Não quero pensar. Não por hora. Continuo de olhos cerrados e mentalizo o vazio do universo.
Por instantes consigo vagar pela ausência de coisas. Flutuando por entre nuvens, sentindo o bafo cósmico em minha nuca. Aprecio o som do nada. É belo e harmonioso!
Dura pouco.
O som estridente do despertador invade o quarto quebrando o tão almejado silêncio.
Permaneço de olhos fechados. Me recuso a voltar à realidade. Em pouco tempo meu quarto é invadido por vozes agudas e alegres de meus filhos:
– Acorda véia! Levanta pra completar seus anos de vida! – grita Gustavo, de 15 anos.
– Vai mãe! Abre os olhos! Quero te abraçar e desejar feliz aniversário! Tá ficando velhaaa!!!! – completa Gisele, minha princesa de 14.
– Ohhhhh minha véia querida! Vem pra realidade! Ou acha que só eu envelheço? – diz Francisco, meu marido,
E todos caem na cama abraçando, espalhando beijos por todo lado, fazendo cócegas, descabelando e me envolvendo num carinho sem fim.
Com tanto afeto, como posso estar me sentindo tão infeliz? Tenho o que muitas mulheres almejaram a vida inteira: casamento bem estruturado, filhos lindos e saudáveis, um companheiro que me ama e procura sempre dar o melhor pra mim, uma situação financeira senão invejável, pelo menos tranquila. Sou uma mulher bonita, bem cuidada, tenho uma profissão estável…
Onde foi que me perdi? Porque essa inquietação e vontade de sumir do planeta? De sair por essa porta e nunca mais voltar?
Uma vontade absurda de gritar me invade e aos poucos, uma careta vai se formando. Vontade de gritar ao mundo que a vida passou rápida demais. Em poucas piscadas ,cinquenta anos se passaram e nem tive tempo quase de absorver as coisas boas que ela, a vida, me proporcionou. E agora observo que não tem volta. Não é como um vídeo VHS que podemos voltar quantas vezes quiser e retornar ao momento mais lindo do filme. A vida não tem replay!

Casei, tive filhos, eles cresceram e eu quase não vi o dia a dia deles devido a minha dedicação à profissão. Ser médica é maravilhoso! Não me arrependo de nada em minhas escolhas, mas, como tudo na vida, tem seu preço. E o preço pago foi não ter visto de perto o crescimento de meus rebentos.

Meu marido, o Francisco, que outrora foi um jovem lindo com seus olhos verdes cristalinos e sorriso largo que me conquistou com seu corpo escultural de surfista, hoje não passa de um senhor de meia idade obeso, com uma perda de cabelos avançada e olhos cansados.
Mas seu sorriso continua largo e contagiante! Deus! Como ainda amo esse homem! E meus filhos então? Jovens lindos, cheios de vida, saudáveis e que só me dão alegrias! Minha família é linda e têm paciência comigo que vivo sempre enfurnada em meus casos difíceis da UTI em que trabalho.
A careta vai se intensificando até que se desmancha num choro esparramado. Todos param de sorrir e ficam a me olhar de forma espantada. Choro de forma desesperada e não consigo parar. Gesticulo chamando-os para perto de mim. Beijo e abraço cada um e, entre soluços intensos e uma fracassada tentativa de sorrir consigo dizer: Obrigada Meu Deus! Obrigada família linda!
Francisco sai de meu abraço em silêncio e se ausenta por alguns segundos do quarto. O choro pouco a pouco vai se acalmando. Meus filhos se revezam no acalento que fazem em minha cabeça tombada na cama. Sinto uma mescla de vergonha, alívio e alegria.
– Regina, meu amor, olhe pra mim. Feliz aniversário! Vida longa à mulher que me faz sentir o homem mais feliz do mundo!
Enxugo os olhos congestionados e olho para ele que trás em suas mãos um pequeno pacote luxuoso.
Abrindo, vejo um lindo brilhante. Volto a me emocionar.
– Regina, esse é apenas um pequeno mimo que representa todo meu amor e carinho por você. Obrigada por existir e me fazer feliz.
Uma última lágrima escorre pela face levando embora toda a tristeza, um sorriso se esboça e abrindo meus braços, recebo minha família .
– Estou ficando velha! Cinquenta anos! Nunca pensei que fosse chegar a essa idade!
– Eu já estou com cinquenta e sete! Qual o problema?
– Nenhum problema Chico! Foi só uma reação momentânea que tive. Vamos dizer que tive uma virose emocional! Passou!
– Mãe vai por mim, de velha você não tem nada! Lindona, de virar o pescoço dos homens e mulheres. Cheia de vida e pique total pra tudo.
– É isso mesmo mãe. Minhas amigas sempre comentam o quanto você é linda e conservada. Elas têm a maior admiração por você.
– Vamos deixar de papo furado e descer para tomarmos juntos o café da manhã? E olha, prepare-se, pois o desjejum será especial hoje em homenagem à você, guerreira!

Imagem: Google