Beda 14 – Sabores da infância

Essa época sempre me transporta para dias de minha infância. Dias de muitas dificuldades financeiras que impossibilitavam a chance de ter brinquedos e doces. Mal dava para ter um prato de feijão com arroz. Carne? Somente em dias festivos. No dia a dia, defendiamos o bom prato com salada e chuchu, colhidos do quintal. Lembro que era um festival de chuchu – refogado, de forno, salada. Humm… Até hoje gosto de salada de chuchu. Tem quem odeie!

Como toda criança, sonhava em passar uma Páscoa com um ovo de chocolate. Me contentaria com um minusculo, de dedal mesmo. Nunca tínhamos dinheiro para essa iguaria. Meus pais teriam de comprar para os quatro filhos. Era impensável.

O que sempre nos salvou, foi a bondade de uma tia, irmã mais nova de mamãe, que comprava uma caixa de Dan Top (mais conhecida como Nhá Benta). Esse doce tem uma ligação afetiva com meus tempos de criança. Esclarecendo que não era uma caixa para cada criança. Não! Era um doce para cada um.

O meu, costumava comer lentamente. Sentir cada molécula do chocolate e marshmallow, em contato com minhas papilas gustativas. Tudo bem que ele acabava escorrendo por meus dedos. Não tinha pressa. Tais momentos eram bem próximo do êxtase, tamanha sensação de plenitude que tomava conta do meu pequeno e raquítico ser.

Hoje, voltando o olhar para esses recortes do passado, sinto um misto de emoção e gratidão, pois sempre surgia um “anjo” para nos amparar. Nunca passamos fome, mas tudo era contado e dividido por minha mãe que fazia das tripas, coração para suprir a fome e vontade de todos.

Tempos difíceis que a mente fantasiosa de uma criança, transformou em contos de fadas moderno. Os estudos, as leituras e o encontro comigo mesma através da psicanálise, foram os alicerces para me transformar num ser humano – senão brilhante – pelo menos, uma cidadã em permanente construção buscando cada dia ser melhor do que foi.

Ainda gosto de chuchu e amo Nhá Benta. Compro sempre que a vontade se manifesta. Falando nisso, manifestou. Vou lá na doceria comprar uma caixa. NE-CE-SSI-TO!

Esse texto faz parte do b.e.d.a — blog every day august.

Participam Adriana Aneli — Claudia Leonardi — Darlene Regina – Lunna Guedes – Mariana Gouveia — Obdulio Nuñes Ortega

Imagem licenciada: Pixabay

B.E.D.A. – Achados e perdidos

Organizando documentos antigos, me reencontrei! Em meio a contas pagas, fotos da equipe da biblioteca, cartão postal recebido de um amigo que conheci em Lisboa e tornei a perdê-lo no tempo e na distância, me reencontrei!

Ao pousar meus olhos na pequena foto em preto e branco, com as bordas oxidadas pelo tempo, me reencontrei!

Rever meus irmãos pequenos, distantes no caleidoscópio da existência, relembrei aquele exato momento e, me reencontrei!

Voltar aquela rua de terra batida, de frente a casa em que nasci e morei boa parte de minha vida, trouxe doces lembranças de uma infância pobre mas rica de fantasia, magia, descobertas.

Chronos, esse Senhor que adora nos testar, pregou uma peça em mim fazendo com que esquecesse quem registrou esse momento para a posteridade.

Mas não me esqueci da euforia do momento. Numa infância sem tecnologias digitais, não era comum posar para fotos; tenho bem poucos registros de meus tempos de criança.

Sem as preocupações com a perfeição de uma boa foto, ninguém se ocupava em fazer poses, bicos ou ajeitar a roupa e os cabelos. Saía de qualquer jeito e era exatamente nisso, que se escondia a beleza do ato: espontaneidade!

Eu – que sempre fui mico -, já gostava de fazer caras e caretas para fotos. Me reencontrei!

Tomada por dores nas articulações, bursite no ombro gritando em Lá Maior, unhas e cabelos enfraquecidos pela ausência dos hormônios, caminhando a passos largos para a terceira idade…Me reencontrei!

De início, chorei calculando quantos passos dei desde essa pose até chegar aqui, onde me encontro. Foi uma longa caminhada.

Passei a calcular quantas experiências, quantas pessoas passaram por minha vida, quantos cursos iniciados, quantos terminados, quantos largados pelo caminho.

Relembrei perdas, lágrimas derramadas, conquistas, reuniões familiares e as muitas risadas d(o)adas.

Uma vida inteira se apresentou – como num rolo de película cinematográfica – jogado ao chão; reconheci cada movimento.

Reencontrar essa foto perdida, foi um presente de um anjo que passou por aqui e decidiu me fazer feliz. Me reencontrei!

Participam dessa blogagem coletiva:

Adriana Aneli – Alê Helga – Claudia Leonardi – Darlene Regina – Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Ortega

Voltar

porta macica

Voltar àquela casa…

De frente ao portão. O mesmo portão de uma vida inteira. Sólido, retorcido em curvas e linhas. Tal qual nossas vidas. Pintado num azul envelhecido feito casco de velhos navios. Apesar da idade avançada, não continha nenhum ponto de ferrugem. “Coisa boa, de primeira” – diria seu velho avô Pierre, nascido na região Sudoeste da França. Berço da agricultura e do bom vinho.

…Vô Pierre…Quantas lembranças passaram pela mente de Marjorie.

Passando o pesado portão, percorreu o corredor que dava acesso a um novo lance de escadas. Cinco degraus. Quando pequena, gostava de pular um a um sentindo-se vitoriosa quando superando o medo, saltava os cinco de uma vez, aterrizando feito ave no solo de lajotas hidráulicas.

Lembrou de uma queda e do corte profundo no queixo. Mais que a dor física, ela sentiu o peso do olhar de sua mãe, sempre severa em não admitir desobediência. Seu pai, ao contrário. Homem com alma de criança, cairia na gargalhada vendo-a se esborrachar. Sempre gostou de coisa mal feita. Essa era a famosa frase de dona Dulce, mãe de seu pai. Outra mulher aristocrática que não admitia intimidades nem falta de etiquetas.

…Vó Dulce, uma chata e mal amada isso sim! Nunca gostei dela.

Do alto da escada, pôde vislumbrar a porta maciça de jacarandá sempre lustrosa. Visualizou o corredor ao lado que percorria toda a extensão da casa e desembocava na enorme cozinha. Um dos seus lugares favoritos da casa. Aspirou o aroma do forte café que sua avó materna Elisa sempre passava no coador de pano preso a um suporte de ferro fundido. Seu perfume se espalhava por toda casa!

Sentiu ímpeto de correr pelo corredor e cair direto na cozinha, como fazia de pequena. Conteve-se e, respirando fundo para controlar suas emoções, entrou pela porta da sala.

Nada havia mudado! À sua direita, o enorme sofá carmim. No centro, a mesa com sua base talhada cheirando a óleo de peroba repousando no tapete Aubusson. As cadeiras de espaldar alto lhe trouxe lembranças da infância quando tentava com dificuldades, escalar essas maravilhas. Os retratos pintados a óleo de seus avós ainda jovens lhe causou frisson no peito.

Percorreu o corredor que levava aos quartos. O primeiro, de sua tia Aneli. Decoração espartana. Árido feito seu coração. Frio como sua alma. Nem entrou. Recuou e prosseguiu entrando no próximo. O de seus avós. Pôde sentir o perfume do talco de rosas que sua vó usava. Viu sobre a cômoda antiga, a escova de ossos que penteava suas longas madeixas. Gostava de apreciar esse ritual. Viu os enormes grampos de cabelo, pousados ao lado da escova. Percebeu do lado oposto à cômoda, um mancebo de madeira que trazia no alto, o chapéu de feltro de seu avô Pierre. Cinza chumbo.Uma de suas inúmeras camisas xadrez de flanela, encontrava-se displicentemente jogada aos pés da cama. Caminhou pelo quarto fazendo ruídos ao mudar seus passos miúdos na velha tábua do assoalho gasto pelo tempo. Parou. Ouviu vozes abafadas. Abaixou-se no chão e grudou os ouvidos tentando reconhecer as vozes que falavam sem parar. Lembrou-se de que embaixo dos quartos, ficavam os porões da casa. Doces recordações se elevaram no ar, feito fumaça produzida no fogão à lenha. Decidiu parar de explorar as dependências principais da casa . Saindo pelo corredor, desceu ao subsolo onde ficavam os tais porões. Resquícios de suas fantasias de menina. Local mágico, com personagens criados por ela naqueles anos difíceis de sua infância.

Ao ultrapassar a soleira da porta do primeiro porão – o maior dos três, sentiu-se arremessada a Storybrook. Respirou magia por toda parte. Cheiro de coisas eternamente guardadas por gerações. Potes, garrafas, brinquedos, bolas coloridas. Estranhamente repousavam nas prateleiras sem fim como que, esperando o momento de serem úteis na vida de alguém. Remexendo com certo zelo nas caixas, encontrou uma antiga pasta onde guardava seus desenhos. Quanta emoção ao abrir e vê-los intactos. Na adolescência, fora uma desenhista espetacular. Depois, com as cobranças da vida adulta, deixou de lado essa atividade que tanto prazer lhe proporcionava. Abrindo um sorriso “Monalisa”, pensou: Preciso voltar a fazer alguns rabiscos. Acho que não perdi a mão.

Por segundos pensou em levar consigo a pasta. No entanto, sua consciência acusou que deveria deixar lá afinal, ali, era seu lugar. Com certo pesar, repôs na prateleira e seguiu para o segundo porão.

Lá, encontrou diversas ferramentas do seu avô. Algo chamou sua atenção. O velho e querido pilão onde, nas tardes mornas de sua infância, vó Elisa convocava a todos para participar da festa que era moer amendoim até virar paçoca. Formava-se fila de crianças e adultos para a deliciosa farra de socar o amendoim e o açúcar enquanto sua avó puxava a cantoria batendo palmas e arrastando os velhos chinelos. Seus olhos, do brilho intenso da alegria, recebeu um descortinar sombrio ao desviar-se para o objeto ao lado pendurado na parede. O reio de cavalo trançado que servira um dia para surrá-la por uma traquinagem de criança. Nunca se esqueceu da dor que sentiu. Dor física e moral pois sabia em seu íntimo que o que fez, não era para tamanho castigo. Sentiu-se uma escrava castigada no tronco da senzala.

Tantas vivências naquela casa, tantos acontecimentos que foram responsáveis pelo que era agora. Voltar àquele universo, era quase como voltar os ponteiros do relógio do tempo e retroceder à infância.

..Oi, tudo bem? Já faz um tempo que observamos a senhora parada, olhando para o prédio. Por acaso está interessada em entrar e conhecer nosso belo e arrojado condomínio? Não se acanhe, será um prazer mostrar as dependências.

Retorno à realidade, Marjorie sorri.

-Obrigada. Não preciso entrar. Conheço cada pedacinho desse terreno e tudo o que existe debaixo desse emaranhado de concreto e vidro. Não se preocupe comigo, já estou de saída. Só parei aqui para resgatar algo valioso que um dia deixei aqui.

-Valioso? O que? Esqueceu alguma joia no condomínio?

-Joia? É. Posso chamá-la assim também. Agora que reencontrei minha essência de criança, posso seguir com minha vida longe daqui. Desculpa o incômodo.

O segurança do condomínio não entendendo nada acompanhou a figura delicada da jovem senhora que sumiu na esquina da rua. Coçando a cabeça e realinhando seu boné, voltou à sua guarita pensando em voz alta:

-É cada doido que aparece por aqui que vou te contar. Dona mais esquisita!

Imagem: Pinterest

Traço inacabado

traço inacabado

 

Já nasci saudosa. Essa é minha marca maior além do coração sem fundo, olhar curioso de eterna infante e uma vontade infinda de ser feliz. É claro que nem sempre isso é possível e aprendi, no decorrer de minha existência, a aceitar a vida como ela se apresenta.

Da mesma forma, busco olhar meu próximo com lentes e filtros da tolerância. Não sou religiosa. Já fui, e muito, no entanto, afastei-me por questionar tudo e tornar-me figura “non grata” diante da gleba hipócrita.

Guardo em minhas gavetas da memória, momentos que gravei para a eternidade. Lembranças da infância, são muitas, são felizes, são puras. Época em que não sabia contabilizar muito menos separar o certo do errado, o bonito do feio, simplesmente vivenciava cada dia sem me questionar sobre nada. Deixava-me levar pela vida. E era feliz!

Não me importava em ter apenas um sapatinho verlon, uma meia rota, um vestido que já havia passado por diversas crianças até chegar a mim.

Brinquedos? Somente o que minha avó Maria confeccionava. Havia as almofadinhas das Cinco Marias recheadas de arroz, as bonecas feitas de papel machê e retalhos de tecido. Na realidade, não tive muitos brinquedos mas brinquei exaustivamente! Sou de uma geração em que se ia para as ruas, formava-se turmas e brincávamos o dia inteiro. Era pique, pega-pega, passa anel, estátua, queimada… Tantas eram as brincadeiras na rua, que até então, era território das crianças e não dos automóveis.

Ao final da tarde, minha avó e outras mães chamavam as crianças para o banho e depois o lanche que sempre tinha bolos, biscoitos, broas de milho, geleias acompanhadas do tradicional café com leite ou chá preto.

Como era bom! Anos mais tarde conheci o pão de queijo que uma prima de minha mãe aprendeu a fazer e vez ou outra, fazia de baciada e chamava a criançada para saborear.

Sim, isso era felicidade! Comilanças alimentando o bucho (termo de minha avó) e muita conversa alimentando a alma.

Tive uma infância pobre, contudo nunca faltou alimento em minha casa. Podíamos não ter uma mesa farta em supérfluos que hoje compramos no supermercado, mas sempre tivemos o pão, o leite, a manteiga, o café e o feijão com arroz.

A carne para acompanhar, recebíamos de uma prima minha que era casada com um português dono de churrascaria. A sobra, ele trazia para sua casa e dividia com as famílias menos favorecidas. Graças a Deus estávamos na lista dos desfavorecidos e jamais faltou um naco de carne e linguiça em nossos pratos. Assim como também nunca faltou as frutas e uns doces que recebíamos de uma tia, irmã caçula de minha mãe que aparecia uma vez ao mês e nos brindava com Dan top.

Um para cada criança. Comia devagarinho para prolongar o prazer de comer chocolate. Adorava me lambuzar toda e depois lamber os dedos, a mão, a embalagem.

Sou canceriana nascida em pleno dia 24 de junho, dia de São João. Por conta dessa data, muitos aniversários foram celebrados de frente a uma fogueira comendo batata doce assada, pé de moleque, pipoca, bolo de milho e quentão – no caso só para os adultos. Para a criançada, ki-Suco de uva. Tomava como se fosse iguaria dos Deuses!

E havia também a paçoca de roça da vó Maria. Ah… Que festa se fazia cada vez que vó Maria convocava a família toda para socar o amendoim e o açúcar no pilão centenário até se transformar em paçoca. Era uma farra só. Fazíamos fila indiana para socar o pilão e a cantoria corria solta acompanhada de muitas risadas. O brilho de prazer nos olhares ficou registrado na minha memória. Coisa gostosa lembrar a barriga da minha avó balançando de cima pra baixo enquanto cantava, assoviava e ria. Tudo ao mesmo tempo e dizendo: Soca direito canaiada! Soca com gosto, pra valer! – e dizendo isso caía na risada banguela que me encantava.

Sua lembrança é tão nítida em minha mente: baixinha, gordinha, sempre de vestido florido e avental. E jamais se separava de seu lenço na cabeça feito camponesa que foi de fato. Mesmo morando na cidade, não abriu mão de seus hábitos. Cozinhava assobiando canções de Cascatinha e Inhana:

Índia seus cabelos nos ombros caídos
Negros como a noite que não tem luar
Seus lábios de rosa para mim sorrindo
E a doce meiguice desse seu olhar
Índia da pele morena
Sua boca pequena eu quero beijar”

E o que dizer do vô Dito, índio de nascença, criado por família branca, músico nato que tocava um bandolim como poucos. Cozinheiro exímio, desenhista talentoso que instigou e deu-me a mão nos primeiros passos de meus riscados. Adorava me desafiar e assim, de linhas em linhas fui aprendendo e aperfeiçoando meu traço nos desenhos. Como ele, virei retratista e passei a andar sempre com um bloco de papel e lápis olhando, observando e desenhando todos que me chamavam a atenção.

Sua morte, atropelado numa avenida movimentada serviu de divisor de águas em minha vida – até então, inocente e longe de qualquer fantasma.

Sofri muito. Sentia sua falta e cheguei a ficar doente. Anos mais tarde, já adulta, soube pela minha mãe que minha professora chegou a avisá-la de ter me visto várias vezes no local de sua morte olhando para o solo de piche.

Confesso que até hoje não me lembro desses dias.

Segui os outros anos até chegar a adolescência desenhando cada vez mais e melhor. Cheguei a ganhar uma maleta com várias bisnagas de tinta a óleo e pinceis de todos os tipos e tamanhos além de telas. Ganhei esse precioso presente de um pintor naif, hoje conhecido mundialmente por Madalena. Foi uma alegria tão grande que passei a pintar sem parar.

Até que a vida me chamou para a dura realidade e passei a trabalhar longe de casa para ganhar um salário melhor. Não tive mais tempo para desenhos, pinturas e sonhos.

A vida me embruteceu. Por mais de trinta anos, nunca mais peguei num grafite muito menos em pincéis. Houve um bloqueio no desenho, ocorreu uma atrofia no músculo principal – meu coração, transformando-me num autômato. Passei anos a fio somente executando tarefas materiais e necessárias. A rotina me engoliu fazendo-me refém da acidez. Deixei de enxergar beleza, leveza. Tornei-me rude comigo mesma e com as pessoas.

No entanto, essa tal vida que tanto falei até agora, essa mesma aprontou comigo no sentido de trazer-me à razão. Ela, a vida, é ladina, safada, malandra e deu uma rasteira para que eu num voo solo pudesse enxergar novamente quem eu era de fato. Não esse estereótipo que abracei e finjo diariamente que sou.

Sou uma junção de sangue, carne, nervos e sentimentos que percorrem toda a carcaça física e transcende a matéria se expandindo para todo o universo. Sou dotada de pura emoção e represando tanto tempo isso, é claro que não iria fazer bem. A rasteira que a danada da vida me deu não vem ao caso mas a reação que ocorreu em mim, ah isso sim, vale a pena comentar.

Ela me deu um looping dos bons me fazendo da noite pro dia, uma atleta de seu time. Era isso ou minguava. Preferi viver e retornar à minha antiga e sempre presente pessoa que fui e ainda sou. Só me encontrava anestesiada pela rotina.

Hoje, voltei a valorizar o belo, a poesia, a música e até voltei a traçar. Não é que continuo com meu traçado firme?

Compreendi que meu traço não tem fim, assim como a vida, é inacabado e digo isso porque tenho a certeza que nada termina por aqui. Caso contrário, seria muita sacanagem dela, a vida.

E ela, de tão boa ainda me ensinou outros traçados como esses, que acabo de escrever.

Imagem: Marcos Andolphatto

Lembranças…

Para quem ainda não sabe, tenho participado com alguns contos na revista literária Plural que está sob o comando de Lunna Guedes. Na última edição, o tema foi Lembranças e eu mergulhei com tudo nas minhas e transformei-a num belo conto. Convido a todos para conhecer a revista e os demais autores que nela se encontram. A revista está ótima pessoal!

Para ler

rubem plural

Infância roubada

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Olhinhos orientais pousaram em mim e calados, diziam muito. Não, minto. Não diziam, gritavam de forma desesperadora pedindo socorro e um pouco de atenção.

Sentindo a força daquele olhar, parei o que fazia e olhei para o balcão vendo aquela cabecinha lustrosa.

Perguntei se desejava algum livro. Tive o silêncio como resposta mas aquele olhar…

Levantei-me, cheguei mais perto e olhando-a nos olhos perguntei novamente: Precisa de algo? Pode falar. E arrematei minha fala com um sorriso aberto. Surtiu efeito.

De forma quase inaudível, ela balbuciou:

– Não sei quem devo obedecer. Minha terapeuta ou minha mãe… – e deixando a frase no ar abaixou os olhinhos feito uma gueixa desconsolada.

– Por que diz isso? Obedecer em que?

– Minha terapeuta diz para eu fazer somente a lição do dia e o resto do tempo, brincar. Já minha mãe quer que eu faça todas as lições da semana de uma vez… Tia, não sei o que fazer…

Tocada pelas palavras e pelo tom que a pequena usou em sua fala, fiquei de coração apertado.

– Você não brinca?

– Não. Não tenho com quem brincar e minha mãe disse que já passei da idade de brincar… Mas eu queria tanto!

– Não tem irmãos? Primos? Amiguinhos?

– Não, sou sozinha tia. Não tenho ninguém, nenhum amiguinho…

– Você mora em prédio ou casa?

– Prédio tia… na Vila Madalena e não tem crianças por lá… Sou tão sozinha

E falando isso, a pobre garota começou a girar os olhinhos em suas órbitas me deixando agoniada pensando que pudesse estar tento algum surto.

– R, tudo bem? Por que não trás algum brinquedo para a escola? Você fica aqui o dia inteiro, poderia fazer suas lições e depois brincar um pouco.

– Tia, até o ano passado trazia meu ursinho e minha boneca mas minha mãe proibiu dizendo que já estou grande para isso e não deixa mais eu trazer. Sinto tanta vontade de brincar…

Pensativa perguntei:

– E nos finais de semana? Seus pais não te levam a parques para brincar, andar de bicicleta, de patins…

– Não. Eles não têm tempo para mim. Trabalham muito…

Esse desabafo me fez ficar dias seguidos pensando no quanto as crianças de hoje estão sendo “roubadas” de sua infância. Direito esse, fundamental para o futuro adulto. E no entanto, pais de hoje se preocupam tanto em manter seus filhos presos a uma agenda apertadíssima entre judô, natação, inglês, informática, espanhol e tantas matérias e coisas para prepará-los para o futuro, que esquecem que a infância é uma só vez na vida e que passa rápido demais.

Nossas crianças não sabem mais brincar! Desde cedo, têm sua ingenuidade e pureza arrancadas pela telinha da TV e do computador. São reféns da “modernidade” e passam sua infância enclausurados nos prédios onde moram e entre os muros das escolas. Observo isso nos olhos sem brilho das crianças do colégio onde trabalho. Se cansam de estudar e saem correndo pelo pátio, gritam avisando que não podem correr nem brincar. Se tentar entrar no playground, são expulsos alegando não terem mais idade para isso. Ficam totalmente deslocadas e perdidas restando apenas passarem na lanchonete, se empanturrarem de guloseimas engordativas para aplacar sua fome de vida, de atenção, de amor dos adultos voltando a seguir, para o reduto que lhes resta: a biblioteca. Depósito de livros e crianças órfãs de pais vivos e extremamente ocupados.

Desculpem-me esse texto desabafo mas é que, para quem foi criança até os dezenove anos, brincou na rua, se estourou inteira pulando muros e cercas, tomou boladas terríveis nas queimadas da vida, estourou seu couro andando de rolemã, ser testemunha de uma infância roubada, dói demais e me revolta.

Adultos, vamos devolver a infância para quem é de direito: Nossas crianças!

Feliz Dia das Crianças!

Imagem licenciada Sutterstock