Beda – Enfado

Comigo acontece. Não sei se é comum em outras pessoas. Quase todos os dias. Desde pequena fujo de mim mesma. Pode durar segundos. Como aconteceu agora, no escritório. O tec-tec nervoso nos teclados é a trilha sonora pós almoço. Vozes, risos, acompanham essa sonoridade. Um mantra moderno. Enquanto digito mecanicamente, saio de mim por alguns segundos e rumo para não sei onde. Como posso esclarecer tal experiência? É uma sensação de não pertencimento do agora, desse espaço físico. É como se minha essência se desprendesse da matéria e se elevasse no espaço. É uma adorável liberdade, acompanhada pelo medo do desconhecido. Deixo-me levar até certo ponto, depois retorno.

Para os espiritualistas, trata-se de fenômenos de pré desprendimento do espírito. Os céticos, talvez, encontrem resposta numa possível crise nos milhares de filamentos cerebrais. Uma provável crise epilética. Talvez ambos estejam corretos. A mim, não interessam  tais conceitos. Trago internamente, a certeza do meu diagnóstico: Tédio.

Ainda criança, no jardim da infância, entre descer o escorregador e cair no banco de areia, preferia ficar à margem, sentada no canto, sozinha com meus fios de pensamentos. Achava aquilo tudo sem sentido, sem graça. Não compreendia a alegria e o riso farto e fácil das demais crianças.

Através dos anos fui me atolando cada vez mais nesse sentimento não expresso. Ninguém nunca soube disso. Não guardo por vergonha do que possam pensar, mas sim, por não me interessar pelo outro que divide espaço/vida comigo. Rodo calendários, prossigo, ajo de forma normal. Se é que posso chamar o viver tropeçando nas inúmeras atividades do dia de normal. Corre-se tanto, dorme-se de menos, come-se mal, transa-se …Ah, esqueci que isso não faço. Desprende muita energia e isso, tenho cada vez menos. Não faz falta porque nunca me acrescentou nada.

Devo ser uma berração da natureza: alma de bicho preguiça encarnada num corpo humano. Não tinha como dar certo. Prossigo, arrastando os pés, parando, avaliando o quanto preciso de determinados movimentos para não desperdiçar energia e durmo. Dormir talvez seja o que de melhor eu faça. Ninguém me ensinou. Devo ter vindo com chip legítimo implantado na fábrica. E por falar em dormir, acho que agora, entre um bocejo e outro, meus olhos pesados pedem uma pausa. Como não sou de brigar…

Este texto faz parte da blogagem coletiva BEDA (Blog Every Day August). Estão comigo nessa deliciosa brincadeira séria:

Bob F. – Claudia Leonardi – Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega –Suzana Martins

Imagem gratuita: Pexels

7 comentários sobre “Beda – Enfado

  1. Você descreveu algumas partes da minha infância…rs… Também ficava num “mundo a parte”… Mas hoje isso passou: Acho que sou a inspetora que mais brinca com os alunos! E como me divirto (passo raiva também). Atualmente são as companhias adultas que me causam enfado muitas vezes… Ainda outro dia, em uma festa, fui lavar a louça para descansar da “socialização”.

    Beijos

      • Leveza e alegria nem sempre são resultados de lidar com a infância. Algumas vezes eles me causam raiva e desespero (esse ano uma do quinto ano enfiou uma meia na minha boca) , mas nunca me causam tédio.

  2. Acontece de vez em quando de eu me “estranhar”, como se a minha identidade não me pertencesse. No mais, sou tão normal quanto você… quer dizer… Rs,,,

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