BEDA – Seu tempo partido em outras infâncias

A tarde desce mansa e sinto a brisa morna me envolver cada vez que o balanço sobe mais alto. Aprecio desafios e esse, de subir cada vez mais alto, deixa a mamãe e a dinda, apavoradas. Ouvir seus gritinhos histéricos desperta o diabinho que me habita. 

Ganhei esse apelido do papai. Mesmo que em alguns momentos, tenha de ser mais enérgico comigo, sei que no fundo se satisfaz com minhas estripulias. Ele gosta de me mimar. Enquanto me distraio no balanço, ouço o motor de seu carro estacionando e fico mais inquieto do que o normal. Exagero na força com que me movo no balanço para ganhar o céu. Quero sempre ver o brilho de seus olhos orgulhosos em confirmar que seu tesouro, é valente, destemido e…

…a corrente se vira e contorce me desequilibrando. Realizei um antigo sonho: voar. Dura pouco e logo meu pouso causa estragos. Não ouço meu grito de dor porque sou envolvido pela gritaria e desespero dos adultos.

De olhos fechados, caio num choro sentido. Percebo que meu braço foi afetado pela queda.

Papai foi soldado e tem noção de primeiros socorros. Uma vez controlado o susto, ele procura algo para servir de tala.

Corajosamente, abro os olhos e vejo um rasgo na pele e uma lasca de algo esbranquiçado saindo para fora. Papai olha firme para mim e, se aproximando de meu ouvido, diz suavemente que vou sentir muita dor. Se eu for valente e aguentar firme sem escândalo, depois que sarar, ele sai uns dias de folga do trabalho e me leva para acampar. Só eu e ele.

O que não faço para agradar o meu herói? Aguentei a dor da fratura exposta com valentia. Fui mais forte que muitos adultos. Enquanto papai ajeitava a tala improvisada, acomodando meus ossos quebrados, notei seus olhos embaçados e a boca trêmula numa oração sem voz.

A mudança de estação, trouxe a dor que me acompanha desde esse dia. Para não esquecer, carrego uma cicatriz grande. Troféu da demonstração de amor incondicional de meu progenitor

Sou um rio de lembranças ao lado de meu pai, que hoje mora em outras esferas. Meu velho sempre foi meu apoio, minha bússola, meu amigo.

É no compasso das pulsações dolorosas, que mergulho fundo nas lembranças da infância para me encontrar com ele, ouvir sua risada, receber seu olhar e me aconchegar em seu caloroso abraço.

Texto publicado na Coletânea La Barca, Scenarium Livros Artesanais

Esse texto faz parte da blogagem coletiva BEDA (Blog Everyday April). Participam comigo:

Alê Helga – Claudia Leonardi – Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins

Imagem gratuita: Pexels

3 comentários sobre “BEDA – Seu tempo partido em outras infâncias

Deixe um comentário