BEDA – Hoje pensei em você

Tenho memória afiada para muitas coisas mas, com relação a você, sempre paira dúvidas se minhas lembranças suas são minhas mesmo ou foram emprestadas de terceiros. Fomos próximos e ao mesmo tempo, distantes. Nunca alcancei sua essência. Desconfio que nem mesmo você sabia quem era. Talvez seja influência de sua criação sem amor, sem carinho. Sempre dizia que foram criados largados, sem a presença materna que só tinha olhos para o próprio umbigo e um pai que apesar de coração bom, não tinha forças para se impor ou, simplesmente vivia acomodado no papel masculino de apenas contribuir com seu esperma. A criação era responsabilidade da mulher. Durante muito tempo isso foi pensamento comum na sociedade e ainda hoje, impera em muitos locais e culturas.

Em minha adolescência fui uma crítica ferrenha de seu comportamento. Achava-o fraco. Um perdedor. Tive vergonha de ser sua filha. Hoje, sem as lentes distorcidas da rebeldia, posso entender muito de sua conduta. Recordo com certa melancolia, sua expressão de desalento e medo que muitas vezes testemunhei.

Sabe, no dia a dia, nem me recordo de você. Desculpa, a vida adulta absorve nosso tempo e rouba nossa alma e o que sobra, são fragmentos do que vivenciamos no agora. Os ontens, vão se desbotando, ficando presos aos álbuns de fotografias abandonados em baús ou gavetas emperradas. Somos vilões e algozes daqueles que nos foram caros em vida. Aprisionamos todos em papéis fotográficos que o tempo se encarrega de apagar. Esse é nosso modo torto de demonstrar amor e carinho. Nos enganamos desgraçadamente, sorrindo ao reabrir, de tempos em tempos, os álbuns de fotografia. Sopramos o dom da vida mesmo que estáticos, em poses enrijecidas e num sorriso paralisado, tiramos o pó e por alguns minutos relembramos vocês. Revivemos momentos de alegrias, confraternização e amor. Tudo é perfeito nos retratos. Uma pena que fomos de uma geração em que a pobreza impediu que tivéssemos uma câmera fotográfica para registrar nossos instantes de alegria e reuniões. Não tenho foto ao seu lado.

Desculpe, demorei tanto a te procurar e desviei completamente o assunto que queria abordar contigo. Acredite, essa sua filha se transformou nesse amontoado de incertezas, indecisões, acertos e desacertos. Capto por um segundo seu sorriso Monalisa e o brilho zombeteiro no olhar embaçado. Sou capaz de adivinhar que pensou com seus botões da eternidade: essa puxou à mim em tudo. Sou obrigada a concordar com você, pai. Somos miseravelmente, infinitamente, verdadeiramente parecidos. Carrego em meu DNA, você.

Se vivo, tenho certeza que sentiria orgulho dessa sua filha. Turquinha…Lembra que você me chamava assim às vezes?

Cara, você se foi cedo demais… Demais, assim como seu neto, que não chegou a conhecer. Será que se esbarraram aí no plano celeste? Se sim, devem estar proseando até agora. Assunto é que não deve faltar. Vou parar por aqui antes que me desmanche em lágrimas. Não quero tristeza nessas linhas que te envio. Quero te envolver num abraço filial que nunca tive oportunidade de te dar em vida. Desejo paz, desejo alegrias, para nós.

Feliz dia dos pais hoje, sempre, aqui e na eternidade.

Este texto faz parte da blogagem coletiva BEDA (Blog Every Day August). Estão comigo nessa deliciosa brincadeira séria:

Bob F. – Claudia Leonardi – Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega –Suzana Martins

Imagem gratuita: Pexels

2 comentários sobre “BEDA – Hoje pensei em você

  1. sabe, Roseli, vou me vendo nas suas histórias e lembrei-me de que sempre falam que: filho é tudo igual. só muda o endereço…
    acho que isso se aplica aos pais também.

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