BEDA – Reacender minha ancestralidade

Retornar às origens, renova as energias, traz de volta nossos antepassados queridos, através das lembranças e, fortalece os laços afetivos entre os que participam do ritual.

Recordo com carinho, os momentos em que a família se reunia — em torno do pilão de madeira de meus avós — no quintal. A união de todos para o feitio da paçoca de amendoim, se transformava em festa. Dos mais velhos às crianças, todos aguardavam sua vez de socar o amendoim, a farinha de mandioca e o açúcar, contribuindo para garantir sua porção.

Uma fila animada se formava para que, cada um, tivesse sua vez de socar com prazer, observando a transformação.

Risadas, piadas e lembranças, se misturavam dando liga ao doce. Esses eram os ingredientes que faziam de um simples e antigo alimento, uma iguaria abençoada pelos deuses.

Ainda criança, recordo a expectativa que aquecia e fazia disparar meu coração. Na fila, aguardando, minha vez, pulava sem parar, rindo feito hiena.

Nem me preocupava em levar bronca. Nesses momentos, os adultos também viravam crianças e se comportavam da mesma forma.

Enquanto socavam, uma cantoria surgia e — fixou em minhas retinas da memória — o brilho de felicidade nos olhos da vó Maria. Sem dúvida, a maior das crianças ali presente.

Naqueles encontros, a união familiar emanava uma energia que trazia ao presente, a ancestralidade indígena e africana que todos nós trazemos em nosso DNA. Cantar, bater o pé no solo de terra batida e as mãos, em sintonia com as vozes, despertavam todos que adormeciam em outras esferas.

A festa seguia iluminando a todos. Paçoca pronta, cada um pegava uma colher para prová-la, ainda dentro do pilão. Sem cadeiras para todos, os mais novos sentavam-se no chão. Por alguns minutos, um silêncio imperava enquanto sentíamos o doce envolver nosso sistema digestório.

O pilão ainda existe. Foi restaurado após anos de abandono no porão. Se transformou num item de decoração, na casa de um dos tios.

Minha ancestralidade anda esmurrando a porta do coração. Deseja sair e se manifestar. Vontade absurda de bater os atabaques, soltar a voz e chamar de volta, todos que adormecem.

Texto faz parte do livro Quinta das Especiarias, publicado pela Scenarium Livros Artesanais

Esse texto faz parte da blogagem coletiva BEDA (Blog Everyday April).

Participam comigo:

Alê Helga – Claudia Leonardi– Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins

6 comentários sobre “BEDA – Reacender minha ancestralidade

  1. Adoro esse desenho e esse texto é quase uma viagem pelo tempo e por tantas coisas minhas… com algumas diferenças, é claro. mas ao mesmo tempo é tudo tão igual e diferente, de fato. rs

  2. A paçoca é algo como o amor. Aliás, mesmo sem chegar aos pés de uma paçoca caseira, feita à base do bater do pilão, Amor era o nome de docinho que amava quando criança. Para as nossas posses, custava caro. Mas na vivência da Tânia, típica do interior, era farta porque também fazia parte do ritual de vida produzir paçoca. Na última vez que foi à cidade que nasceu, trouxe uma boa quantidade que “furtei” um pouquinho, proibido que estou de comer doce, devido à Tia Bete…

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