Difícil definição

henrique

Mudar o verbo da noite para o dia transformando alguém tão caro e próximo num personagem do passado é doloroso. Alguém que dias atrás se encontrava ao nosso lado conversando, rindo, fazendo planos, enquanto traçava una bella  pizza ou un talharim ao pesto – seus pratos preferidos. Dói.

Agora, o que resta é um bolo indigesto parado na garganta diante do fato consumado. Nunca em minha vida senti tamanha dor. Nunca.

A inquietação que assola minha mente e coração parece que vai explodir a qualquer momento da mesma maneira que implodiu dentro de si, pondo término a um ser que tinha urgência em viver pois parecia saber que havia pouco tempo.

Meu menino que começava a amadurecer e cultivar ideias de fincar raízes, formar família, ter filhos. Esse era seu sonho. Contudo, ao mesmo tempo que alimentava tais quimeras, se jogava de cabeça em tudo o que pudesse fazer. Não quis seguir com os estudos mesmo sendo um Q.I. alto comprovado por especialistas. Contrariando a todos, dizia não poder perder tempo.

Tempo…

Sempre esse senhor a direcionar nossas vidas. E de alguma maneira que nos foge ao entendimento, ele sabia que precisava correr e dar conta de fazer sua história o mais completa possível. E deixou. Um Best Seller digno de aventuras Harry Potterianas, seu personagem preferido desde a infância. Havia total identificação, inclusive física.

Tornou-se precoce cidadão do mundo . Uma inquietação sem fim o movia a vários lugares. Viveu em constante busca de seu Graal.

Dono de mil talentos, desenhava quadrinhos e até se aventurou no mundo dos Tattoos. Aprendeu a cozinhar e sabia preparar pratos com requintes profissionais. Circulou por todas as esferas. De malandros e hippies da Avenida Paulista – sua favorita – ao mundo da moda, dos artistas de teatro, TV, aos grupos religiosos cristãos.

Família…

Essa, apesar de ser sempre um ponto de atritos e divergências, era também seu porto seguro. Todas as vezes que sentia-se perdido ou inseguro, era para ela que se voltava. Renovava suas forças, alimentava-se do amor incondicional que todos lhe tinham, respirava ares de amor e retornava para o mundo.

Em nosso último encontro, enquanto saboreávamos uma pizza, ele perguntou se eu já havia escrito algo sobre ele. Pensei e respondi que sim. Ele perguntou: Sério mesmo? Escreveu? O quê? Respondi sorrindo: se quiser saber vai ter de ler meu blog inteiro e se identificar. Tenho certeza que se reconhecerá. Mas terá de ler.

Não teve tempo. E eu, desde então sigo com o mesmo aperto na garganta e coronário e com os dedos enrijecidos pela dor de perdê-lo. Tão cedo…

Caso tivéssemos escolha, teria cedido de bom grado o tanto de vida que me resta. Já vivi bastante, conquistei muitas coisas, vivenciei tantas outras. Só pelo prazer de vê-lo se realizar, casar, ter filhos e levar uma vida simples no campo. Sem correrias nem atropelos.

Uma pena a vida não ser ficção caso contrário, já teria deletado essa parte da história e dado um rumo diferente. É meu menino, não deu.

Só deixo aqui uma pergunta que – por mais que busque resposta, não encontro uma que me satisfaça: quem ou o que preencherá essa imensa cratera de um metro e noventa e dois que se abriu em meu peito?

Talvez, repito novamente Talvez, daqui um tempo, a quantidade de lembranças que você espalhou por toda parte ao tombar inerte no chão frio me satisfaça. Talvez, com paciência e coração mais compassado, consiga montar o seu quebra-cabeças e perceba o quanto foi bonita sua passagem em nossas vidas. Mesmo que meteórica. Você passou. Sua luz permaneceu.

 

Imagem: Arquivo particular

Fim de contrato

Um tropeço, um baque.

Como a vida é efêmera. Como é rápida e, mais rápida ainda se esvai deixando apenas rastros de incompreensão e…Saudades.

Como uma vida que mal começou, pode terminar sem aviso prévio, sem mensagens de despedida, sem um até breve num e-mail ou no WhatsApp?

Sendo ela uma senhora regida por regras que sempre existiram, por que insistimos em nos espantar diante de suas atitudes?

Qual o motivo de sofrermos e desistirmos dela se, desde nosso nascimento, já sabemos a que viemos?

E não adianta choro, nem promessas, muito menos barganha. O fim é inexorável para tudo. Para todos.

 

Cantiga de ninar para menino M.

1882-crianca-adormecida

Vá. Não tenha medo menino M. Abra seus olhos internos e enxergue a beleza do outro lado. Observe a multidão que te aguarda, ansiosos por seu retorno. Desapegue-se das preocupações de uma vida inteira com os outros. Sua vida passou e ficará impressa na história familiar. Acredite, foi escrita com tinta de ouro e servirá de modelo para as gerações seguintes.

Não chore. Para que esse bico e esse olhar de pesar? Entendo… Despedidas são sempre dolorosas. Mas não estamos dando um adeus. Não! No máximo… Um até breve.

Ei! Pára com isso menino M. Qual o motivo para essa cabeça baixa, olhar melindrado? Até me fez lembrar quando, pela primeira vez na escola, assustou-se por estar longe de sua mãe.

Lembra que depois pegou-se de paixão infantil pela professorinha que tanta atenção lhe ofertou? Recorda que tornou-se seu braço direito na pequena sala de aula? Durou tão pouco não é mesmo? Gostaria de ter-se formado doutor mas, a dureza da realidade familiar exigiu que regressasse para o campo. Coração apertado, aceitou seu destino e seguiu os passos de seu pai.

A vida prosseguiu. Enfrentou tempos difíceis. Provou ser uma pessoa do bem. Assimilou os valores passado por seus pais. Transformou-se num guru. Admirado por muitos, temido por outros.

Confesso que por uns tempos, preocupei-me com você.Sua atitude beirava a arrogância e isso não representava sua essência de menino.

Que bom que se reencontrou! Precisou ocorrer um comprometimento neuro cognitivo para assumir o posto, a criança leve e sorridente que outrora foi.

À partir daí  reaproximei-me de você. Agora falávamos de igual para igual.Lembra de nossas conversas? Fluíam que nem víamos a hora passar.

Preciso te dizer uma coisa: Não precisa mais chorar de saudade de sua mãezinha. Repare à sua frente. Ela acena para você esboçando seu doce sorriso. Traz os olhos marejados de felicidade em recebê-lo novamente em seus braços. Vá. Não relute.

Siga sem pestanejar. É a porta da redenção que se abre para você. Ficar só te trará sofrimento. Você não pertence mais a esse lado. Nesse grande tabuleiro chamado vida, você ousou e movimentou-se com maestria. Foi um vencedor. Mesmo que para muitos, você seja um fracassado. Não dê ouvidos. Sua elevação os incomoda.

Menino M., deixa de enrolação e vá. Ultrapasse essa linha tênue que o separa da real felicidade. Até eu consigo ver daqui a alegria que impera do outro lado dessa margem. Bandeirolas brancas enfeitam a cidade. A banda de música toca sem parar anunciando sua chegada. Observe quantos olhos curiosos em te ver chegar. Lá, é dia de celebração e você é o motivo de tanta festividade.

Não! Pare de se preocupar conosco! Não ficaremos em desamparo. Aprendemos com suas lições a sermos maiores. Já sabemos caminhar sozinhos. E, apesar da provável separação, só em sabermos que estará feliz e liberto de tudo isso, nossos corações já se enchem de alegria. Vá na frente e prepare o terreno para quando chegar nossa vez. Ah! Antes que me esqueça, tenha a certeza de que jamais o esqueceremos. Jamais.

Menino M., morra em paz. Renasça em paz ao lado dos seus que o esperam. Mande notícias nossas e diga a eles, que mantemos suas memórias intactas que são constantemente revividas nas reuniões familiares.

Isso. Seja um bom menino. Durma o sono da eternidade e sonhe os seus mais belos sonhos. Os anjos velam por você. Um som angelical soa ao longe embalando a todos.

Foi-se. Até breve menino M. Até breve…

Imagem: Criança adormecida (Leon Perrault – 1882)

Despedida

camelia jardimPara muitas pessoas que não me conhece direito, posso parecer fria, distante. No entanto, sou pura emoção. Apego-me as pessoas e objetos. Mas, com a mesmo a rapidez, desapego e sigo em frente. Aprendi a ser assim para sobreviver a tamanha carga de emoção que carrego comigo. Se assim não fizesse, explodiria.

Agora à tarde, recebi a notícia do falecimento de uma pessoa que foi muito importante em minha infância e juventude. Uma tia que trazia como marca registrada, uma gargalhada contagiante. Mesmo com tanto sofrimento que transportou consigo em sua vida familiar, nunca deixou de lado sua risada aberta e alegre.

Para mim, na verdade, ela morreu há sete anos, quando teve um mal estar súbito e nunca mais saiu do coma. Seu olhar brilhante, cheio de vida, sua risada, calaram juntos naquele dia. Ficou apenas o envólucro carnal que a nada respondia.

Que ela, sua família e Deus me perdoem por nunca ter feito uma visita. Apesar de tudo, sou covarde. Assumo. Não tive coragem de vê-la ali, mergulhada no silêncio. Um corpo apenas. E isso, definitivamente, não era ela.Preferi mantê-la viva e feliz em minha memória. Será um erro meu negar-me a encarar a realidade? Pode ser mas, se assim for, prefiro apegar-me à lembranças boas da minha infância e ao último contato que tive com ela um dia antes de entrar em coma. Sua visita à minha casa foi como sempre divertido, com direito a muitas risadas e o abraço recebido por ela, hoje sei que foi uma verdadeira despedida. Não nos veríamos mais em vida.

Despregou-se a bela camélia deixando cair suas pétalas perfumadas. Ficam as lembranças de uma vida. De certa forma, sinto uma alegria imensa em saber que sua essência está liberta dos despojos carnais. Livre para iniciar uma nova história. E isso me conforta. Siga em paz C.