(Lua Souza)
Já fui bad, já fui boy. Hoje sou outro ser. Percorro corredores dentro de mim, no afã de ser apresentada a esse novo ser que habita em mim. Confuso? Também acho mas, posso explicar. Senta que a história é longa.
Meu avô sempre dizia que a vida é insana e que devemos ter olhos e espírito atentos, pois situações se apresentam que nos tiram o chão. Achava exagero da parte dele, respeitava por ser senhor idoso e um ser humano muito fofo. Nasci numa família abastada que, após negociações mal estudadas, perdemos boa parte da fortuna passando a sobreviver de aparências. Em pouco tempo, minha personalidade pendeu para a manipulação. Tudo em nome de garantir meu bem estar. Acreditava que esse era um excelente argumento. Em nome dos privilégios que ansiava obter, passei por cima de muitas pessoas, ganhei um fã-clube que competia com a galera da Gaviões. A cada dia crescia mais. Quebrei muitos corações femininos. Sabia ter bico doce e dizer o que elas queriam ouvir. Nunca foi sacrifício afinal, apreciava o jogo da sedução.
Ao completar quarenta anos, sofri um grave acidente. Por pouco não morri. Meus companheiros de viagem não tiveram a mesma sorte. Morte imediata. Passei meses em hospitais, correndo risco de ficar paraplégico. Após dois anos, totalmente integrado a rotina de trabalho, viagens, prazer, sofri um primeiro infarto. Mais dois seguidos, me nocauteando na lona da vida. A sentença veio à cavalo: ou você recebe um coração novo ou não vive até o final do ano.
A revolta quase se transformou na pá de cal sobre minha existência. Era energia negativa demais num coração craquelado e frágil. Num momento de crise, levaram-me às pressas para sala cirúrgica e, trataram de trocar a peça avariada por uma que batia numa sonoridade que dava gosto. A cirurgia foi considerada um sucesso. A equipe médica vinha ao quarto com sorriso e brilho no olhar de profissionais vitoriosos. Jogavam sempre para ganhar e por isso, ganharam minha saúde numa cirurgia considerada de alto risco. Minha recuperação vou se materializando trazendo aos holofotes da vida, um ser humano diferente daquele que dera entrada numa emergência. Uma paz de espírito que não conhecia, aos poucos foi se instalando e passei a olhar para todos com mais atenção, gentileza. Era só sorrisos e mansuetude.
Mudei. Recuperada, tornei-me caseira. Sentia prazer em permanecer horas cuidando do jardim da mansão, conversava com o jardineiro, seu Benedito, que passou a ser íntimo da casa tomando café da manhã e almoçando ao meu lado. Aprendia a cada dia nova lição ao lado desse ser iluminado.
Minha mansão, antes cercada por cristais murano e pratarias frias, hoje é um reduto de calor humano. Passei a receber pessoas, a distribuir carinho, a ser boa ouvinte e, em troca, recebo em dobro algo que o dinheiro jamais havia comprado: o amor genuíno de seres humanos de verdade. Família não entendeu e se afastou de mim. Segundo eles, ao sofrer acidente, devo ter batido a cabeça e ficado pinel por ter mudado tanto.
Após muita conversa com seu Benedito sobre meus sentimentos atuais, contratei um detetive para descobrir a identidade de quem me doou o coração novo. Sabia que ali se encontrava a chave de minha mudança radical.
Os que ainda me odeiam, espalham por aí que minha transformação é castigo divino por tudo o que fiz no passado. Para mim, foi benção. Hoje, tenho uma família verdadeira e sou recebida com respeito, afeto, carinho legítimos. Herdei o orgão vital de Dalila, uma travesti famosa por ter um coração de mãe com todas as profissionais que viviam ao seu redor. Ao descobrir, fui visitá-las e após primeiro momento desconcertante, nos reconhecemos mutuamente. Na empresa, ainda preciso mostrar meus dentes alvos para me fazer respeitar por aqueles trogloditas de terno e gravata. Sou toda riso fácil, abraços e ombro amigo, com as secretárias executivas e demais meninas que compõem a área administrativa. Ano passado, fui aclamada como a empresária do ano e durante discurso, expressei ser grata a Deus pela chance dada de reiniciar uma vida mais humana, com coração embebido no amor de uma mulher de verdade.
Esse texto faz parte da blogagem coletiva Blogvember. Participam comigo:
Lunna Guedes – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Suzana Martins
Imagem: Pixabay
Que lindo!
Gratidão Mari!!!