…E não pense em Deus. Finja que ele não existe. Nenhuma misericórdia. Nenhum ombro a te consolar. Nenhum pecado. Nenhum sermão. Nenhuma luz. E pronto. Deus fará cócegas em seus pés com penas de Arara Azul. Depois durma.
Marcelo Maluf
Espaço destinado ao ofício da escrita. Bonito, bem decorado. Pensado em cada detalhe. Mobiliário projetado pela própria dona, que entre tantos certificados, obteve o de design de interiores.
Bancada tomada por livros para pesquisa, para lazer, para ser objeto de decoração. Cadernos artesanais enfeitam a prateleira. Alguns já trazem em seu interior, histórias e projetos aguardando desenvolvimento e desfecho. Outros, esperam pacientemente sua vez de serem preenchidos. Enquanto não acontece, se conformam em ofertar beleza na imobilidade da estante.
Curvada diante da tela de seu notebook que permanece em branco, a escritora gostaria de escrever textos leves, poéticos. Textos que pudessem trazer ao olho leitor, uma dose de calmaria onde, as palavras pudessem atuar como gotas medicamentosas, aplacando sofreres.
Sua face se contorce numa expressão dolorosa. Algumas lágrimas cometem haraquiri. Partem em busca de redenção fora dos olhos, cansados da TV.
Ela sabe que ainda há tanta beleza a ser enaltecida pelo viés do escritor. Beleza nascida na natureza, beleza criada pelas mãos sensíveis dos homens. Infelizmente, alguns se perderam da humanidade e hoje, vociferam sua bestialidade sentindo prazer em causar e apreciar a dor alheia.
A sensibilidade da escritora é cancro aberto com moscas rondando. Ela esmurra a bancada, levanta. Percorre a sala silenciosa onde apenas seu grunhido de dor se ouve. Sozinha, somente ela pode se compadecer do próprio sofrimento.
Vai para a cozinha passar um café. Por alguns segundos seu olfato é presenteado com o aroma característico da bebida. Sorri, sentindo o amargor que sobe por sua garganta fechada para balanço. Não ouve a própria voz há duas semanas.
Num ritual do qual não abre mão, pega a pequena xícara que trouxe de uma de suas inúmeras viagens. Posiciona ao lado da cafeteira que cantarola alegre, avisando que ainda não terminou. Pacientemente, aguarda, olhando para o infinito. A cidade – princesa Aurora de tempos sombrios -, dorme silenciosa. Até quando, ninguém sabe.
Beberica o líquido absorvendo também seu perfume. Uma xícara. Duas xícaras. Na terceira, pousa no pires e retorna para sua zona de trabalho.
Se alonga um pouco. Na vã esperança do movimento despertar- aliado ao café -, sua mente para o texto a escrever.
Sua atenção é fisgada por um bloco de livros acomodados à sua direita. O título do livro que se encontra no topo, faz com que ela esboce um sorriso e um brilho acende seu olhar.
Livro de contos de um escritor que foi seu professor no passado e uma obra que muito a agrada. Serve de incentivo para que ela deixe de procrastinar e inicie o texto afinal, o prazo está se esgotando.
-É isso Marcelo! Obrigada. Mesmo à distância, continua a me dar a força que sempre necessitei. “Esquece tudo agora”. É isso! Vamos deixar todo o sofrimento lá fora e fazer emergir a beleza do existir aqui, impresso nas páginas que vou escrever. Porque escrever é criar vidas. Escrever é mudar a rota. Escrever, é resistir! Resisto. E persisto!
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