Um grito atravessa a noite me tirando de um sono profundo. Retorno à realidade confusa, acreditando ainda estar sonhando. O som de um choro desesperado, sofrido, permanece. É uma mulher. Diante do silêncio das primeiras horas da madrugada, apenas esse lamento. Movida pela curiosidade, levanto e vou à janela na tentativa de ver o que acontece. A rua, sempre movimentada, encontra-se vazia. No céu, nuvens encobrem o luar. Nos prédios, algumas luzes solitárias acesas.
A cantilena do choro aos poucos cessa até ouvir apenas uma respiração carregada. Silêncio.
Ao fechar a janela, capturo um movimento no canto de uma banca de jornal na esquina. Fixo o olhar para tentar identificar se é um cão perdido, ou gato vira-lata. A constatação de que é uma mulher me causa certo desconforto. Seminua, levanta-se ajeitando o vestido rasgado. Um dos seios à mostra. Ajeita os fartos cabelos e ao mirar o alto – com os olhos ainda úmidos e borrados pelo rímel vagabundo – nos enxergamos.
Por alguns segundos, não sei o que fazer nem o que pensar. Ela mantém seu olhar em mim numa muda súplica. Em seguida, abre um sorriso, acena, termina de ajeitar seus trapos, tira um espelho da minúscula bolsa e corrige a maquilagem. Atravessa a rua e para na esquina iniciando um diálogo com suas colegas:
-Amor, a noite está brava. Muito sofrimento e pouco faturamento. Estou de rabo ardendo e o filho da puta não me pagou. E ainda me deu uns tapas na cara. Fora que rasgou meu vestido. Bora faturar mais um para pagar o prejuízo! Oh vida! Quando será a minha vez de conhecer um bonitão que me fará sair dessa miséria? Quando?
-Ainda está nessa de sonhar acordada com príncipe encantado? Otária, acorda pra realidade! Nós estamos aqui para isso. Aliviar as taras desses monstros. Somos seus instrumentos de prazer. Jamais se interessarão em nos tirar da sarjeta. Isso minha filha, é contos de fadas. Aqui, no asfalto, é a vida real. E chega de conversa mole, atravessa e vai para a outra esquina trabalhar que a noite apenas começou!
Cerro a janela e retorno para o calor das minhas cobertas. Por alguns minutos reflito no quanto essas “mulheres” levam uma vida embrutecida, pobre em todos os sentidos. De “vida fácil” elas não têm nada. Por outro lado, apesar das diferenças, nós mulheres – seja aqui em São Paulo, Rio, Maceió ou Nova York. Seja no Ceilão, na Irlanda ou Rússia, a condição feminina sempre sofre. Muitas se prostituem para sobreviver. Não tiveram estudos, não têm outra profissão. São reféns da desigualdade social. Outras, fazem universidade e, mesmo assim, prostituem-se para usufruir de um luxo que – sendo simples balconista de shopping ou garçonete ou até mesmo escriturária – não teriam condições financeiras para tanto. Na realidade, há diversas formas de se “vender”. E todas, sem exceção, gravam sequelas profundas na alma feminina.
Adormeci pensando em mim mesma. De qual forma me deixei prostituir… E você? Já parou para pensar nisso?
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